Capítulo 400: Jogo
— Você tem uma família, senhor Hassini? — A pergunta veio sem rodeios, mas o tom… havia algo estranho nele. Não era acusatório, nem inquisitivo. Era quase… pessoal.
A cabeça do homem tombou um pouco para o lado, como quem observava não só Dante, mas cada detalhe que compunha aquele momento. As gotas que escorriam dos fios molhados de cabelo, o vapor que ondulava entre eles, o leve ronronar de Nick, aconchegado no ombro de Dante.
Mas Dante, mesmo meio relaxado pela água quente, já não tinha mais dúvidas. A postura descontraída, a voz polida, o sorriso de quem estava sempre dois passos à frente… aquilo não enganava ninguém que vivesse tempo suficiente no submundo das famílias.
Yuri Saser.
O chefe da família Saser.
O homem que, em qualquer outro contexto, seria visto cercado de soldados, tronos improvisados e discussões sobre territórios e acordos. Nunca — nunca — Dante imaginou que ele apareceria assim: sem guarda-costas, sem formalidades, nu até os ombros, apenas mais um corpo imerso na fonte, falando como se fossem dois velhos conhecidos.
Depois de um segundo, Yuri cruzou os braços, apoiando-os na beirada de pedra da fonte. Seus olhos eram de um verde seco, duro, quase opaco. Não havia nada de bondoso ali, mas também não havia raiva. Só… cálculo. Medição. Curiosidade real, mas também perigosa.
— Tem pessoas importantes? Alguém que você… gostaria que nada acontecesse? — Sua voz baixou meio tom, adquirindo uma gravidade sutil. — Por que não me conta sua história? Eu gostaria de ouvi-la.
Dante deslizou uma das mãos sobre as costas de Nick, sentindo a respiração calma do pequeno Sugador. Ao toque, o bicho se remexeu, deu uma fungada sonolenta e se acomodou melhor, praticamente derretido sobre o ombro dele, absorvendo não só o calor da água, mas também da pele de Dante. Era uma cena quase cômica, se não fosse pelo subtexto afiado que cortava o ar entre aqueles dois.
— Olha… — Yuri soltou uma risada curta, deslizando a mão pela barba malfeita. — Esse pequeno aí nas suas costas têm mais agressividade do que você. — O sorriso se abriu um pouco mais. — E então? Quer me contar… ou vamos ficar aqui encarando um ao outro até os dedos enrugarem?
Dante não respondeu de imediato. Girou o pescoço, escorando melhor a cabeça na pedra, deixando o olhar perder-se no teto por alguns segundos. Respirou fundo. A água estava quente, relaxante, mas agora parecia não aquecer mais nada dentro dele.
— E o que você quer saber? — Sua voz voltou no mesmo tom anterior: calma, seca, pragmática. Sem rodeios.
O chefe da família Saser descruzou os braços lentamente, afundou as mãos na água e observou as pequenas ondas que se formaram. Depois, ergueu o olhar novamente, diretamente para Dante.
— Acho que podemos começar… — disse, inclinando levemente o queixo. — Pelo seu nome. O nome de verdade. Não o que você anda usando por aí. — Uma pausa proposital. — Depois, de onde veio. Suas origens. Por fim… — Seus olhos apertaram, e a voz ganhou uma nota mais grave, mais funda. — Não deixa de ser importante saber… como exatamente você chegou até aqui. Até nós. Até Selenor.
O silêncio que se seguiu foi quase opressivo. As ventoinhas lá em cima giravam, sugando o vapor, mas nenhuma delas parecia dar conta de dissipar a tensão que pairava naquele espaço. As gotas que caiam das tubulações marcavam o tempo. Tic. Tic. Tic. Como um relógio invisível, lembrando que tudo ali era temporário. Até a calma.
Dante fechou os olhos por um segundo, respirou fundo e apertou Nick de leve, sentindo o corpinho quente vibrar contra ele. As palavras estavam na boca… mas cada escolha seria, a partir dali, uma lâmina apontada para algum lugar. Para ele. Para Nick. Para o passado tão perto e tão distante ao mesmo tempo.
Quando abriu os olhos, encarou Yuri com aquela expressão que tantos conheciam. A mesma que ele usava quando decidia se alguém viveria ou não. Calma. Fria. E, acima de tudo, calculada.
— Cuidado com as respostas que você pede, Saser. — A voz era serena, mas carregava uma sombra. — Elas podem ser mais pesadas do que você quer ouvir.
Yuri não recuou. Pelo contrário. O sorriso dele cresceu, largo, divertido, quase sincero.
— Perfeito. — E bateu palmas uma vez, devagar. — Então, vamos começar.
Nick rapidamente saltou para frente, se jogando no seu peito novamente, e deitando com metade do corpo na água. Em simplesmente segundos, ele relaxou novamente. Era estranho, aquela pequena criatura ter tanto desejo pelo sono.
— Sendo sincero… — Dante respirou fundo, sentindo o vapor quente que ondulava pelo recinto. — Faz tempo desde que converso sobre isso com alguém. — Seus olhos ficaram baixos, como se vasculhassem lembranças que estavam enterradas sob quilômetros de poeira e silêncio. — Meu nome… minha mãe me deu como Dante. Apenas Dante.
O som da água se deslocando preencheu o espaço vazio. Yuri Saser arqueou as sobrancelhas, mas não disse nada de imediato. Apenas observou. Avaliando.
— Somente Dante? Sem um sobrenome? — Sua voz deslizou, sem julgamento, apenas carregada de curiosidade.
Dante assentiu lentamente, passando a mão sobre as costas de Nick, que remexia o corpinho no peito dele, agora mergulhado num som profundo.
— De onde vim… não temos sobrenomes. — Sua voz soava rouca, quebrada em alguns pontos, não por fraqueza física, mas pelo peso daquilo que dizia. — Pelo menos não as famílias que… não tinham nada. Sobrenomes eram um luxo. Algo que representava uma casa, um território, um poder. Meus pais… eles não queriam que nós nos filiássemos a nada que não podíamos defender. — Olhou de relance para Yuri. — Por isso, sou só Dante. O “Hassini”… foi uma escolha. Uma amiga me deu. Um nome falso, para que aqueles que me caçavam não me encontrassem. Aqui… em Selenor… se é assim que vocês chamam esse lugar.
Yuri não disfarçou um sorriso curto. Suave. Mais de compreensão do que de deboche. Assentiu devagar, cruzando os braços sobre o peito largo.
— Nossa conversa está sendo… — ele girou a mão no ar, desenhando círculos no vapor — muito produtiva. Sinto que posso me conectar ao seu passado. Isso é importante. — Fez um gesto quase preguiçoso com a mão. — Continue. De onde você veio, Dante?
Dante fechou os olhos por dois segundos, respirou fundo e ajeitou Nick, que soltou um grunhido sonolento. A pergunta parecia simples. Mas a resposta não era.
— Essa pergunta… — respirou mais uma vez — é um pouco mais complexa. — Seus olhos se abriram, olhando o teto encoberto de vigas de ferro e tubos, como se procurasse uma rota de fuga para pensamentos que doíam. — Eu nasci num lugar chamado… Capital. É um aglomerado, igual a esse. Bases, torres, estruturas improvisadas. Pessoas que vivem de missões, de trocas, de algo que ainda não tinha encontrado… sobrevivendo. Mas é… — fez uma pausa, mordendo o lábio inferior — é muito longe daqui.
Yuri estalou a língua contra o céu da boca, observando-o com o que parecia uma pontinha de apreensão disfarçada.
— Perigoso? — perguntou, com o tom de quem não se refere ao perigo físico… mas às implicações. À possibilidade de que aquilo que formou Dante pudesse, um dia, alcançar Selenor.
Dante apertou os olhos, refletindo na pergunta e em tudo que ela carregava.
— Não saberia te responder direito… — respondeu, olhando diretamente para Yuri. — Mas não acho que você deva se preocupar. É… distante. Muito distante. — A voz saiu carregada de algo que ele não percebeu se era tristeza, resignação… ou cansaço. — Não sei nem dizer quantos anos você caminharia até chegar lá.
Foi nesse instante que, lá no fundo da sua mente, a voz de Vick, quase natural como um humano, aquela que era parte dele, mas também algo além dele, se fez ouvir.
“Passo a passo, considerando o terreno, obstáculos e as rotas que cruzamos desde Kappz… Calculando… Sessenta e sete anos caminhando.”
O estômago de Dante revirou. Aquilo não era só uma distância. Era uma sentença. Uma parede intransponível.
Yuri sorriu, não surpreso, como se tivesse ouvido aquilo também.
— Impossível de voltar. — concluiu ele, com a naturalidade de quem comenta sobre o clima. — Deveria ouvir menos essa voz na sua cabeça, rapaz. — Deu uma risada breve, sacudindo os ombros. — Posso te chamar assim, certo? “Rapaz”. Porque, em idade, você é mais novo que eu. Só o corpo é mais velho.
Dante levantou a cabeça abruptamente, os olhos se arregalaram e um som gutural, rouco, ecoou do peito de Nick, que rosnou baixo, com os dentinhos minúsculos aparecendo, como se, mesmo adormecido, percebesse a mudança de tensão.
— O que…? — Dante apertou os punhos.
— Calma. — Yuri ergueu as mãos, ainda sorrindo. — Não precisa ficar irritado, senhor Hassini. — Passou a mão lentamente na própria cabeça, afastando os fios molhados. — Todos temos nossas habilidades. Alguns, físicas. Outros, mentais. Ler a mente, decifrar pensamentos… ou talvez o passado… — Os olhos dele se apertaram levemente, com diversão, mas sem arrogância. — É algo que eu faço muito bem.
Dante soltou o ar pelos dentes, deixando escapar uma risada curta, amarga.
— Então… você já sabia. Sabia de tudo isso. E mesmo assim perguntou. — Balançou a cabeça, com um sorriso entre a vergonha e a incredulidade. — Engraçado. Me fez me abrir, sabendo que…
— Sabendo que palavras pesam mais do que pensamentos. — completou Yuri, com uma piscadela lenta. — As pessoas me subestimam, Hassini. Acham que sou apenas um chefe sem dom, sem poder. E é exatamente aí… quando me subestimam… que ganho minhas melhores batalhas. — A voz baixou, ganhando uma nota sombria. — Por isso, quando tocam na minha família eu deixo de ser o homem que guarda os problemas.
Dante encarou-o por alguns segundos, sério, imóvel. E, naquele instante, soube que aquele homem, por trás do tom amigável e da fala mansa, era uma fera tão perigosa quanto qualquer Fragmento da Energia Cósmica.
— Eu entendi isso. — respondeu, finalmente. — Então você sabe como eu vim parar aqui.
— Em partes. — Yuri girou o pescoço, estalando as vértebras. — Vi suas batalhas. E, sinceramente estou impressionado. Você enfrentou coisas que… a maioria dos homens daqui nem sequer conseguiria olhar. E venceu. — Bateu levemente com os dedos na beirada da fonte. — Enfrentar um Fragmento da Energia Cósmica e, depois, uma criatura que manipulava essa mesma energia? — Abriu as mãos, num gesto sincero. — Aqui, ninguém teria conseguido. Nenhum.
Dante bufou, olhando para a própria mão, como se ela segurasse uma verdade que ele mesmo não queria aceitar.
— Como se isso fosse verdade.
Yuri se inclinou na direção dele, o rosto mais perto, e com um sorriso largo — agora, sim, carregado de um certo tom paternal, mas também afiado como navalha — disse:
— Por que você não confia em si mesmo, Dante Hassini? Por que questiona suas vitórias? — E apertou os olhos. — Aliás… foi exatamente isso que sua colega te perguntou, não foi?
Dante gelou. As palavras o atravessaram como lâminas finas, quase imperceptíveis, mas certeiras. Elas abriram feridas que ele evitava olhar há muito tempo. Memórias. Escolhas. Arrependimentos.
Escolher não ajudar quando precisavam na Capital…
Escolher sobreviver, quando podia ter ficado.
Escolher fugir, quando podia ter ficado para morrer junto.
Mas, antes que ele pudesse organizar qualquer resposta, Yuri já estava se levantando. O corpo largo saiu da água, e um ajudante imediatamente o envolveu com um robe de tecido escuro e grosso. Ele ajeitou o tecido nos ombros, respirou fundo e, com uma última olhada sobre o ombro, concluiu, quase num tom que soava como um ensinamento:
— Não são suas escolhas que definem seus passos. — Seus olhos brilhavam no meio do vapor, como duas fendas verdes. — É o que você faz para chegar até o seu objetivo. — Começou a caminhar, mas parou por um segundo, olhando de lado. — Estarei te esperando, senhor Hassini. Depois… conversaremos melhor. Aproveite seu banho.

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