Capítulo 430: Amarelo
— Recuar! — Castan gritou com toda a força que restava nos pulmões.
A ordem cortou o barulho caótico da multidão, mas não o suficiente. Famílias desesperadas corriam, esbarrando umas nas outras, tropeçando em pedras e corpos, fugindo de algo que sequer conseguiam olhar nos olhos: os Felroz. As criaturas surgiam entre os prédios baixos da vila fronteiriça como titãs despertos, o sol do verão refletindo nas suas costas congeladas, traindo a aparência térmica que os nomeava. O calor só tornava o terror mais sufocante.
Castan parou quando viu Gusman.
Seu amigo estava sendo erguido.
O Felroz que o segurava era diferente — mais alto, mais largo. Seus braços pareciam duas colunas de gelo e músculo, e seguravam Gusman como se fosse uma criança. O monstro tinha ao menos seis metros, e sua boca parecia abrir para além da lógica, repleta de dentes como lanças. Gusman se debatia, mas seus movimentos eram lentos, perdidos entre o desespero e a gravidade.
— Gus… — Castan sussurrou.
O sangue já escorria do corpo de seu companheiro. A ponta de uma das garras havia atravessado o estômago, perfurando por completo. Gusman nem gritava mais. Apenas se debatia, fraco. O Felroz o ergueu mais, e naquele instante congelado, Castan percebeu que ele não estava matando — estava se preparando para comer. Ali. Parado. Como se nada ao redor importasse.
— O que está fazendo aí parado?! — a voz do comandante explodiu atrás dele.
Uma mão forte agarrou seu braço e tentou puxá-lo para trás.
— Temos que fugir, agora!
Mas Castan não conseguia. Seus olhos estavam travados. O som ao redor se dissolvia. As pernas estavam coladas ao chão, o corpo querendo correr, mas a alma presa ali. Porque era Gusman. Era o homem com quem havia dividido barraca, comida e histórias estúpidas sobre como se aposentariam depois de matar dez Felroz cada um.
O chão tremia.
— Não podemos fazer nada agora. Temos que recuar! — o comandante insistiu.
Ao redor, os outros caçadores já estavam batendo em retirada. Feridos, sujos, sangrando. Nenhum deles parou. Ninguém teve coragem. O batalhão havia sido engolido. Não havia vitória, não havia honra. Apenas sobrevivência. E Castan sabia: se aquilo estava acontecendo ali, as forças no Norte e no Sul enfrentariam o mesmo destino.
Gusman não resistia mais. Os olhos estavam abertos, mas já não piscavam.
Castan abriu a boca. Nenhuma palavra saiu.
O Felroz moveu a cabeça para trás. A boca se abriu mais. E então — engoliu.
Engoliu Gusman inteiro, num movimento único, grotesco e impiedoso. O som da carne sendo puxada pela garganta da criatura ficou preso para sempre na memória de Castan.
Mas antes que ele pudesse sequer cair de joelhos, o ar se rasgou.
Um som diferente. Como o assobio de um trovão em linha reta.
Um feixe amarelado atravessou o campo de visão como um raio em plena luz do dia. Cortante. Rápido. Atravessou a lateral da cabeça do Felroz. E, num segundo depois, a explosão veio.
Sangue.
Muito sangue.
A cabeça do monstro foi arrancada por completo. Voou em um arco grotesco, deixando um rastro vermelho no ar. O corpo caiu com um baque que tremeu o solo. Uma onda de energia residual soprou poeira e fragmentos de pedra para longe. Os caçadores que ainda estavam recuando se viraram em choque. Castan, ainda imóvel, viu o que restou da cabeça quicar no chão como um rochedo partido, parando apenas a poucos metros dele.
— Cabeça… — murmurou, sem saber se falava consigo mesmo ou se era outra voz ao redor.
A boca do Felroz se abriu num estalo grotesco. Um líquido viscoso escorreu junto ao corpo de Gusman, que deslizou para fora, envolto por aquela substância espessa e quente. Ele ainda respirava, fraco, mas vivo. Castan arfou ao vê-lo cair na neve, o peito subindo e descendo com esforço.
— O que foi isso? — perguntou o Comandante atrás dele, com os olhos arregalados.
Antes que Castan pudesse responder, o som de berros brutais atravessou a floresta, vindo de dentro das profundezas do bosque. O gelo estremeceu com a vibração dos gritos. E então, mais movimento à frente: um novo grupo vinha correndo, espirrando neve para os lados. No meio deles, o estandarte da família Lincon balançava ao vento.
Mas algo estava errado.
— O que aquele desgraçado está fazendo? Não, vai pro outro lado… — Castan murmurou, quase sem fôlego.
— Não temos tempo! — berrou o Comandante Lincon, sem parar de correr. — Tem Felroz Mutantes vindo!
A floresta congelada pareceu encolher. O frio desapareceu num sopro estranho, como se o ar fosse sugado pela chegada de algo maior. Então, veio o calor. Um calor espesso, sufocante, que contrastava com a neve ao redor. O mundo branco se tingiu de um vermelho vivo, como se o céu tivesse sido incendiado.
Castan engoliu seco. O que via não era calor. Era o inferno.
— Corram! — gritou o Comandante Lincon. — Corram, seus desgraçados!
Uma língua de fogo rasgou o bosque, subindo em colunas e serpenteando pelo ar. O Felroz Mutante, de proporções ainda maiores que o anterior, surgia como uma besta infernal. Da sua garganta, jorrava um mar de chamas que incinerava árvores e rochas, derretendo a paisagem.
Castan não pensou. Apenas se lançou para a frente.
Gusman ainda estava ali, vulnerável, tossindo. Castan alcançou o amigo, pegando seu braço para erguê-lo. Mas escorregou. Algo pegajoso cedeu sob seus pés, e ele caiu sentado. O sangue e o líquido gosmento do monstro agora se misturavam com a neve, tornando o solo traiçoeiro. Outros caçadores passavam correndo por ele, mas ninguém parava.
A floresta era uma prisão de fogo, e Castan estava no centro dela.
Mais uma explosão atingiu uma árvore próxima. As chamas saltaram para o céu, arremessando brasas. Castan se abaixou, abraçando Gusman. Seu corpo começou a se alterar. A pele ganhava o tom metálico, rígido, escuro. Seu dom se ativava com força total. Ele sentiu os ossos se tornarem mais pesados, mais densos, como placas fundidas em sua carne.
— Não importa se eu morrer — murmurou, olhando o pilar de fogo se aproximar.
Ele esticou o braço, tentando escudar o amigo com o corpo endurecido. Aquele seria o fim, se precisasse.
— O que você está fazendo… idiota?
Castan congelou. O som da voz de Gusman rasgou a tensão como uma lâmina. Virou-se devagar, o coração batendo mais rápido. Gusman o encarava, com os olhos semicerrados e um meio sorriso nos lábios feridos.
— Está dando uma… de herói agora?
— Cale a boca, eu vou…
Uma parede de gelo surgiu do chão com uma velocidade e força aterradoras. Ergueu-se como uma muralha viva, dez metros de altura, entre eles e a direção do fogo. As chamas se chocaram contra ela com um rugido ensurdecedor, mas a estrutura não cedeu. Nenhuma rachadura. Nenhum sinal de que seria rompida. Aos poucos, as labaredas foram perdendo força. O Felroz parecia ter se esgotado.
— Acabou?
Castan se virou e viu duas figuras se aproximando pela neve. Uma mulher vinha correndo, com uma capa escura balançando às suas costas. Ao lado dela, um homem carregava uma espada imensa nas costas, quase da altura do próprio corpo.
— Está querendo morrer? — a mulher gritou ao avistar Castan. — É pra recuar agora. Volta, porra!
— Certo!
Castan respirou fundo, soltando o peso da tensão num único suspiro. Pegou Gusman pelo braço ainda bom e começou a arrastá-lo. Cambaleava, mas andava. Estava determinado.
Foi então que ouviu.
Uma explosão atrás dele, diferente de todas as anteriores. Um som úmido, profundo. Não era o calor abrasador do inferno — era o rugido de águas liberadas com violência. Ele se virou e viu um muro de água se erguer onde antes estivera o Felroz. A parede líquida vinha com força, fria como gelo, empurrando fogo, monstros e detritos para trás.
O oceano parecia ter entrado no bosque.
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