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    — Não podemos entrar lá agora — disse Merlin, a voz baixa, firme, antes de seguir alguns passos atrás de Kefiane. — Está vendo aquela coisa ao redor da criatura?

    Ela não havia percebido antes. Entre os clarões das chamas e os estilhaços de gelo, um cubo girava ao redor do Felroz Mutante. Não era feito de metal ou pedra — sua superfície parecia um reflexo líquido que dobrava a luz, como se o ar tivesse sido moldado em forma sólida. O objeto girava em alta velocidade, mas, de tempos em tempos, travava por um instante, e nesse breve momento, Dante conseguia avançar com seus punhos, quebrando ataques que vinham de todas as direções.

    Mas o detalhe mais perturbador era que o cubo acelerava cada vez mais. Está reagindo a luta.

    — Aquilo é uma habilidade também — explicou Merlin, o olhar fixo na rotação hipnótica do objeto. — Ele cria uma percepção de perigo na mente do Felroz, forçando-o a agir instintivamente para escapar. Já vi caçadores experientes serem despedaçados antes mesmo de o cubo se mover. Mas…

    — Quanto mais ele gira, mais perigoso fica? — interrompeu Kefiane, franzindo o cenho.

    — Praticamente — confirmou Merlin, fechando a mão num gesto brusco. O portal que ele mantinha à frente deles se apagou, engolido pela própria sombra. — Nós vamos ter que criar uma brecha, um espaço preciso entre o golpe do seu amigo e o instante em que o cubo para. Nesse intervalo, entramos. E temos que ser rápidos, Filha do Mar. Felroz Mutantes são inimigos formidáveis; eles não apenas reagem, eles aprendem. E quando você soma isso a um Rastro… está lidando com algo que evolui durante a luta.

    Kefiane respirou fundo.

    — Então, qual é o plano?

    — Vamos abrir um portal logo acima da criatura, e faremos um único movimento para derrubá-la ao chão. Lá, eu criarei outro portal para lançá-la direto no meio do oceano. — Sua voz não vacilou. — Isso será suficiente… por agora.

    — Não vamos derrotá-lo? — o tom dela foi puro questionamento.

    Merlin a olhou de frente e balançou a cabeça com intensidade.

    — Aquilo não é outra criatura que você acha que consegue vencer. Um Rastro não é morto dessa maneira. Eu vou confiar no seu amigo para criar a abertura de que precisamos, mas preciso que confie em mim quando digo: ninguém derrota algo assim sozinho. Nem Dante. Nem você. Nem eu.

    Lá fora, o cubo brilhou por um instante, refletindo um golpe de Dante que atravessou uma muralha de gelo e chamas. O som que veio depois não foi de impacto, mas de distorção — como se o ar tivesse sido rasgado.

    Merlin respirou fundo, os dedos já moldando o próximo portal.

    — Quando a brecha aparecer, não hesite.

    — Farei o que o senhor ordenar — respondeu secamente, mas confiante.

    Merlin não demonstrou preocupação. Não havia por que duvidar que ela cumpriria sua parte. Aquele monstro à frente deles não era apenas mais um inimigo: foram os responsásveis por devastar quase um continente inteiro, e, em seguida, por matar o próprio pai dele.

    Ele conhecia aquela dor. O vazio deixado não era algo que se curava, apenas se aprendia a carregar. Merlin talvez não entendesse como acalmar ou aliviar os sentimentos de perda, mas sabia impedir que outro passasse pelo mesmo. Seu pai sabia disso, seu avô também… e, agora, era ele quem carregava essa herança.

    Não importava se a vida que levamos valeu a pena ou não. No momento certo… fazemos o que precisa ser feito para salvar a todos.

    — Se prepare — afirmou, e fechou os olhos.

    A Energia Cósmica se derramou sobre seus sentidos como um rio morno invadindo cada nervo e veia, penetrando fundo nos ramos vitais, alimentando-se do desejo de vida que ainda pulsava ao redor. Ganhou forma, ganhou caminho. Com a mente submersa nesse fluxo, Merlin se projetou para longe, atravessando espaços que seus pés jamais tocariam fisicamente.

    Sua forma nesse lugar não era mais sólida. Tornou-se apenas um reflexo translúcido, uma fagulha de si mesmo, carregando a essência mínima que o mantinha consciente.

    E então ele viu.

    Um campo de neve se estendia sem fim, o branco quebrado apenas por manchas de sombra onde humanos se protegiam atrás de muralhas improvisadas, enquanto Felroz se agrupavam em torno de seu líder. A batalha ali não era caótica — era uma fortificação entre os dois polos.

    Mas os olhos de Merlin não conseguiam discernir rostos ou armaduras. Não havia carne nem metal; apenas luzes. Pontos brilhantes, pulsando no ar, cada um com um ritmo próprio.

    Ele congelou.

    Não eram pequenos. Não eram fracos. Dois deles ardiam com intensidade absurda, se chocando e se separando como dois sóis em guerra. Cada colisão fazia faíscas de energia se desprenderem, e, no instante seguinte, parte dessas faíscas era absorvida pelo adversário, alimentando-o, fortalecendo-o.

    Era um ciclo de violência que só aumentava, uma troca constante onde cada golpe deixava um resquício do outro para trás, como se ambos se devorassem mutuamente.

    Um passo errado na neve fez o ar mudar. O silêncio pesado se rompeu, e ele sentiu dois olhares o encontrarem ao mesmo tempo — de lados opostos do campo.

    A respiração prendeu. Eles me sentiram…

    A voz de Merlin em seu íntimo foi cortada por um pensamento frio:

    Eles são monstros. A Filha do Mar é louca…

    E então, veio a intrusão.

    — Eu… o vejo… humano — a voz do Felroz ecoou direto em sua mente, rouca, grotesca, carregada de um peso que parecia se arrastar por dentro do crânio. — Sua habilidade… eu a quero.

    A pressão aumentou, como garras tentando abrir fendas na sua consciência.

    — Está me ignorando agora, seu maldito? — rosnou Merlin mentalmente, tentando firmar a presença.

    Mas, antes que a escuridão se fechasse sobre ele, algo explodiu. Um golpe brutal atingiu o Felroz, arremessando-o para trás. A energia opressora se dissolveu em um turbilhão de cores que se espalhou como fumaça no ar, e, dessas cores, braços etéreos começaram a surgir, se retorcendo.

    Do outro lado, o humano que lutava, o tal Dante, se mantinha firme, mas Merlin via agora o que seu pai jamais mencionara: eles estavam lutando em duas frentes, no físico e no etéreo, simultaneamente.

    Droga… preciso conjurar o portal agora.

    — Não sei o que vai fazer — a voz de Dante veio, rápida e pragmática, no espaço mental. — Mas, se for pra ajudar, eu consigo segurar ele por dois segundos. É suficiente?

    Merlin já estava moldando o círculo dourado nas mãos, sentindo o espaço se dobrar.

    — Não. — Um meio sorriso se formou, apesar da tensão. — Já está feito.

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