Índice de Capítulo

    Dante abriu os olhos. A luz suave o fez piscar algumas vezes antes que percebesse o detalhe mais curioso: o teto acima dele era de vidro. De vidro verdadeiro. Curvado como a parte interior de uma cuba, mas, ainda assim, feito do material mais frágil que conhecia. E acima, pairando com uma estranha serenidade, uma nuvem.

    Ela estava próxima demais.

    Muito próxima.

    Avaliação de distância: cem metros.”

    A voz de Vick surgiu em sua mente com uma naturalidade reconfortante. Fazia tempo que conversavam — ou, ao menos, ele acreditava que fazia. Havia se perdido nas palavras, nos devaneios, e em algum momento entre uma lembrança e outra, o tempo real se desfez. Agora não sabia quanto tempo havia passado desacordado.

    Vick, sempre precisa, informara sobre seu estado físico e… seu novo problema.

    Não é exatamente um problema, se você olhar como parte de um novo tipo de treinamento. Seu pai lhe ensinou tudo sobre como defender. Agora, precisa aprender a não se defender. Precisa desviar. Aparar. Observar o mundo de outra forma também melhora — e muito — a forma como enxergamos a nós mesmos.”

    Dante sorriu por dentro. Aquilo soava quase reconfortante. Claro, Vick entendia ironia. Com sorte, entenderia isso também. Ele estava longe de dominar qualquer nova filosofia. Ainda tateava no escuro, tropeçando em fragmentos de si mesmo.

    Lembre-se: seus nervos estão mais sensíveis. Sua pele, seus músculos, todos receberam uma carga altíssima de Energia Cósmica. Qualquer dano que sofrer a partir da última batalha terá, no mínimo, cinquenta por cento de impacto ampliado. Tome cuidado.”

    O aviso ecoava em sua mente quando ouviu o som sutil da porta se abrindo.

    Por instinto, fechou os olhos e permaneceu imóvel, voltando à posição em que estava. Respirava devagar. Os passos foram rápidos, decididos, e mais de uma pessoa entrou. Sentiu a presença delas ao redor da cama.

    — Como podem ver — começou uma voz masculina, metódica — este é um paciente em estado crônico de dormência. Não reage a nenhum estímulo há meses, e infelizmente acreditamos que não vá despertar tão cedo. Tivemos aqui alguns dos melhores especialistas, e todos apontam a mesma falha: a mente que não consegue mais se conectar ao corpo. É algo comum em certos pacientes expostos à Energia Cósmica. São mantidos nesse estado… suspenso. Alguma dúvida?

    Uma voz jovem respondeu. Firme, mas curiosa:

    — Eu tenho uma. Não poderíamos usar algum procedimento antigo? Algum tipo de cirurgia exploratória… só para entender o que está causando isso?

    O corpo de Dante reagiu com um leve enrijecer. A ideia de alguém mexendo em sua cabeça ou cortando seu corpo — enquanto fingia estar inconsciente — não lhe agradava nem um pouco.

    — Não — retrucou a primeira voz, num tom firme, quase didático. — Os conhecimentos antigos são imprecisos. Naquela época, ninguém compreendia a influência da Energia Cósmica nem os caminhos que ela percorre pelo organismo. Hoje, os Curandeiros — mesmo que poucos — têm uma compreensão muito mais avançada desses casos. E mesmo que fossem mais numerosos, Nancy, abrir um paciente inconsciente como este… seria um erro grave. Entendeu?

    Seguiu-se um momento de silêncio, interrompido por algumas risadas abafadas dos demais presentes. Dante percebeu o constrangimento na resposta da jovem.

    — Sim, senhora.

    As vozes se afastaram aos poucos. Os passos recuaram e a porta se fechou com um suspiro de ferro e madeira. O silêncio retornou — exceto pela respiração calma e pelo sussurro invisível de Vick em sua mente, que parecia nunca o abandonar por completo.

    E mais uma vez, Dante ficou só.

    Ao levantar a cabeça, Dante notou que as janelas se fundiam com o teto de vidro, formando uma única abóbada transparente. Era como estar dentro de um domo. O vidro, que se estendia por todas as direções, permitia uma visão quase total do exterior — exceto pela única porta metálica à frente. Ao redor, o quarto parecia suspenso, contido, isolado no ar.

    Ergueu um pouco mais o tronco e franziu o cenho. Tudo lá fora parecia… azul. Um tom denso, envolvente, como se o mundo tivesse mergulhado numa imensa pintura celeste. Só entendeu o que via quando se aproximou do vidro.

    Lá fora, colada à estrutura, havia uma imensa coluna metálica que descia para além da vista. Era como um pilar que sustentava o próprio céu. Dante abriu a boca, surpreso. Aquela coisa era colossal. Tão alta que fazia os maiores prédios de Kappz parecerem brinquedos — e isso multiplicado por dez.

    Tentou acompanhar a descida da estrutura com os olhos, mas era impossível.

    Cerca de um quilômetro e meio até o solo. Fiz a estimativa com base na vibração da base e na curvatura do suporte. Aconselho a não sair pela janela.”

    Dante deu um passo atrás.

    — Eu poderia… — murmurou, hesitante.

    Afastou-se um pouco mais e observou a plataforma onde estava. Era enorme, como um disco achatado, com níveis inferiores e superiores interligados por passarelas metálicas e colunas verticais. Lá embaixo, um mundo selvagem se estendia: uma fusão de floresta densa e oceano revolto. Mas estava longe demais. Muito longe até para seus olhos treinados distinguirem se haviam pessoas caminhando… ou criaturas esperando pela oportunidade de atacá-las.

    — Onde eu estou?

    Analisando… com base na posição das nuvens, do céu e na última triangulação conhecida, posso estimar nossa localização real. Um momento.”

    Dante se afastou da janela e sentou-se na beira da cama. Cruzou as pernas, encarando a porta silenciosa, enquanto deixava a mente processar tudo. Foi então que um pensamento surgiu — um detalhe estranho, mas inegável.

    Levou a mão aos cabelos e puxou algumas mechas para frente.

    Pretos. E brancos.

    Estavam mais longos também.

    O impacto da Energia Cósmica, claro. Ela revitalizava a matéria, rejuvenescendo suas células, dando-lhe vigor… e, paradoxalmente, tirando-lhe resistência.

    Lembrou-se de uma frase de seu pai, dita numa tarde silenciosa:

    “Quanto mais velho o corpo, mais forte ele se torna. Não confie na juventude do seu reflexo.”

    Agora, mais jovem. Mais fraco. Um presente que vinha com um preço.

    Análise completa: localização não identificada.”

    Dante soltou uma risada seca, sem qualquer humor.

    — Ah, ótimo. Mais uma vez num lugar que eu não faço ideia de onde fica. Que bênção.

    Respirou fundo, como quem aceita um destino recorrente.

    — Vick, suas funções antigas voltaram?

    Praticamente. A Energia Cósmica que absorveu não foi suficiente para quebrar a Maldição da Força, a que foi cravada em seu peito, mas reativou minha bateria. Estou operando com quase toda a minha capacidade.”

    — Ótimo. Então vamos sair daqui. Pode começar os comentários.

    Certo. O complexo parece ter várias ramificações. A julgar pelo padrão de construção, devem ser andares protegidos, com presença de guardas ou soldados. Há mecanismos de transporte vertical — elevadores ou guindastes — que devem levar ao solo. Se encontrarmos um painel de controle, o acesso não será demorado. Preciso apenas do seu toque para interagir com as máquinas.”

    Dante olhou ao redor. Nenhum sinal de suas roupas antigas. Apenas uma vestimenta preta, comprida, de tecido firme, com detalhes que lhe lembravam os trajes que usava em sua infância, nos dias em que ainda morava com os pais.

    Vestiu-se sem pressa. A roupa era confortável. Estranhamente familiar.

    Depois, estalou o pescoço para um lado, depois para o outro. Os ombros também. Sentia a energia retornando lentamente, como um rio que volta a correr após o rompimento de um bloqueio.

    — Já descansei demais. Precisamos encontrar os outros.

    Seus olhos se fixaram na porta metálica. Estava pronto para abri-la.

    Pronto para enfrentar o que quer que estivesse lá fora.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (2 votos)

    Nota