Capítulo 398: Fonte
— Você tem algo pra contar, Hassini? — A aura de Aspas se tornou pesada no cômodo, mas Dante não se abalou em nada. Os curandeiros recuaram, com medo do homem, que deu um passo a frente, mas parou em seguida.
Quando Aspas avançou, um passo apenas, foi como se tivesse tropeçado no vazio — seu corpo parou, rígido, involuntariamente. O peito dele se expandiu numa tentativa falha de puxar mais ar, no entanto, tudo ao seu redor se comprimiu em um instante.
Porque, naquele exato instante, foi a aura de Dante que escapou.
Não um escapamento proposital. Não uma ameaça lançada. O interior dele já não aguentava mais a tensã, mesmo fraturado, quebrado, reconstruindo-se, não cabia mais apenas dentro da própria carne. Uma rachadura invisível se abriu ao redor dele, e dela escorreu Energia Cósmica em estado bruto.
O chão rangeu. As paredes pareceram encolher. As luzes tremeluziram, cuspindo faíscas azuladas. Felicia caiu de joelhos, Tina tropeçou para trás e Ramon segurou-se na bancada, os olhos arregalados e o rosto empalidecendo rapidamente.
E Aspas…
— O… quê…? — tentou dizer, mas sua voz se perdeu.
Porque o mundo simplesmente desapareceu.
O calor da sala, os curandeiros, as paredes metálicas — tudo deixou de existir. Aspas se viu subitamente de pé num espaço que não possuía solo, nem teto, nem paredes. Apenas um oceano absoluto, estendendo-se até onde seus olhos podiam alcançar.
O céu era tão claro que doía. Dois azuis colidindo, formando uma linha infinita no horizonte — uma divisão onde era impossível distinguir onde acabava o mar e começava o céu. A brisa que não existia parecia, ainda assim, tocar sua pele, carregada de um cheiro antigo, ancestral, de sal e algo mais… algo vivo.
Aspas girou o pescoço, atordoado, procurando entender onde estava, mas quando olhou para baixo — não havia água. Não havia chão. Havia… olhos.
Milhares. Milhões. Bilhões.
Olhos de todos os tamanhos, alguns maiores que navios, outros pequenos como grãos de areia, se abriam lentamente no manto abaixo dele. E todos olhavam diretamente para ele.
Não com fome. Nem com raiva. Nem com compaixão. Apenas olhavam.
Uma presença. Um abismo.
Aspas sentiu a espinha se arquear, seus dedos tremerem. Teve a nítida sensação de que, se aquele lugar existisse por mais um segundo, ele próprio começaria a se desfazer. Primeiro a pele, depois a carne, depois os ossos. Restaria apenas… sua mente vagando.
— Não… — conseguiu sussurrar. — Isso não… não é… real…
Piscar foi tudo o que precisou.
E então, o mundo se recompôs num estalo.
A sala reapareceu, com suas paredes metálicas, o cheiro do metal e vapor quente, e o zumbido das lâmpadas tremeluzentes. Mas o corpo de Aspas ainda tremia. Ele percebeu, atônito, que havia dado dois passos para trás, sem perceber. E que seu punho direito estava tão apertado que as unhas rasgaram a própria pele.
Os curandeiros o olhavam, esperando, tensos, como se também tivessem sentido parte daquilo, mas sem compreender.
E Dante… estava ali, exatamente do mesmo jeito que antes.
De braços erguidos, num gesto de quem se defende, os ombros relaxados, como se aquilo, fosse lá o que fosse, não tivesse sido intencional. Sua expressão estava carregada, sim, de surpresa, mas também de um desconforto quase cômico.
— Olha, eu sei que parece estranho… — Dante respirou fundo, lançando um olhar meio culpado para o vazio. — …mas eu também acabei de descobrir isso da regeneração. Não quero problemas para ninguém. Se eu puder ter um lugar para descansar, eu fico agradecido.
Sua voz não era nem defensiva nem agressiva. Apenas sincera. Desarmada.
Aspas não respondeu de imediato. Seus olhos piscavam rápido, como se tentassem focar de novo no aqui e agora. A boca tremia. Ele apertou os lábios e desviou o olhar, fixando-se no chão. Ele precisava voltar para o presente, deixar o abismo longe.
— O que foi…? — Dante perguntou, mais curioso do que preocupado.
— Não é nada. — Agora, mais cansado, mentiu descaradamente. — Ramon, leve ele para a fonte. Deixe que se banhe e coma. Eu… preciso me encontrar… com o chefe agora.
Dante o viu sair de cabeça, sem entender o que tinha acontecido com ele. O rosto dos outros também o evitavam, esquivando o olhar para os lados ou para baixo. Ele não tinha feito nada…
O som da porta pesada se abrindo reverberou como um eco abafado nas paredes metálicas. Ramon segurou a maçaneta, fazendo um gesto educado com o braço, permitindo que Dante passasse primeiro.
Ao atravessar o vão, Dante deu de cara com um ambiente que parecia ter sido arrancado de outro mundo — um contraste absurdo com os corredores frios e funcionais do restante da instalação.
O pátio era, de fato, uma fonte, como Aspas havia descrito, mas a palavra parecia pequena demais para aquilo. Uma bacia enorme, moldada em pedra escura, de textura áspera, circundava quase todo o recinto, formando um anel que se preenchia com uma água de tom levemente esverdeado. No centro, uma depressão mais profunda permitia que o líquido borbulhasse, liberando um vapor espesso e constante que subia em espirais lentas até o teto.
Lá no alto, grades metálicas e dutos de sucção trabalhavam incessantemente, puxando parte da névoa, evitando que o ambiente ficasse completamente tomado. Ainda assim, o calor era palpável — úmido, pesado, quase líquido. Bastou um minuto dentro daquele espaço e Dante já sentia gotas de suor escorrendo por sua nuca.
O cheiro também era peculiar. Uma mistura de minerais, ervas queimadas, resinas doces e algo amargo, medicinal, que se infiltrava pelas narinas e parecia dissolver qualquer tensão nos músculos. O som da água era constante, um borbulhar grave, acompanhado do ocasional pingar dos dutos e do sopro do vapor sendo puxado pelas ventoinhas.
Ramon fez um gesto simples, com a mão espalmada, indicando a fonte:
— Por favor. — Sua voz parecia mais relaxada ali, quase respeitosa. — Tire os casacos e entre na bacia. A água foi preparada com ervas especiais. Elas aceleram a regeneração. É uma das poucas fontes que nossa família conseguiu manter desde que deixamos Selenor.
Dante olhou ao redor enquanto desabotoava os casacos. O tecido pesado estava úmido nas bordas, carregado do frio dos corredores anteriores. Pendurou cuidadosamente a peça num suporte de madeira, dobrando-a com certa reverência — não pela roupa, mas pelo simples fato de estar, finalmente, deixando parte daquele peso para trás.
Quando se virou, percebeu que Ramon franzia a sobrancelha de novo, olhando fixamente para seu ombro esquerdo.
— Ah. — Dante sorriu, ajeitando o pequeno animal com a ponta dos dedos. — Não se preocupe com ele. Viaja comigo. É… um amigo.
Nick, o pequeno ser, encolhido em seu ombro, soltou um grunhido quase preguiçoso, ajeitando as patinhas, como se entendesse a apresentação.
Ramon hesitou por um segundo, mas logo assentiu com leveza.
— Entendido, senhor. — Pegou o restante das roupas que Dante ia retirando, dobrando-as com eficiência. — Quando estiver satisfeito, sua roupa estará no armário. Vou pedir que lavem tudo, então… se puder permanecer pelo menos trinta minutos, será o ideal para a regeneração.
— Perfeito. — respondeu Dante, enquanto terminava de despir-se.
Caminhou até a borda da fonte, sentindo a pedra sob os pés descalços. O calor que subia do líquido era intenso, quase agressivo, mas, ao mesmo tempo, convidativo. Seu corpo inteiro pedia para pular logo, mas ele se manteve.
Testou com o pé, mergulhando até o tornozelo. O calor subiu de imediato pela perna, uma onda elétrica de relaxamento, fazendo-o suspirar involuntariamente.
Sem esperar muito, deu mais um passo, depois outro, até que a água cobrisse suas pernas, a cintura, o tronco — e, por fim, afundou o corpo quase inteiro, deixando apenas os ombros, pescoço e cabeça expostos.
O choque térmico virou um abraço reconfortante. Os músculos relaxaram. O ardor dos cortes, dos hematomas, das articulações tensionadas… tudo parecia escorrer, dissolvendo-se naquela água quente e densa.
Dante fechou os olhos. A cabeça recaiu para trás, apoiada na borda de pedra. Inspirou fundo, deixando o vapor preencher seus pulmões, e soltou o ar num suspiro pesado, quase gutural.
— Deuses… — murmurou. — Eu não lembrava… não… eu nem sei se alguma vez tive um banho assim.
Não lembrava mesmo. Não de algo tão simples e, ao mesmo tempo, tão valioso. A memória tropeçava em imagens desconexas: chuvas frias, água de rios, banhos rápidos entre um dia e outro, tanques sujos… Nada sequer chegava perto daquilo.
Seu corpo parecia pesado. Pesado de uma maneira estranha, boa. A gravidade o mantinha deitado, pesado e reconfortante.
Nick, que até então observava tudo, bocejou. Seu corpinho se esticou, as patas dianteiras se alongaram, e num movimento preguiçoso, o bichinho cresceu — dobrou de tamanho — e se ajeitou sobre o peito de Dante. Deitou-se devagar, envolvendo-se na água e no calor, se ajustando para não ser um pequeno fardo.
— Nick… — soltou com uma lufada, dormindo mais rápido do que Dante esperava. E sorriu por isso. Ele precisava aproveitar também.
O calor, o cheiro das ervas, o conforto… foram demais para ambos.
Dante nem percebeu quando a respiração ficou mais lenta. Os olhos pesaram. Os pensamentos se tornaram borrões distantes, perdendo forma, até desaparecerem completamente. Tudo se tornou escuro.
E assim… simplesmente apagou.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.