Capítulo 408: Estruturas Biológicas
O Felroz arqueava o corpo para frente, os músculos tremendo sob a pressão, as garras cravadas no solo gelado enquanto tentava, inutilmente, se arrastar para longe do aperto. As patas dianteiras abriam sulcos na neve, puxando a terra congelada numa tentativa desesperada de fugir. Mas, por mais que esperneasse, tremesse e forçasse cada fibra do próprio corpo, o aperto de Dante parecia uma âncora impossível de romper.
Os olhos da criatura — grandes, vítreos, cortados por fendas verticais — se fixaram nos dele. E naquele instante, tudo mudou.
Era como ser tragado para outro espaço, um abismo que não tinha som, não tinha vento, não tinha chão. Um mar negro, profundo, repleto de olhos. Centenas. Milhares. Alguns imóveis, outros piscando, outros se movendo como se orbitassem algo maior, algo indescritível. No centro disso, uma figura. Um homem. Ele próprio. E toda aquela imensidão parecia… olhar. Estudar. Julgar.
Dante apertou ainda mais os dedos, sentindo o couro quente e elástico do pescoço da criatura sob a mão. O Felroz vacilou. Seus movimentos, antes frenéticos, começaram a diminuir, perderam força. O arrastar das garras ficou mais lento, mais curto, até que a criatura simplesmente… cedeu. E não foi por força. Não foi um esmagamento. Era como se, depois daquele contato, ela aceitasse sua condição de presa. De inferior.
E era isso que tornava aquilo ainda mais estranho.
Ele sabia quando vencia uma luta pelo cansaço do inimigo. Sabia quando o esmagava na pura brutalidade. Mas aquilo… não era. Ele não apertava mais do que o necessário para manter o controle. Não queria matá-la. Não ainda.
A voz de Vick surgiu, cortando seus pensamentos, carregada de cálculos e dados.
“Pulsando Energia Cósmica. Verificando se existe registro biológico humano findado na rede neural da criatura. Processando…” — Uma breve pausa, e então ela concluiu — “Encontrado. Níveis de Energia Cósmica não-humana detectados.”
Dante franziu as sobrancelhas.
— O que isso significa, Vick?
“O Felroz foi exposto a uma quantidade de Energia Cósmica suficientemente alta para provocar alterações estruturais. Evolução forçada.” — O tom dela parecia quase mais sério do que antes. — “Possui uma malha biológica parcialmente comparável ao seu primeiro inimigo em Kappz, o que enfrentou no tanque de contenção. Contudo… há mais. Existe consciência.”
O aperto de Dante no pescoço da criatura afrouxou por um instante, não por compaixão, mas por pura curiosidade. Seus olhos percorreram cada detalhe do Felroz. As veias pulsando sob a pele grossa, o vapor saindo das narinas, o tremor involuntário das patas traseiras. Nunca havia visto um desses reagir assim. Nunca.
Era estranho. Quase desconfortável.
— Desde quando você consegue olhar dentro de um inimigo desse jeito? — perguntou sem tirar os olhos da criatura. — Você não fazia isso em Kappz. Nem quando enfrentei aquela aberração.
“Na ocasião, sua emissão de Energia Cósmica era tão alta que ofuscava meu sistema de leitura interna. Agora, após a alteração celular decorrente do contato com o Bastardo, minha conexão neural com seu corpo permite acessar partes antes indisponíveis da sua malha cognitiva.” — Uma breve pausa. — “Simplificando: agora posso acessar funções que antes eram… bloqueadas.”
Dante respirou fundo, sentindo o vapor quente escapar pela boca.
— Parece que até você esconde uns segredos, Vick — comentou, apertando mais uma vez, mas não o suficiente para esmagar. — E me diz… ela entende alguma coisa? — Seus olhos se apertaram, analisando cada microexpressão do Felroz. — Consegue me ouvir? Não deve ser pela minha língua, imagino.
“Não. A língua humana é uma linguagem morta para criaturas bioenergéticas como os Felroz.” — A resposta veio firme. — “Para espécies que operam com consciência baseada em padrões de Energia Cósmica, é necessário um protocolo de tradução neural. Mesmo que eu iniciasse agora, sua capacidade atual não seria suficiente para interpretar. A estrutura mental dessa criatura funciona em camadas. Camadas que sequer podemos acessar com precisão. No entanto, isso não se aplica a Moonlich. Ele foi… diferente.”
Dante respirou fundo, fechando os olhos por alguns segundos.
— Precisava me lembrar disso? — murmurou, rangendo os dentes. Apertou os dedos, sentindo o Felroz estremecer de novo. — E honestamente… não sei se tenho mais utilidade pra você. Se eu te soltar, vai me atacar. Então…
A frase não terminou. O alerta de Vick surgiu no canto da visão, vibrando.
“Sustento de Energia Cósmica identificado. Potencial de aceleração no desenvolvimento do organismo associado: Sugador Nick. A absorção controlada da malha bioenergética deste espécime pode induzir um estado de evolução adaptativa em Nick.”
Dante congelou. Os dedos relaxaram quase no mesmo instante. A mão permaneceu no pescoço da criatura, mas o aperto virou controle. Não destruição.
— Espera aí… explica melhor isso. — A voz saiu mais grave, mais pesada. — Tá me dizendo que se eu mantiver essa coisa viva, o Nick pode evoluir?
“Correto. O tecido energético dela possui uma sequência de padrões cósmicos que podem ser processados pelo organismo do Sugador.” — Vick fez uma pausa, como se calculasse os riscos. — “Recomendo captura. Não extermínio.”
Dante soltou uma risada seca, baixa, carregada de ironia.
— Tá bom… tá ficando cada vez melhor. — Ajustou o corpo, pressionando um dos joelhos contra as costas do Felroz, imobilizando-o de vez. — Então, se vai ser assim… acho que você vem comigo, monstrinho.
— Vick, ensine o Nick. Ele precisa começar a entender.
A resposta veio rápida, mas carregada de uma entonação levemente diferente, quase orgulhosa.
“Eu poderia dividir uma parte da minha consciência para criar uma sub-IA dentro do Sugador, assim como fiz quando estava acoplada ao sistema de seu pai. No entanto… o vínculo neural que vocês possuem é suficientemente forte. Consigo estabelecer comunicação direta com ele, sem necessidade de divisão estrutural.”
Dante virou ligeiramente o rosto, observando Nick ali, encolhido sobre seu ombro. O pequeno Sugador, até então quieto, parecia atento, com os olhinhos semicerrados e as garras finas apertando de leve a roupa de Dante.
De repente, Nick se moveu. Levantou a pequena mão, encostou-a no ombro do homem e, como se fosse natural, um pulsar se espalhou. Um calor tênue percorreu o braço, depois o tórax, depois o pescoço e subiu até a cabeça. Não era uma invasão. Não era um ataque. Era… uma confirmação. Um gesto quase infantil, quase carinhoso. Um “eu estou aqui”, mas transmitido sem palavras.
Dante parou por alguns segundos, os olhos apertados, atento. Seu corpo estava acostumado a esperar que algo explodisse, que algo saísse errado. Mas nada aconteceu. Nenhuma dor. Nenhuma distorção. Apenas aquela pulsação suave, quase reconfortante.
Nick respirou fundo, inflando as pequenas narinas, e balançou a cabeça para cima e para baixo, num movimento que só podia ser interpretado como entendimento.
— Nick… — chamou Dante, meio surpreso, meio curioso.
“O vocabulário de um Sugador é limitado pela quantidade de Energia Cósmica que possui. A cognição, a articulação e até mesmo a formação vocal estão atreladas diretamente à malha energética que ele absorve. Aumentando esse consumo, o processo de desenvolvimento se acelera. E, consequentemente, ele se tornará mais… eficiente. Mais consciente.”
Dante olhou para o pequeno, que agora apertava de leve sua mão, como se testasse a própria força.
— Então é por isso que ele dorme tanto? Porque não come o suficiente?
“Correto. Assim como eu, ele também possui funções vinculadas à sustentação energética. Quando não há uma quantidade mínima de Energia Cósmica disponível para manter as funções cognitivas ativas, ele entra em estado de hibernação.” — A voz de Vick pausou, acessando dados. — “Registro localizado. Conforme os arquivos da IA Veronica II, de Juno, os Sugadores são uma subespécie dos Felroz. Um padrão evolutivo que ainda não atingiu o ciclo completo de transformação. Todos os registros indicam que a fase adulta só é atingida após a absorção massiva de Energia Cósmica.”
Dante apertou o passo, olhando para frente, enquanto puxava a criatura sem qualquer resistência.
— Isso me lembra de Rupestre… — comentou em voz baixa, os olhos semicerrando ao lembrar do encontro em Kappz. — Ele precisava das Pedras Lunares para voltar ao estado mais… humano. Queria consumir aquilo. Dizia que era a única forma.
O silêncio que se formou por um instante parecia até mais pesado que o vento gelado que começava a apertar novamente. Então Vick confirmou, quase como se lesse aquilo diretamente dos próprios pensamentos de Dante.
“Sim. As evidências apontam fortemente para isso. Sugadores são, ou foram, humanos. Humanos que tocaram a Energia Cósmica… ou, mais precisamente, que foram submetidos a ela de forma forçada. Através de experimentos, rituais ou tecnologias das cidades anteriores, suas estruturas biológicas foram rompidas, reconstruídas e moldadas. Tornaram-se híbridos. Não completamente humanos. Nem completamente criaturas. Um ciclo interrompido entre evolução e degeneração.”
Dante respirou fundo, sentindo o peso dessas palavras. O olhar desceu novamente até Nick, que agora segurava sua mão, balançando-a para frente e para trás como se aquilo fosse um jogo.
E, pela primeira vez, pensou.
Talvez… talvez esse pequeno fosse mais parecido com ele do que imaginava. Alguém que nunca deveria ter nascido assim. Mas nasceu.
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