Capítulo 447: Sondagem
— O senhor pode ficar despreocupado — disse Clara, ajeitando a trança sobre o ombro, a voz firme apesar da fadiga nos olhos. — Muita gente aqui gosta de pensar que a vida que tínhamos não pode ser refeita, mas não é algo que nós, da Cuba, pensamos. Algumas práticas, como o casamento, são necessárias.
Vinigo ergueu o olhar do livreto, os dedos tamborilando devagar sobre a capa gasta.
— Um casamento pode ser necessário para firmar alianças — retrucou, mostrando um sorriso de canto. — Dentro dos parâmetros corretos e pelas pessoas certas. Por que acha que me enviam toda semana para cá?
Clara suspirou, cruzando os braços. Aquela insistência já era familiar, e mesmo assim a desgastava. A ideia de unirem duas cidades tão diferentes por um laço forçado lhe parecia absurda, um fardo que ninguém ali deveria carregar.
— Você vem porque gosta da cidade, acredito. — Respondeu seca, girando o corpo para encará-lo por completo. — Não somos pessoas compatíveis, senhor Vinigo. Nossa idade, nosso modo de pensar. As gerações são completamente diferentes para quem olha de fora.
Ele sorriu mais uma vez, já esperando por aquela resposta.
— Está preocupada com isso? Com o que vão pensar?
— Me preocupo com o bem-estar das pessoas de onde moro. Apenas isso. — Ela sustentou o olhar sem vacilar, negando-lhe a satisfação de perceber qualquer fragilidade. — Deveria fazer o mesmo com sua cidade. Ser filho de um homem que prospera te dá regalias.
Vinigo se recostou na cadeira, deixando o livreto cair sobre a mesa com um leve baque. Seus olhos escuros cintilaram com algo entre orgulho e desafio.
— Não estou aqui para ser melhor do que os outros. A vantagem que tenho vem das pessoas de antes de mim, assim como os seus cidadãos vão provar dessa mesma sensação daqui a alguns anos, quando tiverem filhos.
Clara apertou a mandíbula.
— Não seja arrogante, Vinigo.
Ele inclinou-se para frente, a voz grave, carregada de ironia.
— Eu? Só estou falando a verdade. Vocês criaram esse lugar na base da limpeza, e agora estão aproveitando o começo, não a Era de Ouro, como meu pai dizia. Nós já vivemos isso há muito tempo.
As palavras ecoaram, e por um instante Clara se permitiu lembrar de todas as batalhas que a Cuba havia enfrentado para sobreviver: a fome, os Felroz, os invernos intermináveis. Juno, Leo, Heian, Marcus… quantas vezes eles sangraram para que aquelas ruas estivessem novamente cheias de vozes? Agora, ver o sol retornar pouco a pouco era como testemunhar uma promessa.
Ainda assim, a ideia de unir-se a Keishin através de um casamento lhe soava insana. Tratados, acordos, trocas… sim. Mas entregar-se a um costume imposto? A obsessão do pai de Vinigo lhe parecia coisa de outro tempo.
A porta rangeu. Marcus surgiu no vão, os olhos austeros vasculhando o ambiente antes de se aproximar. O silêncio se espalhou com sua presença, e Clara sentiu-se estranhamente mais firme só por vê-lo ali.
— Estou interrompendo? — perguntou, a voz grave como sempre.
Vinigo foi mais rápido em responder, um sorriso enviesado se abrindo em seu rosto.
— Deveria ter lido o ambiente, atirador. Meu pai gosta bastante de você. Disse que conseguiu matar um Felroz com três balas. — Mesmo no tom de provocação, havia um brilho de genuíno interesse.— É verdade mesmo ou só fama pra deixar sua cidade mais famosa?
Marcus não se dignou a olhar para ele. O foco permaneceu em Clara.
— A vigia foi sem problemas. Juno voltou em segurança também.
— Ótimo. — Clara relaxou. O retorno deles era suficiente para não precisar se preocupar com outra coisa. — Duna queria conversar com Heian sobre algo no antigo metrô. Se puder ajudar. E há uma reunião marcada com o Rupestre. Ele pediu para falar sobre algo recorrente.
Marcus assentiu, já se virando para sair.
— Ei — chamou Vinigo de novo, inclinando-se sobre a cadeira. — Perguntei sério. Quero saber como fez para derrubar aquele mostrengo com uma arminha daquelas.
A maçaneta já girava. A porta se abriu devagar, revelando apenas a silhueta de Marcus na penumbra do corredor. Sua resposta veio sem emoção, como se fosse apenas uma verdade simples:
— Aperte o gatilho e eles caem.
Assim que Marcus saiu, o silêncio se instalou na sala. Vinigo inclinou-se para trás na cadeira, soltando uma risada seca e dando um tapa na própria perna, como se quisesse espantar o incômodo que a presença do atirador sempre lhe causava.
— Adoro esse cara, sabia? — comentou, ainda rindo sozinho. — Meu pai disse que, na primeira vez que ele veio para esse lado, encontrou com ele praticamente de tocaia dentro de um prédio, num dia chuvoso. É uma das melhores histórias dele.
Clara ergueu uma sobrancelha, mas não se deixou envolver pelo entusiasmo. Cruzou os braços e respirou fundo, tentando retomar o controle da conversa.
— Deve ser uma ótima história, mas não posso ouvir agora. — Sua voz saiu firme, sem brechas. — Pode dizer ao seu pai que não vou me casar com você ou com qualquer um que ele escolha. Se ele quiser fazer acordos, ótimo. Mas não vou prender ninguém a uma vida que não deseja só porque ele acha melhor.
O riso de Vinigo se apagou. Ele suspirou fundo, passando a mão pelo cabelo como quem já esperava ouvir aquilo.
— Ótimo. — Respondeu, num tom quase aliviado. — Pelo menos, se eu falar isso, ele pode parar de me enviar pra cá.
Empurrou a cadeira para trás com um rangido metálico que ecoou pela sala. Levantou-se, pegando o livreto que descansava sobre a mesa e ajeitando-o debaixo do braço. Por um instante, hesitou, como se buscasse a palavra certa para encerrar aquilo de vez.
— Não quero parecer rude, Clara… mas você também não faz meu tipo.
Clara piscou, surpresa pelo descarte tão direto, mas em seguida deixou escapar uma risada curta, quase sincera.
— Concordamos nisso, pelo menos.
Os dois se encararam por um segundo. Não havia mais tensão, apenas a estranha sensação de que, finalmente, tinham colocado as cartas na mesa.
Uma cidade como a Cuba não era simplesmente feita para que outras trouxessem suas culturas. Era um lugar onde a criação de algo próprio poderia florescer no coração dos seus habitantes. Clara não tinha dúvida de que poderia sustentar isso.
Até porque ela nunca estava sozinha. Vinigo também sabia bem disso.
Se ele ousasse ir longe demais, uma palavra de Clara era necessário para que ele tivesse um grande problema para segurar. Alias, Kappz não era de ninguém ainda. Nem dela e nem dos líderes da Zona Cega… duvidava que Kenshin seria capaz de se aproximar deles.
Mas… eles ainda eram os únicos com energia elétrica suficiente para habitar um imenso número de quartos, cozinhas e pátios. Pelo menos em um raio de dois quilômetros, eles estariam seguros.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.