Índice de Capítulo

    A placa solar foi encaixada na parte de cima do prédio, em um campo mais afastado de onde a lona tapava a bancada, as camas e também o sofá que Dante tinha achado voltando do Reservatório. Estava em um bom estado e dava para carregar com a outra mão. Ele deixou Marcus encontrar um lugar para o novo assento, e entregou um dos cabos de energia. A placa tinha uma espécie de tomada bem larga, ficaram um pouco confusos do que fazer, então Vick os alertou.

    Passaram a tarde inteira colocando cada cabo no lugar, e foram até a bateria. Os dois tiraram a roupa pesada por causa do sol, e ficaram tentando interligar os fios que ligavam as lâmpadas.

    Marcus segurou um dos fios desencapados e tomou um choque. Dante apontou para ele, rindo. O atirador lançou xingamentos enquanto fazia a tomada ganhar dois pinos, ajeitando com leveza. Assim que terminou, Dante empurrou a bateria para duas paredes, a mantendo bem segura.

    — Se chover muito, vamos ter que emendar mais uma lona por cima – disse Dante dando uma boa olhada no terraço inteiro. – Seria uma boa ideia colocar um teto mais firme aqui?

    — Clara gosta dessa parte sem teto. Os outros moradores vão querer subir para cá se souberem que temos um teto seguro. – E deu duas pisadas leves no cimento abaixo de si. – Tem muita gente que mora aqui que não são boas. Não espere aplausos pelo que fez, velho.

    Como se fosse necessário. Dante odiava aplausos.

    — Contanto que não toquem na nossa bateria, tudo vai ficar tranquilo. – E se apoiou nela. – E ai, vamos ver o que ela pode fazer?

    Antes de Marcus responder, as vozes e passos cresceram vindo de longe. Dante e Marcus viram um homem alto com diversos outros atrás de si, caminhando e trazendo atenção. Os moradores também ficaram bem curiosos, subindo as escadas para entender o que acontecia.

    Dante não conhecia aqueles rostos. Nem o motivo de estarem tão irritados.

    — Antton. – Marcus caminhou até a bancada e pegou suas duas pistolas. – Pode parar aí mesmo ou eu te acerto, babaca.

    O homem ergueu a mão assim que pisaram no prédio. Sua equipe inteira se mostrou obediente, parando juntos. O rosto daquele homem não era irritado, não era triste, era nervoso. Ele estava desesperado.

    — Marcus, por que ainda tem tanto rancor? – Ele tocou o próprio peito, tentando demonstrar um carisma inexistente. – Clara e eu tivemos desentendimentos no passado, mas vim hoje justamente para consertar isso. Ela me deixou muito prejudicado no último ano, ainda mais porque ela escondeu a reserva de comida dela da gente. E agora, isso.

    Ele apontava para a bateria.

    — Vocês tiveram o culhão de ir para o Reservatório, mostraram ser superiores as criaturas de lá, mas ainda não nos enxergam como pessoas dignas de ter essa fonte de energia. – Ele ainda tentava falar pomposamente, ficando ainda mais estranho. – Por que ainda insiste em querer ditar o que é certo ou errado?

    — Eu não julgo nada, você é quem acha que é dono da cidade. – Marcus claramente detestava ele pelo tom de voz agressivo. E ergueu a mão na mesma hora, apontando a arma. – E já deixo dito, não vou hesitar em estourar sua cabeça se tentar qualquer coisa aqui em cima.

    Dante viu o sorriso de Antton. Era isso que esperava.

    — Estão vendo? – Ele virou-se de costas, encarando os moradores, todos que subiram. – Uma arma é apontada para um homem que pede o mínimo. Os Felroz são os inimigos, mas ele aponta a arma pra mim, somente para mim e meus homens. E o que eles têm? Uma bateria. Algo que pode nos fornecer energia, pode nos dar um luxo que não temos desde que essa cidade foi abandonada. Eu peço que me ouçam, povo de Kappz. O que esses homens têm que não podemos ter? O que eles são que nós não somos? Por que eles podem ter o maior recurso e nós não ficamos com nada?

    Marcus ficou mais irritado ainda, segurando o gatilho com mais força. Ele iria atirar, mas vendo os homens de Antton esperando isso, Dante entendeu seu plano na mesma hora.

    — Você quer a bateria? – a pergunta de Dante foi levada com o vento, mais forte. – Eu não sei seu nome, mas vejo que Clara e Marcus não gostam muito de você ou do que faz. Mas, você quer mesmo a bateria, não é?

    — Claro que quero, seu idiota. – Antton se virou para ele, rindo. – Isso que está atrás de você é mais do que suficiente para acender a cidade inteira, e estão simplesmente desperdiçando com luzes. Que idiotice.

    — Você tem um ponto. Mas, deixa eu te perguntar, como vai ligá-la?

    Antton abriu os braços, como se fosse óbvio, e apontou para a placa que instalaram do outro lado.

    — Isso, aquilo são placas solares – explicou Dante. – Não sabe o nome, né? Agora, me diga como se liga uma placa solar em uma bateria sem dar uma descarga nela? Como vai impedir da placa queimar se sair ligando a cidade inteira? Como vai saber da vida útil de uma bateria sem ao menos saber como se liga uma?

    — Questiona a mim, mas você mesmo não tem essas respostas.

    Dante deu uma risada.

    — Acha que Clara me mandaria para dentro do Reservatório sem saber como funciona uma bateria? – Dante fez uma careta. – O quão merda é o seu pensamento em achar que eu iria enfrentar aquelas criaturas sem ao menos ter certeza de que ela sabe o que faz? Mas, e você, homenzinho, sabe o motivo de eu estar aqui agora? Essa pergunta tem uma resposta fácil.

    — Porque teve sorte – a resposta de Antton foi firme. Ele realmente acreditava nisso. – Enfrentar todas aquelas criaturas de uma só vez, quem acreditaria que você é capaz disso?

    Dante passou por Marcus e tirou o charuto do bolso da calça, pondo na boca e acendendo em atrito de um estalo de dedos.

    — Então, por que você não testa a minha ‘sorte’?

    Ninguém respondeu, nem mesmo Marcus. Ele já tinha abaixado a arma, ouvindo Dante.

    — Ah, eu ouço isso. Esse som que paira no ar é o silêncio. – Dante riu se divertindo bastante. – Quantos de vocês iriam fazer o que nós fizemos para trazer uma melhoria? Você questiona meus métodos, mas minha sorte trouxe essa bateria. Clara confiou na gente, então, por que você não faz isso? Aliás, nós perdemos nossa inimizade, não é?

    Eles não falavam mais nada. A moral de suas frases atacando um lado não fazia sentido. Render lhe ensinou isso. Palavras sem atos são insignificantes para quem as ouve.

    — Melhor ainda – Dante continuou a pressionar. Deu dois passos na direção deles. – Vamos fazer o seguinte. Se querem tanto a bateria, e dizem que fui sortudo, vocês atacam, ganham de mim e levam o que quiserem. Isso seria interessante?

    Os homens dele recuaram um passo, Antton fez o mesmo enquanto Dante chegava perto.

    — Melhor, eu tenho uma ideia genial, homenzinho. – Dante tirou o charuto da boca e apontou para eles. – Se Clara quiser, eu mesmo levo a bateria para o lado da cidade que vocês estão. Ela é uma boa pessoa, vai cuidar disso. Mas, pensa comigo, desde quando você tem capacidade para fazer alguma coisa sozinho? Se fosse homem, se fosse alguém, se seu nome fosse forte, não precisaria apelar para gritar e trazer mais gente. Pra mim, vocês não são nada além de pessoas, mas que tentam tomar as coisas dos outros por medo, por egoísmo. Hoje, aqui em cima desse telhado, nenhum de vocês vai levar nada. Entenderam?

    Antton já estava na metade da ponte de madeira, tendo recuado quase dez passos. Ele não recuou o corpo ou abaixou a cabeça, ainda tinha a fagulha de raiva em seus olhos. Dava para ver que queria fazer algo a respeito, mas dentro de Kappz, Dante não deixaria que ele levasse nada que não fosse dele.

    — Estamos entendidos, senhores? – perguntou mais uma vez. – Não vou repetir.

    Clara e Simone chegaram da outra ilha de prédios. As duas com as crianças, e ficaram sem entender porque Dante afastava Antton. No entanto, Clara adorou ver o homem que atormentava cada um dos seus atos dentro da cidade ser oprimido daquela forma.

    — Vão logo – Dante abanou a mão. – Se querem chorar, vão fazer em outro lugar. Eu tenho mais o que fazer aqui.

    Antton pareceu engoliu seu próprio orgulho e deu de costas. Assim que viu Clara, ele rangeu os dentes.

    — Isso não vai ficar assim, vagabunda.

    Antton caminhava quando sua perna dobrou com algo batendo contra sua perna. Ele caiu de joelhos, mas se segurou em alguém, gritando. Quando olhou para trás, ninguém tinha se mexido. Seus homens encararam todos, mas ninguém tinha feito nada. O rosto deles tinha tanta surpresa quanto o de Antton.

    — Quem fez isso? Ai. – Ele ficou de pé com ajuda. – Vou caçar quem me acertou.

    Ele foi sendo arrastado. Dante o achava patético. Enquanto todos sofriam por não ter nada, esse homem queria tudo para si. Ficava triste por esse tipo de gente existir num mundo tão pobre.

    Virou e caminhou de volta para a bateria, dando um tapinha no ombro de Marcus.

    — Não se mira uma arma para alguém desarmado. – Ele voltou a mexer na bateria. – Nem mesmo quando ele é uma pessoa ruim.

    Marcus não respondeu. Apenas guardou a arma, pegou um dos tubos de energia e levou para a placa.

    Clara ainda observava os dois trabalhando. E ficou feliz por Dante ter erguido a voz contra Antton. O miserável espírito de um homem que deseja o mundo inteiro e não tinha nem poder para começar. Durante tantos anos, Antton não melhorou em nada, sempre deixando a caça para eles e nunca os dando algo de verdade para comer.

    Carne era um sonho que as crianças tinham. Energia também era, até Marcus e Dante acenderem as lâmpadas naquele térreo. Esticadas pelos fios, cada uma delas em tom amarelado deixava a noite menos nebulosa e sombria.

    As crianças correram e os moradores também chegaram mais perto, assegurando que os pequeninos não se machucassem sozinhas.

    — Dona Clara – uma das mulheres grávidas se aproximou, com um rosto vermelho, tentando esconder o sorriso. – Obrigada por isso. A luz… a gente sempre achou que nunca veria. Sempre ouvi do meu pai que eram bonitas.

    — Obrigado, dona Clara – outro disse, de longe, sentando em uma pedra quadrada. – Sempre quis ver como elas se pareciam.

    Um por um, os moradores vieram cumprimentar ela. Apertos de mãos, abraços. As crianças a chamavam de tia segurando sua perna. Clara não teve uma reação imediata. Rostos que nunca foram expostos por medo se juntaram.

    Em cima do telhado, o frio que sentia todo dia no começo da noite foi substituído por um calor humano presente. Conversas e afeto. Pais e filhos. Ela ficou sem fala, tentando não parecer chorosa.

    — Não chore agora – aconselhou Simone do seu lado, tocando suas costas. – Kappz hoje tem alguém que podem confiar. Marcus e Dante te colocaram nessa posição, agora… ajude quem precisa.

    Simone era quem chorava. Mesmo idosa, vislumbrar as lâmpadas acesas lhe deixou tão emotiva que teve que secar as bochechas. Foi um choque e tanto. Quantos dias, quantas noites, quantas histórias…

    No passado, algum dia, a luz foi alvo de corações frios. Intocada por anos, décadas, até mesmo uma centena de anos. Relatos de que muitos buscaram, outros morreram por ela. Para Clara, que sempre ouviu histórias, a luz era carregada de esperança.

    Assim como a esperança cegava, a confiança fazia pior. A faca de dois gumes cortava para ambos os lados. Cicatrizes antigas não se curavam. A fria madrugada e a dor de ter sido traída por quem mais lhe admirava a fizeram recuar diante da escuridão.

    No entanto, brilhando mais do que as lâmpadas amareladas, Dante. O homem brincava com uma criança, jogando pedrinhas nas ruas.

    A confiança lhe fez recuar tantos passos. E agora, ela sentia que podia avançar, pelo menos um pouco.

    Dante percebeu seu olhar. E sem hesitar dessa vez, Clara ergueu a mão para ele, acenando. E ele respondeu com um imenso sorriso.

    — Como pode uma pessoa sorrir tanto? – sua pergunta sempre lhe dava certo receio. – Eu devia sorrir mais.

    E esticou os lábios, mostrando que em seu coração, ainda havia algo muito importante. O otimismo que as coisas boas traziam quando o mundo caía ao seu redor.

    Um sorriso quente.

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