Capítulo 435: Moinho (IV)
A porta do Moinho se abriu na mesma hora em que Trahaus e Gregoriano se aproximaram. A neve ainda caía pesada, arrastada pelos ventos da batalha no Lagmorato que eram lançados com violência naquela direção.
Sirius Reis surgiu na soleira da porta. Sua armadura cinzenta parecia mais velha do que ele, com rachaduras nos ombros e o metal descascado em vários pontos. O olho esquerdo, morto e fundo, lhe dava uma expressão ainda mais gélida do que o clima ao redor. Não olhou para cima, não olhou para o céu estranho. Observou o chão, a neve e os homens que vinham em sua direção.
Atrás dele, os soldados saíam em pares. Trajavam roupas grossas e improvisadas, feitas com peles de animais e partes de armaduras reaproveitadas. A maioria era composta por familiares — rostos marcados por tempo, sobrevivência e silêncio. Aqueles eram os habitantes permanentes das terras baixas de Selenor. Gente que nunca teve a opção de subir.
Ao todo, talvez houvesse pouco mais de trinta pessoas reunidas diante do Moinho. Quando viram Gregoriano, inclinaram as cabeças em reconhecimento. Ela era respeitada por todos ali. Mas os homens que marchavam com o estandarte de Selenor… esses eram novidade. Vestiam-se de maneira impecável, com os tons prateados reluzindo mesmo na luz baça. Marchavam como se o chão fosse deles.
Sirius levou poucos segundos para entender o que estava prestes a acontecer. Seu corpo endureceu, os braços cruzados sobre o peito, e seus pés afundaram ligeiramente na neve congelada. Já estava pronto para a resposta.
O Comandante de Selenor avançou até o limite entre os dois lados e fincou a bandeira no solo. O estandarte afundou com um baque seco e ficou ali, tremulando sob o vento como uma ordem silenciosa. Trahaus, que vinha ao lado, manteve distância. Seus olhos seguiam atentos os gestos dos soldados. Ele não gostava dos homens de Selenor — não pelo que eram, mas pelo que faziam. Suas ordens vinham de cima, mas os danos… sempre atingiam os de baixo. Ao longo dos anos, ficou claro para ele: quanto mais alto alguém estava em Selenor, mais cruel se tornava com os que viviam afundados.
Esse era o plano deles: afundar ainda mais as famílias.
— Sirius Reis — disse o Comandante, fazendo um leve aceno de cabeça. — A Rainha está preocupada com sua estadia tão próxima ao Lagmorato. Ela solicitou que viéssemos buscá-lo.
— O Moinho é um dos pontos mais robustos e duradouros que temos aqui em Selenor — respondeu Sirius, sem descruzar os braços. — Não podemos sair. A caça e a coleta partem daqui.
— Exatamente por isso nós fomos enviados — disse o Comandante, com um tom aparentemente calmo. — A Rainha teme que as zonas se alarguem, e isso pode custar mais do que comida. Vai custar suas vidas. — Mesmo que sua intenção soasse pacífica, Trahaus reconhecia a falsidade em cada palavra. — Por favor, tomem o caminho em segurança até um dos elevadores e esperem os Caçadores.
— Sinto informar que terão que voltar — rebateu Sirius, imóvel como uma pedra. — O Moinho pertence à família Reis faz praticamente cinco décadas. Eu sou o responsável atual, então, não vou deixar meu posto porque a Rainha “solicitou” que eu saísse. E digo mais: vocês não são bem-vindos.
— E onde está sua força para parar esse Lagmorato? — retrucou o Comandante, sem sequer olhar ao redor. Manteve os olhos cravados em Sirius, como se já tivesse decidido o desfecho.
No instante seguinte, a explosão veio com um impacto mais próximo do que qualquer um ali havia previsto. Um baque abafado, como se a própria terra tivesse suspirado em raiva. Em meio ao silêncio tenso, uma onda de ar quente avançou sem aviso, golpeando o Moinho com força suficiente para fazer as janelas tremerem e a neve do telhado ser arrastada.
As roupas dos soldados se inflaram, tremulando com violência. O rapaz que segurava a bandeira de Selenor teve de puxá-la com as duas mãos contra o peito, mas era tarde demais. O estandarte se soltou, lançado por uma rajada invisível, serpenteando pelos céus antes de se perder nas brumas do horizonte alaranjado.
O céu, outrora branco como sal, havia se tingido de um tom incandescente, quase febril. Um laranja intenso, vibrando como metal em brasa. E bem ao longe, contra os limites da nevasca, podiam-se ver colunas de fogo sendo cuspidas contra algum ponto obscuro, escondido por névoa e fumaça.
Sirius, que raramente demonstrava algo além de frieza, deu um passo instintivo para trás, encarando o fenômeno com um misto de perplexidade e fascínio.
— O que é aquilo? — murmurou, como se não quisesse ouvir a própria resposta.
— Nossa chance — disse Trahaus, com um brilho firme nos olhos, tomando a frente sem hesitação.
Ela passou entre os soldados e ficou diante dos rostos imóveis, todos atordoados pela violência do espetáculo. O calor das chamas ainda chegava em lufadas, um belo aviso distante.
— Aquele é Hassini Saser, um dos braços de Yuri Saser — afirmou ela, elevando a voz para garantir que fosse ouvida. — Ele foi enviado aqui com a missão de limpar os Lagmoratos. E por ordem direta de Yuri, ninguém tem permissão para interferir.
O Comandante de Selenor ergueu uma sobrancelha, mas o desprezo em sua voz era claro:
— Mandar um único homem para purgar um Lagmorato? — riu brevemente, um som seco e debochado. — Yuri está mesmo desesperado.
Mas antes que o sarcasmo tivesse tempo de se enraizar, o solo tremeu com um novo som — um rugido. Não um grito humano, tampouco de fera. Era o bramido coletivo dos Felroz. Ecoou por todo o terreno gélido, reverberando nas colinas num trovão contínuo. Gregoriano, por instinto, levou a mão à arma. Mesmo sendo um guerreiro do Nokia, não era imune ao medo que aquelas criaturas despertavam.
Qualquer homem são questionaria a ideia de enfrentar aqueles monstros sozinho. Era um conceito absurdo. Insanidade.
Mas Trahaus conhecia esse tipo de insanidade. Ela já havia sido enviada para lugares que outros evitavam até nos mapas. Já tinha visto famílias inteiras serem engolidas pelo sal ou pela escuridão. Já passara por vilas despovoadas e corpos sem nome. E sabia reconhecer o som de um Felroz quando ele rugia não por glória… mas por dor.
— Esse Saser já deve estar morto — resmungou um dos soldados ao fundo, sua voz quase infantil diante da brutalidade do campo. — Está escutando isso? Eles venceram.
— Não se precipite — respondeu Trahaus, sem desviar os olhos deles. — Esse rugido… é o mesmo som que você faz quando leva um murro bem dado na cara. É dor, garoto. Não é vitória.
Quase como resposta à sua fala, uma nova explosão irrompeu. O som veio primeiro — seco, sufocado — e depois o impacto: uma duna de neve foi abruptamente rasgada quando quatro Felroz foram arremessados por cima dela, como bonecos largados por uma mão divina. Os corpos colidiram com o solo, espalhando neve em uma onda que atingiu os pés do Comandante.
E então, mais cinco. Arremessados com tal violência que o ar assobiou ao redor deles. Três caíram quase juntos, formando uma pilha disforme. Os outros dois foram lançados de maneira tão irregular que um deles girou no ar antes de atingir o chão com um baque cavo.
Trahaus caminhou lentamente até onde as criaturas estavam estiradas. Cada corpo era uma cena grotesca. Um deles tinha a cabeça esmagada, com os olhos saltando das órbitas. Outro tinha um buraco no peito do tamanho de uma tigela, e um terceiro mal tinha mais pernas — haviam sido arrancadas no ar.
Todos haviam sido lançados com uma força impossível de se conceber para um único homem.
Mas ali estavam os corpos. E o silêncio logo após o impacto era mais ensurdecedor do que qualquer grito.
Trahaus virou-se, firme, e falou sem elevar o tom, mas com uma presença que obrigava todos a ouvir:
— Se você olhar para o painel… vai entender.
O Comandante hesitou, mas seu olhar se ergueu junto com os outros. O céu estava limpo. Nada azul se movia, nenhum marcador de localização, nenhuma silhueta indicando uma unidade aliada. Apenas o forte e denso ponto amarelo.
— Não existe um ponto azul — explicou ela. — Ele não é seu aliado. Assim como eu não sou.
A tensão crescia como um fio sendo puxado lentamente até estourar.
— Se quer arrumar uma confusão… vá em frente.
O silêncio durou mais do que qualquer resposta. O Comandante de Selenor engoliu em seco.
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