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    French parou ao lado de Refel, ajeitando a gola da roupa enquanto observava rapidamente o espaço. O gabinete de Sina era apertado, sem janelas, com cheiro de madeira úmida misturado a óleo de máquina e couro velho. As paredes tinham marcas de desgaste, como se coisas fossem arremessadas ali com frequência. Havia mapas dobrados, instrumentos de medição e pelo menos três garrafas de algo que parecia álcool forte largadas sobre uma bancada.

    Fazia quase três meses desde que vira Refel pessoalmente. Nesse tempo, o rosto do homem tinha mudado. A barba rala, mal cuidada, descia até o queixo, e um corte ainda recente na testa parecia ter sido fechado na pressa, com pontos tortos e uma casca fina de sangue seco. Ainda assim, estava vestido de maneira impecável, com casaco grosso de couro negro, fivelas ajustadas e botas que refletiam a luz fraca da lâmpada no teto. Nenhum detalhe nele denunciava alguém que vivesse no meio dos andares baixos ou nas docas. Sempre fez questão disso.

    French sabia que Refel odiava aquele ambiente tanto quanto ele — o cheiro de peixe azedo, as gentes sujas dos andares inferiores de Selenor, o barulho constante de motores enferrujados e correntes rangendo. Mas, como ambos aprenderam cedo, era necessário se sujar um pouco para manter o topo limpo.

    Sina, de pé atrás da mesa, olhava os dois como se eles fossem insetos esmagáveis. Os braços cruzados, a expressão puxada pela raiva e pela frustração, e aquele tom de voz cortante que fazia o estômago de qualquer um apertar.

    — Sabem por que foram chamados aqui? — A voz dela saiu mais aguda do que pretendia. — Sabem, seus desgraçados, o que aconteceu pra eu ter que chamar dois merdinhas pro meu gabinete? Sabem?! Porque se sabem, eu vou poupar tempo e mandar os dois direto pra um Lagmorato. Pelados.

    A tensão se instalou no ambiente como um cheiro de pólvora. French manteve a cabeça levemente abaixada, calculando cada palavra que poderia usar. Já Refel, não. Ele respirou fundo, ajeitou o casaco nos ombros, estufou o peito e respondeu, sem sequer piscar:

    — Sabemos.

    Sina estreitou os olhos, batendo a unha no metal da própria fivela.

    — Então… quer ir pelado pra um Lagmorato, Refel?

    — Por que eu iria querer uma merda dessas? — Ele revirou os olhos, cruzando os braços com total desdém. — Isso é coisa de gente estúpida.

    French deslizou o olhar até ele, confuso. Aquilo não era o comportamento padrão de Refel. Sempre foi sarcástico, mas nunca assim… provocativo, principalmente com alguém do alto escalão da Rainha. Havia algo errado.

    — Estamos aqui — continuou Refel, batendo de leve na própria coxa com a palma aberta — porque um prisioneiro da Rainha fugiu. E você, Sina, tem um problema que vale mais do que sua função aqui. Só que, te aviso desde já… não é só isso.

    Sina apoiou as mãos na mesa, se inclinando pra frente. Os olhos dela apertaram como se fossem lâminas.

    — Refel…

    O soco que ela deu na mesa fez ecoar no gabinete. Alguns pinceis e réguas tremularam, um copo tombou, espalhando gotas de líquido amarelado.

    — Você acha que alguém tá brincando aqui? Eu tô falando sério, porra. É a merda da minha cabeça na bandeja se vocês não fizerem o que eu mandar.

    Refel não se moveu. Nem sequer recuou meio passo.

    — E eu também tô falando sério. — Puxou o ar bem devagar, soltando pelo nariz. — Você quer a nossa ajuda pra resolver esse desastre. É isso. E a razão de você estar surtando não é só o prisioneiro. É que tá todo mundo lá em cima… — Ele apontou o polegar pro teto, como se quisesse indicar os andares superiores, — falando da cagada que a Família Reis fez na parte Oeste. Nas Terras Fluviais. E, se quer saber, não me venha com esse papo de gritar ou tentar jogar sua autoridade na nossa cara. Porque nem você, nem ninguém aqui, tem autoridade pra fingir que não sabe o que tá rolando.

    French ficou rígido. Isso era informação nova. A respiração dele ficou curta. Olhou discretamente para Sina, esperando qualquer reação, e então ergueu a mão com cuidado, como se tentasse não acionar uma armadilha.

    — Senhora Sina… — sua voz saiu mais controlada do que se sentia. — O que aconteceu com a Expedição da Família Reis?

    Na mesma hora, o rosto de Sina perdeu parte da fúria, substituída por algo mais frio. Um desconforto. Um sinal claro de que aquilo não deveria ter sido mencionado.

    Os olhos dela desviaram, por um segundo, para a porta do gabinete, como se quisesse garantir que ninguém estava escutando.

    — Achei… — ela respirou fundo, mordeu o lábio e voltou a encarar French — que tinha sido claro.

    Refel gargalhou, seco, cruzando os braços de novo.

    — Eles fizeram merda. Uma cagada colossal. Uma que vai custar mais do que estão prontos pra pagar.

    — Quer falar de merda, Refel? — Sina se inclinou para frente, batendo a mão na mesa. — São os seus prisioneiros especiais que foram pra lá. Essa merda não começou comigo. E vocês… — apontou o dedo para os dois — precisam resolver essa desgraça antes que o cheiro chegue na Rainha. Porque se chegar, nós três vamos nos foder. E não é pouco. Vamos nos foder gostoso pra Cicat.

    French piscou algumas vezes, sentindo o estômago revirar. Aquele nome… fazia tempo que não ouvia.

    Um lampejo de memória. Um registro antigo, quase apagado.

    — Espera aí… — levou a mão até o queixo, tentando reorganizar as informações — vocês perderam no Lagmorato das Terras Fluviais? — A pergunta saiu mais como um soco do que uma frase. — Está me dizendo que mandaram toda aquela expedição e… perderam? Vocês enviaram um dos melhores negociantes… o que aconteceu?

    Sina apertou os olhos, segurando a respiração por alguns segundos. Então, bufou, chutou a cadeira pra trás e pegou uma das garrafas da prateleira. Serviu-se com a mão tremendo.

    — Foi a merda da família Freto, French. Cacete. — A mão dela bateu forte no copo, derramando parte do líquido. — Tinha uma mulher lá. Uma desgraçada chamada Kefiane Freto. Ela voltou. Depois de quarenta anos no oceano.

    French girou lentamente, olhando pra ela como se não tivesse ouvido direito.

    — Kefiane…? Não era… não era a filha do velho chefe da família Freto? Mas ela sumiu. Todo mundo achava que tava morta. Como ela…?

    Sina bateu o copo na mesa com tanta força que rachou a borda.

    — Foi aquele merda do seu prisioneiro. — Apontou, a veia no pescoço pulsando. — Aquele maldito. É o Dante. Capitão do Nero. Ele tirou ela de algum lugar fodido lá no Oceânico Polar. E agora ela voltou. Voltou querendo os territórios que nós arrancamos da família dela.

    Refel soltou uma gargalhada seca, batendo as mãos na cintura.

    — E por que, diabos, não acabamos logo com isso?

    Sina ficou parada, respirando forte, com o olhar baixo, como se calculasse as palavras antes que elas saíssem. Depois, colocou o copo devagar sobre a mesa, deslizando os dedos na borda trincada.

    — Vocês realmente não entenderam a merda que a gente tá, né? — ergueu os olhos, gelados, pra eles. — A família Freto controla aquela região faz mil anos, Refel. Mil anos. Antes mesmo da gente saber o que eram Felroz. Antes da primeira onda. Eles controlam boa parte dos sistemas de comunicação, dos canais de transporte e… — ela parou, engolindo em seco — de portas. As portas.

    French ficou pálido.

    — As… portas?

    — Isso. — Sina apertou o queixo, olhando para um dos mapas na parede. — Aquelas malditas portas subterrâneas que todo mundo acha que são só lenda. A Rainha queria aquilo. Por isso começamos aquela negociação absurda pra tomar o Lagmorato que eles chamam de Terra Arrasada. E agora… — empurrou tudo da mesa pro lado, derrubando pinceis, copos e mapas — agora nós perdemos. Perdemos o prisioneiro que libertou Kefiane, perdemos a porra do território, e perdemos a nossa única moeda de barganha. Entendem onde estamos?

    Silêncio.

    O silêncio desconfortável de quem percebe que tá afundando e não tem mais chão.

    French puxou o ar devagar, os olhos apertados.

    — No meio da merda — respondeu, sóbrio. — E sobre o prisioneiro… eu fiz minhas investigações. O Dante não está mais em Selenor. Sumiu. Desceu com ajuda de alguém. Ainda estamos tentando confirmar como. Tenho pressionado a família Saser pra conseguir informações no solo, mas o filho deles…

    Sina ergueu a mão, interrompendo.

    — Eu sei. — Os dentes dela rangiam de tanta raiva. — Eu soube. O garotinho tá vivo. Nem isso eles conseguem fazer direito. Nem matar um moleque.

    Refel e French trocaram olhares. A fala dela os pegou em cheio..

    Ela percebeu o impacto e levantou os braços, girando os olhos, como se fosse óbvio.

    — O que foi? Achavam mesmo que ele foi pra aquela expediçãozinha do caralho pra aprender a caçar? Aquilo era um teatro, seus imbecis. O pai dele é o Yuri Saser. Ele controla a neve lá embaixo. Se o moleque morresse… — apontou pro chão — a gente teria carta branca pra pegar a esposa dele aqui em cima. E com ele preso lá no meio daquele inferno de Felroz… — bateu as duas mãos na mesa — seria perfeito. Mas nem isso fizeram certo.

    Refel soltou uma risada desacreditada, passando a mão no rosto.

    — Vocês da corte da Rainha são realmente malucos. Malucos da cabeça. — Deu alguns passos, ajeitando o casaco. — Deixa o prisioneiro comigo. French… consegue conversar com essa tal de Kefiane?

    French virou lentamente, dando as costas pra Sina, e assentiu.

    — Consigo. Mas não mate o prisioneiro. Precisamos dele vivo. Pelo menos até entender quem está por trás disso tudo.

    Sina socou a mesa de novo, se curvando sobre ela.

    — Seus merdas… — gritou quando os dois começaram a sair. — Pra onde acham que estão indo? Eu juro, eu juro que vou mandar os dois pro meio da neve. Pelados! Ouviram? Vão sair daqui pelados, desgraçados!

    French e Refel nem olharam pra trás. A porta se fechou com estrondo, abafando os últimos berros dela.

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