Índice de Capítulo

    — O que… como você? — Bastardo perguntou, embora odiasse o som da própria voz naquele instante. Saiu fraca, hesitante, como se engasgasse com a realidade. Os olhos semicerrados tentavam negar o que viam. Mas negar era inútil. Aquele homem… não, aquela coisa não era o mesmo que havia tombado minutos antes.

    Dante apoiou uma das mãos no chão. A pedra estalou, trincada sob seus dedos. Bastardo ouviu o som e o odiou. Soava como algo abrindo caminho. O tipo de som que antecedia desastres.

    Havia algo no modo como o corpo de Dante se erguia, como um animal que acorda de um longo sono e não reconhece mais os domadores ao redor. Os músculos vibravam — Bastardo via, sentia, como se cada fibra do ar ao redor estivesse estalando. Era como assistir um velho profeta reencarnando em guerra. Mas não era milagre. Não havia fé ali. Só força. E uma força que crescia a cada segundo.

    Bastardo sabia reconhecer poder. Tinha passado a vida cercado por ele — fingindo, traindo, dominando. Mas aquilo… era diferente.

    O calor se espalhava do chão ao redor, e Bastardo sentiu o suor nascer no fundo das costas. Ainda assim, manteve-se firme. Riu. Tentou, ao menos.

    — A Energia Cósmica realmente faz milagres — disse. A voz saiu melhor dessa vez. Um pouco mais firme. Um pouco mais dele. — Presenciamos a vida retornar a um homem com tanto potencial. Está vendo, Dante? Isso quer dizer que você pode…

    Mas não terminou. Porque, de repente, sentiu.

    A pressão ao redor mudou. O ar ficou denso. Cada inspiração parecia exigir mais esforço do que a anterior. E o corpo… o corpo já não lhe respondia como antes.

    Havia uma força ali. Não só uma aura. Um campo.Uma maré invisível.

    Ela pulsava ao redor de Dante, e Bastardo não sabia como descrevê-la senão como algo vivo. Um bicho imenso, adormecido por séculos, que agora acordava faminto. E ele estava ali, diante da boca da criatura.

    Tentou se convencer de que era apenas a Energia Cósmica em fluxo. Mas não era. Era mais. Dante havia deixado de usá-la como ferramenta. Ele agora era a ferramenta dela. O canal. O corpo escolhido.

    Bastardo sentiu a própria espinha gelar. Uma parte dele — a parte velha, criada com medos e açoites — queria fugir. Correr. Abrir portais e desaparecer. Mas a outra parte, a que construiu seu caminho e que esmagou cidades inteiras, recusava-se a ceder. Essa parte forjou o machado.

    Um giro. O braço moveu-se com perfeição treinada, e a Energia respondeu. A lâmina surgiu, curvada, com runas ondulando sobre sua superfície como serpentes gravadas em ouro quente. Ele lançou o golpe na horizontal, com a força de quem não aceitava perder.

    O ar se partiu. Bastardo sorriu. Haveria sangue.

    Mas Dante… não se moveu.

    Não recuou. Não se protegeu. Não fez nada.

    E foi ali que o medo verdadeiro entrou. Frio, profundo, silencioso.

    Algo saltou da roupa dele. Pequeno no início. Bastardo quase o ignorou. Uma criatura? Um brinquedo mágico?

    Mas ela cresceu. Inchou. Duas vezes maior. A boca se abriu como uma cova, e o machado foi engolido entre os dentes.

    O braço de Bastardo estalou. Ele foi forçado a arrastar o pé. Um tranco violento. Tentou puxar a arma, mas o monstro cravou as garras no chão, alargando as pernas, firmando-se em uma rachadura como um verme que cava fundo.

    — Solta. Solta agora, maldição — gritou, como se estivesse tentando convencer uma criança.

    O monstro não respondeu. Não precisava. As garras afundavam mais. O chão rangia. Bastardo puxou com força, mas nada cedia.

    — Solta, desgraçado!

    — Muito bom, Nick — disse Dante.

    E a voz dele…

    A voz não era mais só dele. Vinha com peso. Com raiva. Com julgamento. Bastardo sentiu aquilo mais do que ouviu. Cada sílaba atingia como um martelo invisível. Os pelos de seus braços se eriçaram.

    Ele recuou: Um passo.

    A vergonha queimou como sal sobre ferida. Recuar? Ele?

    Mas o corpo não mentia. A mente podia tentar manter o orgulho. O corpo sabia da verdade. Sabia do que se aproximava.

    Dante avançou. Um único passo.

    E o som… o som não foi de passo. Foi de trovão. O chão gemeu sob os pés dele. O ar ficou carregado de energia, como antes da tempestade, quando até os cabelos se erguem de pavor.

    Foi nesse instante que Bastardo ouviu. Não com os ouvidos. Com a mente.

    Uma voz impessoal, metálica, implacável:

    Nível de Conversão: 10%.”

    Era uma voz estranhamente familiar, mas que ele nunca tinha ouvido verdadeiramente. E no momento seguinte, agarrado aos seus pensamentos, a sombra de um punho emergiu.


    Dante sentiu o chão sob os pés como se fosse parte de si. A vibração das pedras, o rangido distante de metal se curvando sob calor, até mesmo o peso do ar — tudo parecia lhe pertencer. Cada fibra de seu corpo pulsava como cordas tensionadas, prestes a romper ou cantar.

    A energia corria por ele. Não era como antes, quando precisava invocá-la, domá-la, moldá-la como um ferreiro molda o aço. Não. Agora ela fluía. Espontânea. Selvagem. E, de alguma forma, obediente.

    — Nível de Conversão: 10% — dissera a voz.

    E o que aquilo significava? Por que ele se sentia tão jovem, tão rápido, tão… inteiro?

    As perguntas tentavam formar raízes na mente de Dante, mas o corpo não esperava respostas. Ele se movia. Agia antes de pensar. O punho se fechava como se conhecesse segredos esquecidos. Os pés pisavam como soldados treinados em outra vida.

    Bastardo ainda lutava com o machado preso na mandíbula de Nick, rosnando pragas e puxando com desespero, mas Dante não lhe deu tempo para respirar.

    Avançou.

    Um estalo seco. Um movimento em ziguezague. A mão direita subiu em arco, cortando o ar até encaixar-se no punho do inimigo. Dante girou o corpo, puxando o braço de Bastardo com um torção súbita, e com a perna direita travou-lhe a base, desequilibrando-o.

    O golpe não era só força. Era técnica.

    Judô. Ele se lembrou.

    Ou melhor: o corpo se lembrou.

    Com o peso de Bastardo inclinado, bastou um giro para lançá-lo contra a parede lateral. Ele voou como um saco de pedra, batendo com os ombros e escorregando, deixando um rastro de sangue na pedra.

    Mas não ficou no chão. Bastardo era feito de ódio. Se levantava rápido, os olhos cuspindo fúria.

    Veio com um chute baixo, buscando desequilibrar. Dante saltou por cima, o joelho dobrado rente ao peito, girando no ar. Caiu de lado, como um felino, e deslizou a perna para um contra-ataque rasteiro. Bastardo recuou por pouco.

    Dante se ergueu num giro. O cotovelo já vinha apontado — karatê agora. O cotovelo explodiu contra o queixo de Bastardo, jogando sua cabeça para trás com um som oco. Um dente voou. O sangue espirrou.

    “Isso é real?”, Dante pensava, mesmo enquanto se movia.

    Bloqueio esquerdo. Soco direto. Giro. Cotovelo. Joelho.

    Cada técnica fluía com perfeição, como se mil mestres estivessem sussurrando comandos antigos dentro de seus ossos. Como se o próprio corpo tivesse sido redesenhado para a luta. A cada passo, ele aprendia mais. A cada golpe, compreendia.

    Era como se toda arte de combate que já vira ou tentara aprender antes estivesse agora perfeitamente acessível, instintiva.

    Ele desviou de um soco vindo com toda a fúria da Energia Cósmica. O ar se rasgou ao lado de sua orelha. Dante girou, encaixou a perna no calcanhar de Bastardo e o desequilibrou de novo. Desta vez, puxou-o pela gola, pela pele, pela própria alma — e o lançou com uma força anormal contra a grande porta de ferro que levava ao hall da prisão.

    O impacto ecoou como um trovão.

    A porta se dobrou para dentro, e Bastardo caiu de joelhos, tossindo sangue, olhos arregalados em pavor e incredulidade.

    Dante parou.

    Ofegava. Mas não por cansaço. Por terror.

    Eu conhecia esses movimentos… mas não sabia executá-los assim. Nem nos meus melhores dias. Como?

    O corpo ainda queria se mover. Pulsava por mais. Como um animal excitado pelo cheiro da caça.

    A voz voltou. Suave. Quase serena:

    Conversão estabilizada. Ajuste de sinapses motoras concluído. Eficiência física: 112%. Memória muscular ampliada.”

    Nem nos seus dias mais jovens, nem na aurora de sua arrogância juvenil, quando ousara pensar que um dia poderia superar o próprio pai, nem ali Dante teria feito o que acabara de fazer.

    Era rápido demais. Preciso demais. Quase desumano.

    E ele sabia disso. Sabia que não era esse homem. Que não fora forjado para isso. Que sempre foi feito de falhas e rachaduras, e que seu poder antigo, aquilo que perdera, não lhe pertencia por direito, apenas por acaso.

    Nunca se julgara digno. E talvez por isso nunca chorara de verdade por perdê-lo.

    Dante vivia como quem caminha sobre uma corda em chamas, consciente do erro, tentando apenas fazer o melhor com o que ainda possuía — e se isso não bastasse, então que morresse. Mas que morresse tentando.

    À sua frente, o Bastardo desmoronava.

    As mãos do homem tocavam o próprio rosto, como se tentassem impedir que ele escorresse pelo chão junto com sua dignidade. Seus olhos não piscavam. Estavam presos ao nada, ou talvez ao próprio abismo. A Energia Cósmica já não lhe obedecia. Escapava por entre os dedos como água quente, flutuando no ar como névoa dourada, como uma alma em fuga.

    — Por quê… — sussurrou o Bastardo, e sua voz não carregava fúria, nem dor. Apenas fracasso. Um som pesado e envelhecido, como de um animal que não entende por que está morrendo.

    Ele olhava para o chão, olhos vazios, segurando a mandíbula como se ainda doesse. E de fato doía, mas não era a dor do golpe.

    — Por que você consegue utilizar ela melhor do que… eu?

    Era uma pergunta, mas não esperava resposta. Era uma oração murmurada ao fim de um império.

    Dante não respondeu.

    Não havia espaço para piedade. Ele caminhou em linha reta, como a lâmina que se move após o braço cair. Seu pé se ergueu em um único arco — e desceu. O impacto acertou o queixo do Bastardo com o som de osso partindo. O corpo voou como um boneco de trapo lançado por deuses impiedosos.

    O concreto não resistiu. Nem a pedra. Nem o aço da estrutura interna da prisão. Tudo cedeu.

    Uma explosão de poeira e detritos preencheu a entrada. Bastardo foi arremessado de volta ao saguão principal, onde a luz morna dos cristais no teto ainda brilhava sobre a presença de Gladius, Humolo, Cress — e tantos outros.

    Todos estavam lá. Testemunhas do impossível.

    Mas não fizeram nada. Nem um movimento. Os olhos que antes enfrentavam o fogo, agora tremiam, entreabertos, confusos. Olhavam para Dante como se vissem algo antigo, primitivo, de outra era. Dois homens se combatiam, mas nenhum deles era mais homem, não no sentido comum da palavra.

    Seres acima da realidade.Além do mar, da prisão, da própria guerra.

    E o que Dante sentia?

    Não era orgulho. Não era triunfo.

    Apenas aquele calor nos ossos. A pulsação constante de algo que o corpo aprendera a controlar sem jamais entender.

    Ele respirou. E o ar pesava. O chão estremecia sob seus pés, como se reconhecesse seu novo senhor. E o silêncio se fez em volta.

    Mas Bastardo não estava morto.

    Ainda não.

    Seu corpo caiu nos escombros da parede destruída. Pedra sobre pedra. Concreto estalando. Rolou, arrastando o que restava da sua força, até o chão frio e coberto de sujeira. O rosto cortado, os lábios partidos, e uma linha fina de sangue descendo até o queixo.

    Seus olhos voltaram a abrir. Um só deles — o outro estava fechado pelo inchaço.

    E viu.

    Cloud.

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