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    Yuri fez um gesto curto com a mão, firme, elegante, pedindo que Dante se aproximasse. Um convite silencioso, que tinha mais o tom de uma ordem disfarçada. Ao mesmo tempo, seus olhos acompanharam, quase sem mover o rosto, a saída do homem que antes recebera a bronca. Ele aguardou, imóvel, até que o som dos passos se dissipasse no corredor e a porta automática selasse atrás.

    Então, voltou a Dante e indicou, com um segundo gesto mais calmo, uma das cadeiras reforçadas na lateral da mesa de comando. Dante, porém, permaneceu de pé. Não por desafio, mas por hábito. Desconfiava, observava, media… e talvez, também, não sabia se aquilo era um convite de verdade ou uma armadilha disfarçada de hospitalidade.

    Nunca sabia o que essas pessoas realmente pensavam.

    Antes que pudesse decidir, o som de passos precisos se aproximou. O mordomo, que se movia como uma extensão da própria sala. Seus sapatos de sola rígida faziam um som quase ritmado, cada passada no mesmo compasso.

    — Senhor. — A voz dele rompeu o silêncio com a sobriedade de quem traz más notícias. — Creio que… todos os caminhos que imaginávamos serem os certos… não vão levar a nada.

    Contra Yuri, a formalidade do mordomo parecia evaporar. Sua voz soava quase humana agora, levemente embargada. As palavras carregavam algo além da preocupação: carregavam um toque de frustração e, talvez, de impotência.

    — Não é algo que eu goste de admitir… — seus olhos desviaram, encarando o chão por um instante. — Mas precisamos tomar uma providência contra as terras. O pequeno Joy… não pode ser feito de refém. Nem tratado dessa maneira. Isso… isso é inadmissível.

    A palavra “inadmissível” reverberou na sala como se tivesse peso físico. A tensão era palpável. O ar parecia mais pesado, como se até a gravidade participasse daquele conflito.

    Dante não respondeu. Ao contrário, seu olhar vagueou pela sala até pousar sobre uma mesa lateral, onde havia um pote — simples, de vidro espesso, com tampa metálica — recheado de biscoitos achatados e secos, provavelmente feitos de grãos locais. Sem cerimônia, atravessou o espaço, esticou a mão e enfiou os dedos no pote.

    O som seco do vidro contra os biscoitos ecoou no silêncio desconfortável. Pegou dois — um para si, outro para Nick, que se ajeitou no ombro, farejando curioso.

    O estalo da voz de Yuri veio instantâneo, baixo, mas tão cortante quanto uma lâmina embainhada.

    — Hassini

    Dante congelou no movimento, com a mão no meio do caminho. Girou o rosto devagar, meio com a boca apertada, mastigando antes que pudesse se justificar.

    — Eu posso pedir que preparem uma refeição apropriada para você. — Yuri cruzou os braços, o olhar sério, a postura mais rígida do que antes. — Acredito que… esteja com fome.

    — Não. Não precisa. — respondeu, abanando a mão como quem espanta um pensamento irrelevante. Enfiou o biscoito na boca, mastigando de qualquer jeito, e estendeu o outro para Nick, que o pegou com as patinhas, farejando antes de dar uma mordida pequena. — Podem continuar. Não se preocupem comigo.

    Yuri suspirou, mas não contestou. Apenas lançou um olhar cúmplice ao mordomo, e então voltou a se concentrar.

    — Boa parte das nossas terras… — retomou, caminhando até o painel, onde uma projeção holográfica de uma região serrana piscava em vermelho. — …se tornaram Lagmoratos por causa dos Felroz. — O nome foi cuspido com desprezo. — E mesmo que tentemos culpar uma das outras famílias, no final… os Saser seriam ridicularizados.

    Ele passou a mão pela barba, pensativo, olhando para o mapa flutuar no ar.

    — Nossa família é grande, sim… — apertou os olhos. — Mas… como explicar que não conseguimos proteger nem mesmo nossas próprias terras?

    Negou com a cabeça, os dedos tamborilando no console metálico.

    — Depois da nossa última perda, eles entenderam. Todos eles entenderam que estamos… diminuindo. Que estamos mais fracos.

    O mordomo se adiantou meio passo, as mãos cruzadas nas costas, mas a voz mais carregada agora.

    — E os minérios que eles apresentaram ao Conselho? — A pergunta soou quase como uma acusação amarga. — São das nossas terras, senhor. Não é coincidência. Nem disfarçam mais.

    Dante apertou o maxilar, respirando fundo. Seu olhar cruzava de Yuri para o holograma, e então para o mordomo. Ele não tinha visto da maneira deles. Por sorte, estava presente.

    Então era isso. A criança — Joy — não foi apenas abandonada ou esquecida por descuido. Foi deixada pra morrer. Uma peça sacrificável num jogo de poder. Exatamente como Aspas dissera.

    Mas a verdade, ouvir assim, crua… pesava mais.

    — Como eles estão fazendo isso é… um bom questionamento. — Yuri levou dois dedos à têmpora, massageando como quem sustenta uma dor de cabeça constante. — Se eu soubesse, teria cortado isso pela raiz.

    A voz dele estava mais amarga agora. Cansada, até.

    — Gostaria de poder participar das reuniões do Conselho. — Seus olhos endureceram, a mão apertou o console até ranger. — Mas a Rainha sequer viu meu pedido.

    Por um segundo, ficou um silêncio opressor. Apenas os sons dos sistemas, o leve zumbido dos painéis e o rangido mecânico do teto girando acima preenchiam o espaço.

    — Eu acho que posso ter uma informação interessante.

    Eles viraram para Dante, juntos.

    — Sei que gostaria de ajudar, mas já fez mais… — Yuri fez com que seu mordomo parasse. — Senhor?

    — Qualquer informação é importante. Ainda mais por termos um problema influenciável no meio disso tudo. Minha esposa ainda está no conselho, então, não quero que nada ocorra lá em cima.

    O Mordomo concordou, mantendo um olhar sereno para Dante.

    — O que você sabe?

    — Não é o que eu sei, é o que eu vi. — Dante apontou para o holograma do terreno. — Durante minha viagem, quando era Capitão de um navio, enfrentei algumas pessoas que tinham habilidades bem diferentes. E uma delas era conseguir controlar Felroz parcialmente quando estavam em contato com elas.

    Yuri cruzou os braços.

    — E o que quer dizer com isso?

    — Dinastio e eu enfrentamos um Felroz na floresta antes de encontrarmos Joy. — Dante percebeu que os olhos de Yuri Saser mudaram. Ele estava… lendo seus pensamentos ou seu passado. — E quando eu o derrotei, todos os outros receberam uma informação de recuar. Nunca vi Felroz normalmente coordenar para fugir. Eu já…

    — enfrentou inimigos demais para conseguir identificar esse padrão. — Yuri concordou junto da afirmação. — Então, possivelmente os Felroz estão conectados a alguém. Mas, não sabemos quem é.

    Dante deu de ombros.

    — E o que isso importa? Vocês acabaram de dizer que tem terrenos que foram tomados. Não é só mais fácil…

    — Acertar os lugares que eles estão e ver de onde vão vir os outros. — Novamente, Dante já estava começando a se irritar com essa habilidade irritante dele. — Se conseguirmos acertar os lugares, o Lagmorato cai.

    — Ou melhor ainda… — estendeu a mão, esperando a próxima frase ser puxada da sua cabeça. Ficou alguns segundos em silêncio, olhando de um para o outro. — Droga. Achei que você ia ler minha mente de novo.

    Então, Yuri olhou para Cleny, e os dois… caíram na risada.

    Uma risada contida, elegante, mas genuinamente divertida. Como se, por alguns instantes, toda aquela tensão, intriga e guerra pudessem ser esquecidas.

    Dante girou a cabeça, abaixou-a e passou a mão pelo rosto, meio constrangido, meio irritado.

    — Tsc… que inferno.

    Yuri ajeitou a gola da roupa, recuperando a compostura, e respondeu, mais leve, mas ainda carregando aquela aura de superioridade confortável.

    — Não se preocupe, Hassini. — ajeitou um anel no dedo, olhando para ele — Não faço isso por mal. — E, então, estendeu a mão, aberta, como se oferecesse a explicação como um presente. — Minha habilidade não é energética. Nem corporal. Nem mágica no sentido tradicional. Ela é… psíquica. Cognitiva. Funciona por impulsos, reflexos, sinapses. Às vezes, quando alguém abre uma linha de pensamento forte o suficiente… eu… simplesmente… capto.

    Cleny completou, sério, firme:

    — E minha habilidade complementa. Eu vejo através dos olhos dos outros. Das intenções. Dos pequenos gestos. Dos sinais que a maioria ignora.

    Dante cruzou os braços, balançando a cabeça devagar, absorvendo aquela informação. Eram uma dupla muito forte para jogos políticos, mas não era só por isso que eles agiam. Joy foi tratado como um brinquedo.

    Eram vidas em jogo.

    — Sabe… por um segundo eu achei que vocês faziam isso o tempo inteiro. — arqueou uma sobrancelha. — Tá parecendo que vocês leem as legendas da minha vida.

    Yuri soltou outro sorriso, dessa vez mais relaxado.

    — Não… — cruzou os braços. — Só completamos suas frases porque são… — deu um passo, curvando um pouco o tronco para frente, como quem confidencia algo — óbvias demais. — Piscou, divertido. — E, ainda assim… me deu uma ideia excelente.

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