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    Marcus atravessou a Cuba inteira até alcançar os laboratórios de Duna. O corredor estava úmido e silencioso, exceto pelo zumbido das lâmpadas antigas que tremulavam no teto. Nem precisou girar a maçaneta: a porta do laboratório já estava escancarada, pendendo torta, e dali saíam vozes ásperas, misturadas a um som metálico de gavetas e armários sendo vasculhados sem cuidado.

    Flexionou os joelhos, corpo baixo, e puxou a pistola da cintura. O frio do cano contra a mão lhe trouxe a velha familiaridade do combate. Caminhou devagar, cada passo medido, até se posicionar de frente para a entrada. Ninguém podia entrar ali sem permissão, nem mesmo ele. Respirou fundo, espiou para dentro e viu o estrago: mesas viradas, papéis espalhados, frascos quebrados no chão que exalavam cheiros químicos sufocantes.

    Mas o que os três invasores buscavam estava intacto. O armário que Heian havia trancado continuava fechado.

    — Eu tenho certeza que está aqui — murmurou um deles, apontando para a fechadura. — Ele guardou o rifle aqui. Da última vez ouvi aquele velhote falando que conseguia matar um Felroz com um tiro. Eu quero isso.

    — Todo mundo quer. Agora cala a boca e vigia a porta.

    Armas. Sempre armas.

    Marcus suspirou baixo. Já eram duas invasões em outros laboratórios naquela semana, e ele havia deixado Magrot responsável por investigar. Parece que não adiantou.

    Dessa vez, não escondeu sua presença. Empurrou a porta e entrou de propósito fazendo barulho. O rangido ecoou. Os três homens gelaram, interrompendo o saque. Giraram os corpos rápido, mas os olhos os traíram — medo, surpresa, uma ponta de teimosia. Não tinham o instinto natural de ladrões, apenas o desespero de quem busca algo maior do que entende.

    Marcus parou a cinco metros deles. Soltou um suspiro pesado, baixando a pistola por um instante. Os três hesitaram. A lenda parecia falar por si.

    Levou a mão ao pequeno broche em seu peito — o Cubo de Transmissão — e apertou.

    — Magrot, encontrei seus ratos no laboratório três.

    O silêncio se partiu num sussurro.

    — Merda… é ele. É o Atirador.

    O título, embora banal para Marcus, os fez engolir seco. Clara dizia que a fama o precedia, e talvez tivesse razão. Carrasco dos Felroz. Um nome que veio de algumas vitórias difíceis, de Felroz Mutantes caindo pelo peso do seu rifle. Não era glória; era necessidade. E a necessidade agora era proteger.

    Já estou chegando — a voz de Magrot soou no comunicador. — Segure eles. Tenho perguntas.

    Marcus ergueu a pistola e gesticulou com ela para o chão. Os três se apressaram em obedecer, sentando-se com movimentos trêmulos. Ele recuou dois passos, recostando-se numa mesa revirada, os olhos fixos neles, estudando o comportamento.

    — Dez segundos — disse, frio. — Por que queriam o rifle?

    — Senhor… — o primeiro ergueu a mão rápido, quase suplicando. — Nós não queríamos ele pra fazer mal. É só que… a gente sabe que, se tiver a arma certa, vamos poder ajudar.

    — Ajudar em quê?

    — A derrotar o monstro.

    Marcus arqueou a sobrancelha, franzindo o cenho.

    — Que monstro é esse? Nós limpamos a Cuba.

    Antes que o rapaz respondesse, passos metálicos ecoaram pelo teto quebrado. Vidros se deslocaram. Magrot entrou, cada batida de sua sola de ferro marcando presença. Seus braços mecânicos reluziam sob a luz mortiça, e só a visão de sua silhueta já fez os três invasores se encolherem como crianças diante de uma fera.

    Eles têm mais medo do Magrot do que de mim, pensou Marcus com certa ironia.

    Magrot caminhou até ficar sobre eles. Seu rosto endurecido, os músculos misturados às peças de ferro, compunham um quadro de brutalidade que dispensava palavras.

    — São os seus — disse Marcus, indicando-os com um leve movimento de cabeça. — Eu vim ver Duna, mas parece que não tinha ninguém tomando conta daqui.

    — Duna saiu faz uma hora — respondeu Magrot, a voz ecoando grave. — Foi falar com Kalish e Virgo. Dinamite e Secure o levaram. Mas esses aqui… são mais espertos do que pensei. Para saberem o cronograma dele, alguém passou informações.

    Os invasores arrastaram-se alguns centímetros para trás, o mais longe que podiam da figura de ferro.

    — Vamos — continuou Magrot, quase cordial, mas os olhos frios não se camuflavam da frieza. — Quem foi?

    Dois apontaram de imediato para o terceiro, o mais jovem. Cabelos curtos, olhos verdes. O garoto ergueu as mãos num gesto desesperado.

    — Desculpa, desculpa! Eu não recebi informação nenhuma… Eu consigo ver lugares distantes. É a minha habilidade. Eu só… vi.

    Magrot virou o rosto para Marcus, gesticulando com a cabeça.

    — E então, acha que serve?

    — Serve, sim. — Marcus respondeu. — Não vou prender nem torturar ninguém só porque invadiu um laboratório. Mas se conversar com Clara, talvez…

    Ele deixou a frase morrer. Estava cansado de sempre ter de carregar decisões sozinho.

    — Ei, garoto. Vem.

    O jovem se levantou rápido, correndo até ele como quem busca refúgio. Marcus o segurou pelo ombro, firme, trazendo-o de volta ao chão da realidade.

    — Não se preocupe. Se cooperarem, não vão ser trancafiados. Mas você precisa conhecer uma pessoa. Sabe quem comanda a Cuba, certo?

    O garoto balançou a cabeça freneticamente, negando.

    — Dona Clara não, por favor. Minha mãe vai me matar se souber que eu tô nisso. Eu só queria ver o rifle, eu juro.

    — Se fizer o que eu mandar, converso com ela sobre isso. — A tensão no jovem diminuiu, mas não o bastante para apagar o medo em seus olhos.

    Marcus virou-se para Magrot.

    — Estou saindo com esse aqui. Leve os outros.

    Magrot assentiu, já puxando os dois rapazes pelo colarinho como bonecos de pano.

    — Até depois.

    Marcus empurrou a segunda porta metálica do laboratório com o ombro, levando o garoto pelo braço. O corredor estava silencioso, exceto pelo som ritmado das botas deles ecoando nas paredes largas de concreto. O jovem mantinha os olhos baixos, respirando fundo como se tentasse engolir a vergonha e o medo de ser levado até Clara.

    Já na rua, o ar gelado da Cuba os recebeu. As luzes suspensas pelas torres refletiam no vidro quebrado que ainda caía das estruturas, denunciando o caos da invasão. Marcus soltou um suspiro pesado, ajeitou o casaco e estava prestes a falar alguma coisa ao garoto quando o chão tremeu sob seus pés.

    Primeiro, uma vibração leve, como se algo distante tivesse apenas roçado as fundações da cidade. Mas, em seguida, veio o impacto real. O solo de Kappz rugiu com violência, e a Cuba inteira balançou como se estivesse suspensa por fios prestes a se romper. O ferro rangeu, as vidraças explodiram em estilhaços e colunas de poeira subiram dos prédios próximos.

    Marcus parou de imediato, instintivamente segurando o ombro do rapaz com força. Ambos ficaram estáticos, sentindo as ondas do tremor percorrerem cada músculo. Os alarmes da Cuba dispararam quase ao mesmo tempo, ecoando como gritos metálicos em todas as direções.

    — O que foi isso?! — o garoto gritou, os olhos arregalados, olhando ao redor como se buscasse um ponto de segurança.

    Marcus não respondeu. Sua atenção se prendeu ao broche preso em seu peito, que começou a pulsar em vermelho. Apertou-o com firmeza. Uma voz estourou no comunicador, urgente, carregada de respiração ofegante:

    — Marcus… aqui é Duna. Ouça com atenção… — houve uma pausa, seguida de estática pesada. — Algo aconteceu no meio da cidade. Uma explosão colossal. Vários prédios simplesmente… sumiram.

    O rapaz arregalou os olhos, quase perdendo o equilíbrio. Marcus sentiu a garganta travar por um instante, mas manteve o rosto impassível.

    — Quantos? — perguntou em voz baixa, mas a resposta veio com o peso de uma sentença.

    — Não sei. Ainda não conseguimos contabilizar. A área inteira… desapareceu.

    A comunicação se perdeu em mais ruídos e chiados. O broche ficou em silêncio.

    Marcus ergueu os olhos para o horizonte. Uma nuvem negra e espessa subia como uma muralha, cobrindo parte do céu da Kappz. Mesmo de longe, dava para ver o clarão avermelhado que ainda queimava no coração da cidade.

    O garoto ao seu lado começou a tremer, apertando os punhos.

    — Minha família… eles estavam lá…

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