Índice de Capítulo

    Quando ele passou correndo por cima da neve, nem mesmo sentia o frio ou os flocos o tocando. A camada que envolvia sua pele era fina e densa.

    O terreno não era uniforme. Blocos irregulares de pedra surgiam do solo branco como dentes quebrados, e Dante os cruzou com um salto preciso, sem perder o ritmo. Logo adiante, árvores se aglomeravam em um pequeno bosque, seus galhos secos ondulando ao toque de um vento constante.

    O som das copas e até mesmo do vento ao seu redor. Ontem, por alguma razão, ele não tinha sentido. E hoje cedo, acordado e ouvindo Yuri Saser, sua percepção tinha aumentado e muito. Ao abrir e fechar a mão, teve certeza…

    Alguma coisa tinha mudado.

    Seu foco precisa estar na missão. A missão que foi dado serve como impulso para testar seu novo limite. Se estiver desconcentrado, pode se colocar em risco.”

    — Eu sei. Eu sei — respondeu Dante, soltando o ar do peito com força, permitindo que o frio preenchesse os pulmões. Seu corpo desacelerou levemente enquanto os pensamentos se alinhavam. Acalmar a mente e acender o coração… precisava apenas respirar.

    A família Saser solicitou ajuda e você o fez. Ainda me pergunto como derrotar Felroz em um Lagmorato vai nos dar a liberdade que tanto quer? Merlin, citado em Kappz, pode estar em qualquer lugar.”

    Dante disparou pra frente, rasgando a neve do ar sem ao menos tocá-la, aumentando sua velocidade.

    — Eu sei disso. Mas eu sou humano. — Ele sorriu. — Preciso de um pouco de esperança. Se eles não puderem me ajudar, então, eu procuro de outra maneira.

    Poderia muito bem negociar com Selenor, mas a Rainha do Norte jamais faria negócios com ele. Ele fugiu, estava desaparecido e agora precisava encontrar um meio de recuperar as terras dos Saser. Assim, seu poder cresceria, eles ganhariam espaço e teriam como fazer a procura.

    Dante saltou de um rochedo, voando por cima de uma depressão coberta de gelo rachado. Aterrissou em uma curva, com o pé deslizando e os músculos ajustando tudo no último segundo. Nem um arranhão.

    Ele respirava fundo. Mas o pensamento incomodava.

    Ele não sabia…

    O tempo que vai levar pode ser de anos. Está querendo mesmo passar boa parte do seu tempo aqui lutando por pessoas que não conhece em vez de realmente fazer o necessário para voltar para casa? Se a resposta for sim, então, faremos isso juntos.”

    Era reconfortante para Dante. Vick se tornara uma parte indispensável dele, uma voz que conversava e analisava seus movimentos. Nunca tinha pensado que seria amigo dela, mas não queria perdê-la novamente.

    Se houvesse alguma maneira de deixá-la ainda melhor, faria no futuro. Dependia bastante dela.

    — Vick… — ele hesitou. — Meu pai já enfrentou um Lagmorato antes. Me diga como foi.

    Render, seu pai, enfrentou cerca de 69 Lagmoratos e venceu todos eles. Desde que era novo, foi colocado como desafio para vencer. Sua espada era afiada e seus cortes limpos. Nunca teve problema em fazer o trabalho.”

    — Ele nunca tinha dúvidas?

    Render tinha mais dúvidas do que nós temos de conversas registradas em meu Banco de Dados, Dante. Não se sinta pressionado por nada além de si mesmo. Como uma vez eu disse, a capacidade de chegar em um nível diferente só depende da sua capacidade. E não tenho motivos para desacreditar que consiga superá-lo.”


    — Merda, merda, merda, merda… — Hito arfava, forçando as pernas contra a neve profunda, que o tragava até a altura da coxa. A cada passo, sentia os músculos rasgarem de dor e o ar lhe escapar em baforadas quentes que sumiam na brancura do ar congelado.

    Do lado direito, Cleno jazia com o rosto cortado e a perna torcida num ângulo estranho. No esquerdo, Afress sangrava pela lateral do pescoço, desacordado, com a respiração ofegante como a de um animal ferido.

    — Segura, segura… só mais um pouco — sussurrou Hito, como se eles ainda estivessem conscientes e pudessem ouvi-lo.

    As árvores da encosta estalavam com o vento e os galhos vergavam com o peso da neve acumulada. Mas havia um outro som que crescia por trás… um rugido gutural, áspero, profundo, que fazia o solo vibrar. Não era o vento. Era o coro monstruoso dos Felroz.

    Um berro cortou o céu como um trovão de agonia. Hito estancou. A pele da nuca se arrepiou como se premeditasse dentes à espreita. As criaturas estavam vindo.

    — Não… — Ele rangeu os dentes, recuando um passo, puxando os companheiros com esforço. — Eu tirei vocês de lá uma vez. Eu consigo de novo. Não vai acabar aqui. Não hoje.

    Desceu a encosta cambaleando. O gelo cedeu sob seus pés, quase o fazendo tombar. O sangue deixado por Cleno e Afress se arrastava como uma trilha para os predadores. O cheiro de medo e carne ferida enchia o ar.

    Mais abaixo, viu outro grupo. Três soldados carregavam dois feridos em direção a um riacho congelado, o gelo fino quebrando em estalos sob o peso deles.

    — Não! — pensou. — Não vão dar conta… vão morrer todos ali.

    Mas não podia ajudá-los. Tinha que cuidar dos seus.

    Quando chegou a um trecho mais plano, finalmente deixou os corpos caírem, com cuidado, recostando um no outro. Cleno soltou um gemido fraco. Havia vida ainda.

    O chão estremeceu. Um som seco, poderoso, sacudiu as raízes sob seus pés. Um estrondo que mais parecia o de um tambor gigantesco batendo dentro da terra. E então, os gritos dos Felroz voltaram, mais altos. Mais próximos.

    Hito girou nos calcanhares e puxou a espada da cintura. Com a outra mão, arrancou a adaga de combate da coxa. Os dedos tremiam, mas não era só pelo frio.

    — Vem então. — Sussurrou, encolhendo os ombros e baixando o centro de gravidade, pronto para morrer se fosse preciso. — Vem. Eu vou cortar cada maldito que aparecer.

    A neve rangeu atrás dele. Um estalo seco. Ele se virou com violência, pronto para atacar — mas era apenas um galho caindo de uma árvore acima. Ainda assim, sabia que o primeiro dos monstros não tardaria a chegar.

    O coração martelava no peito como se tentasse sair. A boca seca. Os olhos não piscavam.

    Por que diabos o chefe separou a gente?

    A pergunta latejava na cabeça como uma ferida aberta. Ele não conseguia entender. Não conseguia aceitar.

    Mas agora, não havia mais tempo para isso. A sombra do primeiro Felroz apareceu por entre os troncos quebrados da floresta. Alto. Farpado. Com garras de gelo e olhos que brilhavam em âmbar.

    Hito cerrou os punhos nas armas e deu um passo à frente.

    Se fosse para morrer, que fosse em pé. E que os monstros levassem pelo menos um gosto amargo antes de arrancarem sua carne.

    A neve diante de Hito tremeu.

    Não o chão. A neve. Como se algo — algo vasto — se mexesse por baixo dela. Um traço sinuoso riscou a superfície branca como o dorso de uma serpente gigante.

    Hito congelou. O braço com a espada se ergueu por reflexo, mas sua mente parecia lenta demais para acompanhar o que via.

    Então veio o som. Um estalo oco, abafado, como gelo sendo rasgado por dentro. Abaixo de seus pés, o chão afundou ligeiramente… e então explodiu.

    Uma muralha de neve voou para os lados quando a criatura emergiu do solo. O Felroz saltou do subsolo, cravando garras e presas no ar, fazendo o mundo parecer pequeno.

    Era maior que os outros. A carapaça azulada brilhava sob a luz difusa do céu branco, coberta de placas cristalinas que tilintavam como vidro. De seu dorso brotavam espinhos recurvados, e sua mandíbula tinha dentes em três fileiras.

    Seus olhos âmbar fixaram Hito com fome.

    O guerreiro deu um passo para trás, a espada quase escapando dos dedos. A boca entreaberta. O frio, que já era forte, parecia se condensar no ar ao redor da criatura, fazendo o metal da lâmina tilintar.

    — Isso… isso é um mutante? — sussurrou Hito, em choque.

    O Felroz se ergueu sobre as patas traseiras e soltou um urro que fez o ar vibrar. Uma onda de gelo espirrou do seu peito, cobrindo o chão com cristais finos. Estava prestes a saltar sobre Hito — quando um clarão cinzento surgiu à esquerda.

    Uma sombra cortou o ar.

    Num segundo, o Felroz estava inteiro. No seguinte, sua cabeça virou para o lado com um estalo seco.

    Alguma coisa acertara seu maxilar com força brutal. A criatura cambaleou. Um segundo golpe, agora no esterno. O Felroz arqueou para trás, soltando um guincho, mas não teve tempo de reagir.

    Um homem caiu sobre ele como um projétil vindo do céu.

    Seu punho acertou o topo do crânio do monstro com uma força tão violenta que rachaduras se abriram na carapaça. Sem parar, Dante girou no ar, desferindo uma sequência de socos que pareciam vir de todas as direções ao mesmo tempo.

    Cada impacto ecoava como um trovão seco na floresta. Estilhaços de gelo, ossos e fragmentos de armadura monstruosa voavam para todos os lados.

    Hito caiu de joelhos. Os olhos arregalados. Ele não conseguia se mover. Só conseguia assistir.

    Dante grunhiu, enterrando o punho final no peito do Felroz com tamanha violência que a criatura afundou no próprio buraco de onde viera.

    Silêncio.

    Só o som do vapor subindo da carcaça semiaberta do monstro. E a respiração de Dante, que se levantava lentamente, o braço coberto de fluido escuro e viscoso.

    Ele girou o pescoço, olhando para Hito.

    — Ei, tudo bem ai?

    Hito tentou dizer algo, mas sua voz não saiu. Apenas assentiu, ainda com o coração aos pulos. E soube, com uma certeza inabalável, que se Dante não tivesse aparecido… ele já estaria morto.

    O rugido de outro Felroz soou à distância.

    Dante franziu os olhos e se virou na direção do som.

    — Acho que estou meio longe do centro. Vick, faça a varredura. Nick e Lilo, os dois fiquem atentos.

    Sem se mexer, Hito deixou todo o ar do seu peito escapar. O homem se limpava, jogando os braços pro lado e expelindo o sangue com calma e tranquilidade. E ambos, juntos levantaram a cabeça quando um painel apareceu acima.

    — Ah, a contagem do Lagmorato — disse Dante. — Faz tempo que não vejo isso.

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