Índice de Capítulo

    — Isso é maluquice, porra.

    O que o velho estava fazendo era pura insanidade. O salto direto na parede, contorcendo o Felroz e usando ele como um dardo, jogando e expulsando mais cinco ou seis. Voltava ao chão pisando no bicho e deslizava atacando a longa distância.

    Os impulsos de ar não eram feitos só de ar, não era possível para Marcus acreditar que aquilo era ar deslocado em pura essência. Cada um dos disparos arregaçava o peito, braços ou cabeça, matando alguns na hora.

    Dante simplesmente saltou esquivando de dois ataques laterais e seu corpo pareceu travar no ar, quando de repente, ele fez um giro em 360º graus e a sola da sua bota afundou a boca da criatura. Outra foi expulsa, mas seus gritos continuavam a aumentar enquanto aumentavam de um lado para o outro.

    Marcus puxou o fuzil e começou a disparar. Eles se mexiam muito, isso era o natural de quem tinha quatro braços e uma força descomunal para se locomover saltando de uma parede a outra. Se agarravam ao teto como aranha e caíam na direção do velhote. Marcus mexeu e aumentou o volume da sua Energia Cósmica.

    Os disparos começaram a perfurar as cascas e adentrar os órgãos. A vantagem numérica nem mesmo parecia ser um desafio. Dante recebeu um golpe no braço, e travou mais outro, antes de ambas as aberrações tentarem atacar, outra rajada de fuzil.

    Dante o encarou de lado bem rápido e avançou. Não importava como aquilo parecia soar, o atirador não tinha como descrever o quão absurdo era um homem lidar com Felroz daquela forma. Uma bomba ou a distância, como fazia da Torre de Rádio, formas comuns de lidar com criaturas muito mais fortes.

    Na verdade, a única coisa que realmente fazia sentido naquele espaço era que o tempo passava e o número dos Felroz caíam drasticamente.

    Os dois afundavam os Felroz de maneira que nenhum levantava depois de dois golpes.

    Marcus fez um movimento de recuo de arma e tentou se lançar para outro canto. No meio do caminho, um dos Felroz que guardava a bateria gritou e partiu em sua direção. Rápido demais, Marcus se jogou para o lado quando o primeiro braço rasgou o ar e acertou a parede. A criatura virou o rosto, e sua face se abriu em um rombo.

    Ele respirou fundo depois de tirar o dedo do gatilho. Quando encarou Dante, ele usava a parede como cobertura e explodia dois a três em seguida contra uma pedra pontuda. Foi quando o viu puxar um grilhão do meio de uma rocha e rasgar como se aquilo fosse uma espada.

    Dante simplesmente começou a rasgar um por, recuando em saltos curtos, e atacando com tanta velocidade que sua força parecia a menor das características. Os Felroz sentiam o vulto se aproximar sorrindo, com uma risada estridente rivalizando contra seus gemidos agudos raivosos.

    Por um segundo, Marcus achou que via duas criaturas querendo o pedaço da mesma carne. Querendo o mesmo objetivo, o mesmo propósito.

    — Parece que dessa vez, eu exagerei um pouco.

    O velho segurava o pescoço do Felroz e o encarava. A criatura se contorcia querendo se libertar, mas Dante ignorou qualquer que fosse aquele pedido ou regresso à vida. O som estalou, o pescoço da criatura dobrou um pouco. O velhote o soltou.

    Os gemidos que faltavam eram de uma dezena que se pendurava no teto. Marcus notou que elas não desciam, agarradas também aos tubos de energia. Seus corpos indicavam uma tensão, e ombros erguidos.

    — Estão com medo. — Suas próprias palavras o impressionaram. — Temos uma chance para pegarmos a bateria, Dante. Eu acabo com elas, você pega e a gente sai.

    Um dos Felroz começou a morder um dos cabos largos do painel solar. Dante estava indo na direção da bateria. Marcus não ia deixar tudo aquilo ser arruinado só porque uma criatura se achou no direito de que era sábia o suficiente.

    — Se está com tanta fome, come bala.

    I

    Ficar olhando o reservatório não adiantaria nada. Clara tinha outras pra fazer além de ficar esperando os dois ou ouvir os gritos dos Felroz. Não detestava aquele som, porque a quantidade de vezes que havia sofrido durante as madrugadas com medo foi o suficiente para apreciar uma bela melodia.

    A sua bancada era diferente da de Marcus, por isso quando sentava diante dela, ignorava o que as demais pessoas teriam para conversar ou até mesmo o que acontecia ao redor de Kappz. Não era porque não tinha medo durante o dia, era justamente porque mexer com remédios e o pó amarelo era complexo.

    Mesmo concentrado, sua boca sibilava, saindo o som ritmado.

    — “Onde está o troféu? Ele vem correndo pra mim”… — Fez mais algumas torções. — “Ele sempre vem correndo pra mim”.

    E usar a água azul ou invés da verde fez com o que pó dentro do recipiente liberasse uma fumaça mais clara, em um tom esverdeado. Ela colocou a junção dos materiais dentro de uma cápsula e chacoalhou. A pílula foi colocada em uma caixinha com vários espaços reservados. Mais da metade já tinha sido preenchida.

    Clara limpou o suor da testa e retirou seu óculos de proteção, feito por Marcus, e o ajustou no suporte. Foi até a beirada, e coçou os olhos. Não era cansaço, sabia bem disso. Tinha dormido bem, tinha um bom colchonete, um travesseiro macio e cobertores grossos para proteger do frio.

    Nunca era por conta do sono, nem da noite, ou das tarefas no dia.

    — Está cansada porque se preocupa muito. — Simone tinha dito pra ela numa das outras centenas de vezes que a viu do mesmo jeito, encarando o nada e esperando um retorno mágico. — Mas, se preocupa com o que não pode controlar.

    Clara não podia negar que cansava e muito. Desde que tinha sido chamada para reuniões com os grupos de Kappz, entendeu que a cidade funcionava bem pior do que imaginava antes de tomar conhecimento. Todos eles eram horríveis em administrar os próprios remédios ou recursos. Até mesmo a comida acabava muito rápido.

    Ali do seu lado, ela tinha bastante para manter pelo menos Marcus, Dante e ela vivos por mais um mês inteiro. Nunca abriu a boca para falar que tinha material, mas na última reunião, um dos caçadores questionou como eles poderiam sobreviver sem pedir por nada.

    Simone lhe deu uma resposta barata sobre controle e gestão, mas Clara viu que não foi o suficiente. Os olhos sedentos de homens desesperados lhe causavam calafrios, mas não eram piores do que a dor de não ter nada e nem ninguém ao seu lado.

    E piorando a situação, ouviu o som de botas pesadas passando pela ponte de madeira que ligava os dois prédios.

    — Clara Silver. — Antton era quem vinha, e com uma bolsa vazia debaixo do braço. — Era com você mesmo que eu queria ver.

    — Não tenho nada para te oferecer. Simone também não está, por favor, quero ficar sozinha.

    Antton pegou a bolsa e jogou no chão, sorrindo.

    — Eu vim te ver, e pegar tudo o que você tem.

    Clara coçou a bochecha e depois piscou duas vezes.

    — Como eu disse, Simone não está presente e você não tem motivo para pegar nada meu. Marcus e eu estamos trabalhando pesado para repassar todos os remédios, nem mesmo comida temos. Viu quanto tempo eles ficam fora para podermos fazer uma refeição?

    Ele permaneceu parado, com um sorriso largo, e pegou uma lata de salsicha industrializada e jogou contra os pés dela.

    — Pois me explique por que a coleta tem esse tipo de comida e nós não temos nada? — Seu tom de voz não condizia com sua expressão sorridente. — Acha que pode nos fazer de otarios? Seu novo colega chega do nada, e vocês conseguem mais suprimentos, e não dividem?

    Clara abaixou e pegou a lata, e concordou.

    — Lembro disso. Dante achou faz pelo menos uma semana. Pediu para dividir com as crianças. — E jogou a lata dentro da mochila aberta. — Você é criança, Antton? Nem precisa responder, dá pra ver que tem jeito. Agora, me poupe do seu discurso ridículo e volta pro seu lado da cidade. Não te vejo distribuindo comida pra ninguém, e vem reclamar?

    — Estamos em uma temporada baixa — ele falou mais alto e apontou, perdendo a postura e sorriso. — E sabe bem disso, maldita. Nós nos arriscamos todos os dias para tentar trazer alguma carne, e você tem salsichas em uma lata e não entrega nada?

    — Exatamente, Antton. Usou a palavra certa ‘tentam trazer carne’. E não trazem. Quer comida, faça igual Marcus e Dante, vai pra rua procurar. Eu devo a eles algum tipo de satisfação, não a você.

    Antton deu o primeiro passo, mas Clara levou a mão à cintura na hora.

    — Eu não saco minha arma faz tempo, Antton. E tenho certeza que se me acertar ou se me encostar, não vou ser a pessoa a sair machucada daqui.

    Os dois se fitaram por instantes. Ele abaixou e pegou a mochila aberta. E deu uma risada.

    — Sei que ainda sente falta daquele lado da cidade. Vim até aqui porque sei que você tem mantimentos, e se não quer der a força, nem preciso dizer. — Sua cabeça foi para o Reservatório. — Soube que seus dois colegas estão lá, então quer dizer que não tem como proteger seu esconderijo, não é?

    Clara não demonstrou reação nenhuma, e deu uma risada para ele.

    — Encontrou meu esconderijo? Se quer roubar comida, então vai e faça. Você tem apenas hoje para fazer isso.

    Antton riu e lambeu os lábios.

    — Acha que eu já não estou com meus homens lá? Você pode tentar esconder o que quiser da velha e daquelas crianças que só dão gastos, mas não de mim. — Ele apontou mais uma vez, dessa vez, com os olhos fixados nela. — Eu te conheço, Clara. Não vou deixar que fique por cima de novo.

    — Como eu disse, você tem somente hoje, mas não para só roubar minha comida. Tem um dia para ir embora pra um lugar onde eu não o encontre.

    Antton não parecia nada medroso, apenas levou a mão à cintura, numa expressão aberta.

    — E o que você acha que vai acontecer? Eles vão voltar e ir nos confrontar? Tem ideia de que se matar um dos nossos, você vai tendo um conflito aberto? Quer isso para as crianças e idosos que Simone cuida, Clarinha?

    — Não. — Ela apontou para o Reservatório. — Está vendo aquilo lá. O número em vermelho bem no alto do Reservatório indica os Felroz, e o azul são Marcus e Dante.

    Antton não tinha preocupação até aquele momento. Sua expressão mudou, os olhos escureceram e sua postura ficou tensa. Ele mesmo agarrou a mochila com mais força.— Entendeu o que eu disse agora? — Clara não saiu do lugar por nada. Mas o viu recuar um passo. — Você vai ter um dia para pegar comida e nunca mais pisar em Kappz. Porque no momento que eles voltarem, ai eu vou atrás de você. E não pense que só porque temos certa história você acha que serei misericordiosa. Não tenho pena de vagabundo e nem pilantras. Então, vaza agora, ou eu mesmo te faço entender o porquê não gosta desse lado da cidade, babaca.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (3 votos)

    Nota