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    Astrid os aguardava na sombra estreita de uma das colunas laterais da entrada do Comandos, montada em um dos cavalos de patrulha. Os cascos batiam impacientes no solo quente e seco, e a jovem limpava discretamente o suor da testa com o dorso da mão. Atrás dela, dois outros cavalos estavam prontos — um preto de lombo firme para Humber, e um baio mais leve para Rubben, com a sela de couro gasto pelo tempo.

    — Estão prontos? — ela perguntou assim que os viu se aproximar. O tom era direto, sem excesso de formalidade. Humber e ela tinham caminhado para longe várias vezes, além de sempre estarem próximos quando o assunto era tratar de burocracia.

    Já era de seu costume.

    — Sempre — respondeu o velho Comandante, já pegando a rédea e se ajeitando na sela com naturalidade. Mesmo os anos no oceano não lhe tiraram o gosto pela montaria. Ele subiu velozmente, sem ao menos dar ao animal sentido para grunhir.

    Rubben ainda ajeitava a fivela quando ouviu o trotar seco de Humber puxando a frente. Subiu um pouco mais devagar, desajeitado no primeiro impulso, mas se estabilizou logo em seguida.

    — O corredor final do Comandos devia ser mais arejado — disse Humber, retomando a conversa enquanto saíam do pátio de pedra e cruzavam o caminho largo em direção aos portões sul.

    O chão vibrava com o calor do verão. As folhas nas árvores pendiam, sem força, e a cidade parecia estar à beira de ferver. Trabalhadores se espremiam nos becos mais frescos, e os vendedores abanavam os próprios rostos com papéis e chapéus improvisados.

    — A pressão não vem só das ordens — ele continuou. — O sol também ensina a gente a ter paciência, rapaz.

    Rubben ajeitou a postura na sela. O cavalo trotava com vigor, e o couro da sela estalava a cada passo.

    — Então você quer saber sobre o Dante. O que seria mesmo?

    — Ele sumiu faz tempo — respondeu Rubbenm, rapidamente. — Muita gente acha que morreu. Mas ouvi falar que o senhor lutou ao lado dele. Que ele salvou sua vida.

    — Lutou ao meu lado não é bem o termo. — Humber manteve o olhar firme na estrada batida à frente. — Eu já não era ninguém quando ele me achou. Estava quebrado. Meu humor nunca foi dos melhores, mas quando ele entrou no Mundo Espelhado, eu tive quase certeza de que poderia sair de lá.

    Rubben o olhou com atenção, o calor já escorrendo pelas costas por dentro do uniforme claro.

    — E então?

    — Ele apareceu. Coberto de sujeira e sangue. Carregando nos olhos a mesma decisão que só homens que perderam tudo costumam ter. Eram seis navios, e ele fez questão de tomar cada um deles, destruindo ao mesmo tempo que salvando os seus tripulantes.

    Rubben não respondeu de imediato. O som dos cascos se misturava aos murmúrios da cidade, e ao longe, os portões da Capital já podiam ser vistos: grandes arcos de ferro limpos e mecanizados ao ponto de não rangerem ao mexer, com guardas de armaduras leves vigiando sob toldos improvisados para suportar o calor.

    — E depois?

    — Existe muito no mar que eu ainda desconheço, rapaz. — Notou que Astrid e Rubben o encaravam com fervor. — Quando nós vencemos o primeiro obstáculo, outro surgiu e mais um. Dante foi ali para resgatar dois capitães que tinham sido amigos de um dos seus companheiros, mas ele estava no meio de uma guerra que nem mesmo ele conhecia direito. Quando eu fui salvo a segunda vez, tive certeza de que um dia ele voltaria para essas terras. Mas, vendo que ninguém aqui conhece a força dele, entendo o motivo de tratarem sua irmã com tanta insignificância.

    — Eu soube que… Talia está sendo apadrinhada.

    Humber concordou sem resistência quando chegaram até os portões. Um dos soldados levou a mão no peito, e os deixou passar sem fazer alarde algum. As torres tinham a sentinela os encarando, com alguns acenando de longe, mas nenhum deles sendo contra a saída do Comandante.

    Do lado de fora, o verde da imensa pradaria tocava as montanhas e alguns riachos. O calor poderia ser uma dificuldade para os comerciantes e fazendeiros da Capital, mas sua beleza em transformar tudo em uma paisagem fazia com que valesse a pena.

    Astrid resmungou em sua cela mesmo depois de alguns minutos após ter ouvido o nome de Talia.

    — Não se incomode — disse Humber para Rubben. — A irmã de Dante é a terceira colocada nos rankings dos mais jovens talentos. E Astrid está em quinto. Por isso a birra da competitividade.

    Rubben viu a garota colocar o dedo na boca, e roer um pouco da unha enquanto forçava seu rosto para o outro lado.

    — O Comandos é realmente bem acirrado para os mais novos.

    — Como sempre foi. No entanto, os Oficiais também carregam esse problema, mas colocam a força e técnica das habilidades em primeiro plano. Por isso, quando uma habilidade serve para um fim mais… didático, eles puxam para o outro lado. Talia é dotada de uma inteligência acima da média, sempre inovando processos, criando e estudando tecnologias, e tem dois Comandantes que estão disponibilizando recursos, por isso ela é colocada como uma das mais certas em chegar a esse posto antes dos trinta.

    Rubben abriu a boca, impressionado.

    — Dante e ela são bem parecidos. — Humber continuou. — Mas, Dante está longe demais para chegar aqui a qualquer momento. Eu acredito que o destino possa preparar todos nós para conflitos, mas aquele homem sempre está se jogando no meio de problemas maiores. Por isso, quando voltei a Capital, eu tive o prazer de encontrar com outros Comandantes para verificar sobre os problemas que estamos tendo e como conseguimos sair deles.

    Eles tocaram a estrada de terra a primeira vez. E Astrid mudou seu tom na mesma hora, encarando o céu com mais leveza do que antes.

    — Os Comandantes estão querendo trazer de volta o ‘Projeto Expansão’ — revelou Humber. — Antigamente, antes de eu conseguir alcançar a posição de Comandante, esse projeto era visando ampliar a Capital para uma distância maior. Criar um distrito novo, um que não colocasse em risco as pessoas dos vilarejos que são protegidas por tecnologias antigas ou por leis que os Felroz não seguem. E quanto mais você vai a fundo desse projeto, mais pessoas correm perigo ao invés de estarem salvas. Ser um Oficial é colocar sua vida em risco todos os dias pro resto da sua vida, sem ter para onde correr ou para quem reclamar, e isso se tornou um risco enorme para todos que estão vestindo as mesmas vestimentas que você, Rubben. O quanto você quer salvar uma vida? — O cavalo de Humber parou. — O quanto você quer ajudar as pessoas? Seu coração e sua alma estão alinhados para morrer por quem realmente precisa?

    O rapaz parou e Astrid também. A boca dele voltou a tremer, sem ter as respostas corretas.

    — Os Oficiais Tecno e Dalia são uma remessa mais nova, mais fortes, mas não fizeram parte da Vanguarda Ansiosa, que tinham esses juramentos para realizar antes de assumirem o cargo. Nenhum desses que anda com o título carrega esse juramento porque essa é uma época de paz e prosperidade.

    — O que quer dizer, senhor? — perguntou Astrid.

    Humber virou sua montaria de volta para a Capital. E eles fizeram juntos. Na muralha, esquecida pelo tempo, as marcas gigantes de garras. Os amassados que nunca foram concertados contra um dos minérios mais resistentes, e também o silêncio agonizante que eles traziam as histórias antigas para a realidade.

    — Tempos de paz criam homens fracos. — Ele não deixava de lembrar das criaturas que enfrentou no Oceano e daquela aparição em formato de humano carregando o poder da própria Energia Cósmica. — E homens fracos criam tempos difíceis.

    Marcas do passado para lembrar o que o futuro reservava.

    — O senhor acha que quem fez isso pode voltar algum dia? — Astrid ficou ligeiramente amedrontada, sua voz saiu mais baixa. — Acha mesmo, senhor?

    — Não só sei como tenho certeza. O mundo é grande demais, e vocês não fazem ideia de quantos monstros estão lá fora. A Capital teve sorte de ter enfrentado algo no começo e ter descoberto uma forma de deixar os Felroz afastados, mas não é o suficiente. — Ele voltou-se novamente para a estrada. — Os Oficiais terão que lutar novamente um dia, Rubben. E o juramento que um dia foi feito pelos antigos terá que ser repetido pela sua boca, querendo ou não.

    O jovem não se abalou.

    — Farei o que for necessário para salvar quem precisa, senhor.

    — Ótimo, isso é importante. Assim como você fará quando chegar a hora, existem aqueles que fizeram antes mesmo de se tornarem um soldado. — E ele mirou o horizonte. — Um homem que está tentando voltar para casa a todo custo e fará de tudo para conseguir isso. Implacável, é o que eu diria do homem que você está querendo ouvir sobre, Rubben. Nunca vi ninguém que se compare a ele, em absolutamente nada.

    Só de lembrar que ele foi criado como uma verdadeira falha, com um ser descartado para que sua irmã chegasse ao topo, trazia uma dor imensa a Humber. Homens como Dante nasciam destinados a morrer lutando…

    Esse era o fatal destino daqueles que faziam o juramento da Vanguarda Ansiosa; a morte prematura.

    Humber tocou o peito, onde o papel de Nekop ainda residia. Ele havia enviado uma mensagem na última semana, mas recebeu um relatório de que Dante estava em terras desconhecidas… de novo.

    Liberou um sorriso de canto. A morte prematura vinha de um único desejo de viver com o máximo de liberdade possível. Somente alguns poderiam almejar isso, sem se importar. E o sorriso de um velho homem contra a possibilidade da derrota lhe dava conforto.

    A vitória era somente uma palavra oculta na quantidade de derrotas que alguém poderia ter na vida.

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