Capítulo 443: Portas (I)
— O que é isso? — Merlin repetiu, sem mover um músculo, a voz baixa e carregada de estranhamento.
Kefiane e Bello Yieno já estavam prontos para o pior; o som metálico ecoou quando as lâminas e o machado foram desembainhados, mas antes que pudessem avançar, uma nova rajada de ar os atingiu. Desta vez, mais pesada, como o impacto de um muro invisível empurrando-os alguns metros para trás. O ar tinha densidade, peso, quase um sabor metálico que queimava na garganta.
Do outro lado da porta, uma tempestade de chamas caía em direção a uma única figura. As labaredas não vinham em um fluxo constante — eram disparos concentrados, como projéteis de fogo comprimido. A pessoa em questão se movia com uma precisão que parecia instinto puro: mergulhava para o lado, rolava pelo chão, saltava alto o suficiente para passar por entre as explosões, e em cada brecha, respondia com golpes de ar tão potentes que estouravam as esferas de fogo no instante em que as tocavam.
Kefiane não piscava. Seus olhos estavam fixos, como se temesse perder qualquer detalhe daquela cena. Ela conhecia aquele padrão de movimento, a forma como os punhos eram lançados, a energia que se fragmentava em cada golpe. Um turbilhão de lembranças atravessou sua mente — o momento em que foi salva no Mundo Espelhado, o som da respiração dele, o peso firme das mãos ao puxá-la para a segurança. E agora, ali, diante do caos, o homem estava novamente à frente de um confronto que ninguém mais ousaria assumir.
— Dante… — o nome escapou em um sussurro involuntário, e o vento levou cada sílaba até os ouvidos de Merlin.
— Filha do Mar, aquele é o seu amigo? — o criador de portais recuou mais alguns passos, a testa franzida, enquanto o cenário diante dele se distorcia. As esferas flamejantes se deformaram, se unindo em um turbilhão incandescente que, de repente, se converteu em um mar suspenso no ar. Uma parede colossal de água surgiu do nada, girando e descendo para esmagar o homem. — Aquilo… não é um Felroz Mutante. Não mesmo.
O peso da situação caiu sobre eles como um bloco de pedra. O inimigo era pior do que qualquer hipótese inicial.
— Filha — chamou Bello, a voz carregada de urgência —, você precisa encontrar sua mãe e pedir reforços. Não temos certeza da força do inimigo, mas precisamos agir com cautela. Selenor não é um lugar simples de lidar, ainda mais com essa criatura solta.
— Pai… — Kefiane estendeu a mão, tocando a dele com uma firmeza suave. — Eu entendo o senhor, e sei que está certo. Mas… aquele é o homem que me salvou do Mundo Espelhado. E por isso, eu não posso ir embora.
Bello fechou a expressão de imediato, a sombra de um tom ríspido surgindo na voz.
— Kefiane, não estamos brincando.
— E eu pareço estar? — a resposta veio firme, o olhar dela cortante. — O senhor deve voltar e avisar sobre o que está acontecendo. Os Felroz vão se agitar, e pior, há criaturas no Abismo que não podemos ignorar. Vamos proteger todos, aqui e agora.
O rosto de Bello mudou aos poucos; a tensão deu lugar a um sorriso curto e orgulhoso.
— Você realmente cresceu, não é?
Merlin atravessou o espaço entre eles com pressa.
— E o que vai crescer também é a destruição que aquela coisa está causando.
A massa de água, ao atingir o solo, não explodiu em ondas — congelou instantaneamente. O estalo seco do gelo se espalhou pelo ar, e placas de cristal azul se ergueram formando degraus que subiam até o céu. No topo, o Rastro pairava, impondo-se contra qualquer noção de limite físico.
Durante anos, Merlin ouvira histórias sobre o Felroz Mutante. Uma criatura moldada pelo próprio ambiente, adaptando-se até atingir um nível de poder e velocidade que a colocava lado a lado com as raças mais inteligentes. Com o tempo, alguns até adquiriram habilidades que antes pertenciam apenas aos humanos. Ele mesmo dedicara boa parte da vida a impedir que tais aberrações se multiplicassem, acreditando que o território de Yieno estava protegido para sempre. Mas Selenor, com sua guerra interminável, provou que estava errado.
Aquele lugar atraía idiotas gananciosos, líderes que preferiam esmagar os fracos para expandir fronteiras. E, como sempre, se a guerra ali acabasse, Yieno seria o próximo alvo. A história humana era um ciclo de erros.
— Essa transição elementar não é comum — comentou Merlin, virando-se para seu assistente. — Preparem todos para retornarem à Família Sasuolo. Não deixem ninguém para trás. E, senhor Yieno, recomendo que se prepare para qualquer cenário.
— Eles não parecem tão próximos de Yieno — retrucou Bello.
— Sim, mas o que enfrentamos não é só um Felroz. Como sua filha disse, os Rastros podem ter mentalidade própria, até algum tipo de vínculo de sangue. Se isso for verdade… — Merlin estreitou os olhos para a criatura. — Então aquela coisa está alimentando o Felroz para ser seu próprio corpo. Como meu pai uma vez testemunhou.
Kefiane deu um passo à frente, a voz firme.
— Senhor, confie nele. Dante é o único que já vi lidar com algo assim. Mais de uma vez.
O nome reacendeu algo na mente de Merlin. Ele lembrava que seu pai também tinha um aliado que se dizia invencível. Ambos morreram sozinhos, num campo esquecido, enterrados pelo vento e pelo tempo.
Seus olhos vacilaram. Eu consigo… evitar o mesmo destino?
O toque no ombro o trouxe de volta. Kefiane sorria de forma tênue, mas segura, como quem carrega a certeza de que vai vencer. Passara uma vida inteira presa ao mar e, mesmo assim, ainda sorria no olho da tempestade.
— Eu vou ajudar, senhor — disse ela. — Pai, prepare todos para um confronto futuro, se necessário. Merlin e eu vamos nos juntar a Dante e derrubar o Rastro. Foi para isso que treinamos a vida inteira.
Bello riu, já se dirigindo à saída.
— Se acontecer alguma coisa, você vai pagar por isso, garota. Cuide do Mestre Merlin.
Após Bello ir, Kefiane manteve a mão firme sobre o ombro de Merlin, mas desta vez apertou com mais força, obrigando-o a erguer o rosto e encará-la nos olhos.
— Senhor, prometo por tudo o que é sagrado, o senhor não morrerá. Aqui, presente aos Deuses que ainda podem nos ouvir e escutar, farei de tudo para que mantenha sua vida intacta. Mas, se por algum motivo, sairmos ilesos, peço que escute Dante.
— Antes de me pedir qualquer coisa… — ele ergueu a mão e apontou para além da porta, onde o rugido do monstro ainda ecoava, misturado a rajadas de água e gelo quebrando. — Temos que acabar com aquela criatura.
Kefiane o seguiu com o olhar, séria, os músculos tensos, como se cada palavra dele fosse um comando militar. Ela assentiu, a postura reta, sem desviar os olhos.
— Faremos isso, senhor. — A mão dela soltou o ombro dele, mas a presença permanecia, quase como se ainda o segurasse. — Por favor… empreste sua habilidade. Com ela, teremos uma chance de verdade.
No instante seguinte, um estrondo sacudiu a estrutura. Poeira caiu do teto. A luz das chamas, filtrada pelas frestas, projetou sombras violentas nas paredes. Ambos sabiam que o tempo para hesitar havia acabado.
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