Índice de Capítulo

    Dante mastigava lentamente o último pedaço do biscoito que havia pego na área comum. O gosto era simples, mas ainda assim reconfortante. Quando terminou, limpou os farelos da roupa, deu uma última olhada ao redor e seguiu em passos calmos para o alojamento. O cansaço dos últimos dias ainda pesava sobre os ombros, e mesmo com o corpo sobrecarregado de Energia Cósmica, ele precisava de um momento para si.

    O quarto estava escuro, com as janelas entreabertas deixando entrar o som abafado da capital ainda desperta. A luz quente do fim da tarde tingia o interior de laranja suave. Assim que entrou, Dante largou o cinturão no canto, tirou as botas e se jogou na cama com um suspiro profundo. O teto simples, marcado por pequenas rachaduras no gesso, tornou-se seu único ponto de foco.

    A quietude durou pouco.

    Uma pressão súbita se fez no centro do peito, como se algo saltasse para cima dele com entusiasmo. Dante arregalou levemente os olhos, mas logo deixou escapar uma risada abafada quando sentiu o corpo familiar se esgueirar pela gola da camisa. Nick. O pequeno Sugador tinha uma maneira única de demonstrar afeto — bruta e direta, como quase tudo que havia naquele mundo.

    Mas dessa vez, não estava sozinho.

    Algo o acompanhava. Outra criatura, do mesmo tamanho que Nick, mas diferente em forma. Era longa, esguia, com quatro patas curtas que a faziam parecer um tubo peludo com olhos brilhantes. Ela o olhava com uma mistura de receio e curiosidade.

    Dante ergueu uma sobrancelha e estendeu a mão, deixando que os dois subissem até a palma. Fez um leve carinho na cabeça de ambos, com movimentos lentos.

    — Ora, fez um novo amigo? — comentou, com a voz baixa. — Quem é esse aí?

    Nick respondeu com um som abafado, meio chiado, meio rosnado, apontando a cabeça para o companheiro novo como se apresentasse um título.

    — Nick.

    Dante bufou com um sorriso torto.

    — Já imaginei que esse seria o nome que você ia usar.

    Logo em seguida, a voz metálica e conhecida de Vick se manifestou dentro de sua mente, clara e direta como sempre.

    O Sugador indicou que o nome da criatura que está com ele é relacionado como Lilo. É o nome.”

    — Oh… — Dante piscou, surpreso. — Então é Lilo, hein? Você consegue entender como ele se comunica, Vick?

    Sim, seria interessante se ele também pudesse fazer isso.

    — Seria ótimo se eu tivesse uma forma de entender esse tipo de linguagem também. Está dentro das suas funcionalidades?

    Atualmente, fora de escopo. Necessitaria ter uma imensa gama de informação provindas para que eu pudesse captar, traduzir e refinar para seu entendimento limitado, Dante.”

    Dante riu, balançando a cabeça enquanto ainda acariciava os dois pequenos.

    — Limitado? Nossa, essa doeu. Pegou pesado hoje.

    Lilo parecia desconfortável por estar ali, seu corpo se alongando e encurtando num ritmo estranho, como se estivesse testando a própria elasticidade. Era desengonçado, com olhos grandes demais para o rosto fino, mas lembrava vagamente os Felroz que Dante havia enfrentado no dia anterior. Talvez um deles tivesse escapado da destruição… ou talvez Nick tivesse dado um jeito de trazê-lo do meio do caos.

    Dante percebeu que havia algo interessante naquela conexão. Se Nick era capaz de interferir nas habilidades dos Felroz, e se esse Lilo era mesmo um deles, havia um potencial enorme ali. Mas isso era problema para outro dia.

    Agora, ele só queria dormir.

    Inspirou fundo mais uma vez e afundou ainda mais o corpo no colchão. O silêncio era cortado apenas pelas pequenas respirações dos dois companheiros em seu peito e ombro.

    — Vick — murmurou, quase num sussurro. — Faça a transferência da minha Energia Cósmica para Nick e divida com Lilo. Quero que eles fiquem bem alimentados.

    Entendido.”

    A ordem foi cumprida imediatamente. Dante já estava entre o despertar e o sono quando começou a sentir o calor leve se espalhando pelo peito, braços e pernas. A Energia Cósmica que ele mantinha circulando em si mesma começou a se condensar, tomando tons esverdeados e azulados. Gotas invisíveis de energia pura subiram como vapor e, pouco a pouco, desceram sobre os dois pequenos seres.

    Nick e Lilo sentiram a mudança. Pararam de se mexer e se sentaram eretos, como se tivessem entendido algo sem precisar de palavras.

    Foi então que Vick se dirigiu diretamente a eles, sua voz agora soando mais suave, quase… maternal.

    Dante não utiliza nem mesmo metade do que realmente consegue converter. Usem isso para melhorarem. Não desperdicem o alimento fornecido por ele.”

    Os dois assentiram. Nick com um pequeno som grave, Lilo com um esticar rápido do corpo como se estivesse afirmando com o próprio movimento.

    A voz continuou, mas agora com um tom mais firme.

    Ninguém vai fazer o que ele faz por vocês, então tratem de obedecerem bem e também de ajudarem quando preciso. Farei o que for necessário para buscar uma melhora sempre, e também farei com que os dois fiquem sempre protegidos. Agora, ao trabalho.”

    Silêncio de novo.

    Dante já dormia profundamente, seu rosto finalmente sem o peso que carregava em vigília. O calor que envolvia seu corpo ainda emanava energia, sustentando os dois pequenos seres sobre ele como se estivessem recebendo um banho de sol constante. Nick fechou os olhos primeiro, aceitando a ordem. Lilo o imitou segundos depois, ainda um pouco desajeitado, mas curioso, como uma criança que acabara de receber o primeiro sinal de cuidado verdadeiro.

    Para aqueles dois, não existia pessoa melhor para doar Energia Cósmica. Vick conhecia bem isso, essa estranha familiaridade, que aos poucos se transformava em intimidade. Ela mesmo havia se pegado a questionar algumas vezes, sem ao menos perceber.

    Dante pertence a esse mundo.

    Diferente de Render, que escolheu uma vida cujo sonho era o extremo. Vick, parada bem no interior da mente de Dante, observava as duas semelhanças. Dois homens procurando pelos seus próprios devaneios, buscando uma forma de melhora, buscando seus…

    Sonhos.

    O que isso queria dizer? Sonhar era criar uma realidade fora. Era simplesmente idealizar algo que ainda não havia sido criado. Assistiu a infância de Render, e sua falta de otimismo. Lidou com seus problemas ocultos, mas nunca comentou sobre.

    Ele nunca superou suas próprias derrotas.

    Do outro lado, Dante era um Pomo de Ouro. Derrotado dia após dia, surrado dia após dia. Vick presenciou cada uma surras que aquele garoto havia levado. Não havia olhos para uma IA, mas ela não poderia desgrudar daquela chama que emergia dentro da mente de Dante sempre que ele voltava no dia seguinte.

    — Ele é uma falha — ouviu Render dizer a Linda, sua esposa, numa noite. — Ele falhou no seu propósito. Apenas isso.

    — E o que fará?

    — Nós faremos um novo filho. — Não havia vergonha, culpa ou remorso naquelas palavras. A frieza de Render era exatamente a marca registrada de sua família. — E esse terá a sua habilidade de adaptação.

    Vick não podia sorrir, mas queria. Render, em sua vaidade e ego, descartou um jovem por ele não ter a capacidade de chegar em um patamar que nem mesmo o próprio Render havia conseguido. Os pensamentos de Render e as falas de Linda sobre Dante sempre foram preocupantes.

    Era apenas um ritual, uma forma de selar o poder destrutivo. Por isso o transformaram em um homem idoso. Uma maldição para que ele não ferisse as demais pessoas ao seu redor.

    Com o poder que o filho teria, Render teria como chegar no seu objetivo. Mas, não.

    Verificando funcionalidades corporais. Sistema nervoso e central espelhando sincronização. Nível de Conversão Cinética aumentando gradativamente.”

    Aquele homem que pedia suas orientações passou por muito mais do que seu sorriso e olhos diziam. Por isso, Vick não se importaria em ir além para entender que os sonhos dele… também são os seus.

    E os seus… são os dele.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota