Capítulo 450: Derrota (II)
Pela primeira vez em muitos dias, Juno sentiu o formigamento arder em seu olho direito, como se algo ali despertasse. As correntes elétricas que a sustentavam vibraram sozinhas, estalando mais forte, até se tornarem quase sólidas. Ela travou no topo da Torre de Vigilância, pousando Marcus com firmeza sobre o parapeito. Mas não se moveu mais. O ar ao redor dela parecia vibrar junto com as faíscas.
— O que houve? — perguntou Marcus, ajeitando o rifle no ombro. — Está tudo bem?
— Sim. — A resposta saiu rápida, quase automática.
— Não, não está. — A segunda voz se sobrepôs, quebrando o timbre habitual de Juno. Seus lábios se moveram, mas não era ela quem falava. A mecha branca em seus cabelos brilhou mais forte, espalhando-se como neve que tomava o escuro, até metade da cabeleira estar transformada.
Era Veronica.
— Faz anos desde que eu senti essa Energia Cósmica. — disse, olhando para o horizonte onde a fumaça ainda se erguia. O tom não era de medo, mas de reconhecimento. — Eu estava aqui quando ela apareceu pela primeira vez… e quando sumiu. Agora… ela voltou.
O corpo de Juno reagiu com espasmos curtos. Sua mão travou no parapeito de ferro, os dedos marcando o metal como se quisessem quebrá-lo. O peito subia e descia em soluços dolorosos — mas não eram dela.
— Esse Felroz… você conhece? — Marcus perguntou, fixando os olhos na transformação diante de si.
— Não diretamente. — Veronica respondeu, tomando mais espaço dentro do corpo. — Mas é do mesmo tipo.
O instante seguinte foi ainda mais estranho. Veronica se desprendeu. Um escoamento de luz e energia a separou do corpo de Juno, e então ela se pôs de pé ao lado da garota. Os membros dela eram feitos de ferro articulado, como se fossem uma armadura incompleta, mas o rosto e o cabelo… eram idênticos aos de Juno.
A verdadeira Juno, ofegante, levantou o olhar. Havia tanto tempo que não via sua outra parte assim, tão definida, que demorou um segundo para reconhecer. As duas pareciam irmãs, como reflexos de uma mesma raiz.
— E não é só esse Felroz. — Veronica continuou, os olhos estreitando em algo distante. — Há uma segunda criatura ali. Eu queria estar errada… mas, pelo bem de vocês, quero estar certa.
O rosto dela se contorceu por um instante, raiva e alívio se chocando na mesma expressão.
Veronica então virou o olhar para Juno, séria, firme como nunca.
— Se prepare. — disse, a voz carregando o peso de quem conhecia a história não contada daquela energia. — Se prepare para a luta da sua vida.
O comunicador soou novamente, interrompendo o som distante da cidade em colapso. Marcus segurou o dispositivo com firmeza, a voz metálica ecoando em seus ouvidos.
— Estou posicionado. — Heian soava rígido, como se nem o vento ousasse desviá-lo. — Esperando ordens para atacar a criatura.
— Gerhman e eu estamos esperando. — Leo completou, a respiração lenta denunciando a falta da ansiedade. — Dinamite e Secure?
— No local, senhor. — respondeu uma das vozes, grave, seca, sem tempo para titubear. — Só nos falar o que fazer.
Marcus respirou fundo, o ar pesado queimando os pulmões. Tirou o rifle do ombro e apoiou-o na mureta da torre. Com um gesto rápido, ajustou a luneta perto dos olhos, curvando-se como um animal à espreita em busca da presa. Cada movimento era treinado, mil vezes repetido. Ele estava pronto para lutar. Mas ao seu lado, Juno permanecia imóvel, travada, os olhos fixos em algo que só ela e Veronica compreendiam.
Ainda assim, ela não conseguia parar de observar a outra.
— A batalha da minha vida? — murmurou.
— Não se preocupe. — Veronica inclinou o rosto, um meio sorriso brincando em seus lábios antes de piscar o olho esquerdo. — Sua motivação vai aumentar em mil vezes depois de entender.
Era como uma promessa amarga. Mistérios, sempre mais mistérios. Juno cerrou os punhos, já cansada de ter perguntas que não tinham resposta.
O comunicador estalou de novo, desta vez com a voz de alguém mais tensa:
— Esperem. Clara está se movimentando com Jix e Hélio. Eles querem ver…
— Não. — A voz de Duna atravessou seca e urgente, abafando qualquer outro som. — A situação não é das melhores. A Energia Cósmica da criatura que está lá não é simplesmente uma atração. É um repuxo, uma âncora. Precisamos agir agora e tirar todos que estão vivos do local.
O silêncio que seguiu foi sufocante. Juno virou o rosto para Marcus, tentando decifrar sua expressão. E foi nesse instante que ela viu. O rosto dele, que sempre fora de uma indiferença fria, começou a se distorcer. Primeiro uma estranheza contida, como se algo não fizesse sentido. Depois, descrença. Em seguida, o choque. Seus lábios tremeram, o rifle quase escapando da pressão de seus dedos.
Ela abriu a boca para perguntar, mas Veronica levantou a mão na frente dela, os olhos fixos em Marcus.
— Deixe que ele anuncie. — disse, firme. — Aliás, Marcus o conheceu primeiro.
O Atirador levou a mão ao broche no peito, apertando-o com força. Seus dedos tremiam. Quando tentou falar, a voz falhou. Precisou pigarrear, recuperar o fôlego, e mesmo assim soou como um homem que não queria acreditar no que dizia.
— Marcus falando. — sua voz atravessou todas as frequências, fazendo todos os canais ficarem em silêncio absoluto. — Anunciando que o Felroz mutante… não está sozinho.
Um segundo de silêncio pesado.
— Eu… tenho certeza de que… existe uma pessoa diante dele. — a voz quase quebrou. — E… parece ser com… o Dante.
Juno rapidamente virou o rosto para a direção onde os prédios tinham sido reduzidos a poeira e aço retorcido. O ar ainda estava turvo de fumaça, e mesmo assim, ela sentiu. Sentiu no fundo de sua carne, no osso, no sangue. Aquela Energia Cósmica não pertencia apenas ao Felroz. Ela pulsava de outro ponto, vibrava de outra maneira. Era conhecida. Era íntima.
Veronica não havia exagerado. Agora Juno entendia cada palavra.
Seu coração disparou, um trovão dentro do peito. Aquele fluxo inconfundível era de um homem. Um homem que não era apenas lembrança. Um homem que a havia resgatado quando ninguém mais estendeu a mão. Que a tirou de noites de fome e medo. Que lhe dera abrigo, treino, disciplina e, acima de tudo, um lar.
Seu mestre.
O choque não lhe deu tempo para pensar. Como um disparo de rifle, Juno se lançou. Saltou por cima da mureta da Torre de Vigilância sem medir a altura, sem calcular ângulos ou estratégias. O vento estourou em seus ouvidos quando mergulhou na direção das ruínas. Não importava quantos inimigos esperavam lá embaixo. Não importava se eram monstros, Felrozes ou qualquer abominação.
Ela não deixaria seu mestre morrer. Não permitiria que ele carregasse sozinho o peso de um destino que já lhe roubara tanto.
Eu estou indo, mestre.
Marcus, do alto, reagiu com a precisão de quem sabia que não havia mais como contê-la. O broche em sua mão brilhou quando ele chamou os outros.
— Todas as unidades, avancem! — sua voz ecoou como ordem e como alerta. — Juno já está em partida.
O canal do comunicador se encheu de confirmações rápidas, vozes sobrepostas que juravam lealdade e prontidão. Ainda assim, por alguns segundos, um silêncio pesado reinou no grupo, como se todos aguardassem o próximo comando.
Marcus fechou os olhos, respirou fundo, e prosseguiu com firmeza:
— Clara, preciso que esteja lá.
Do outro lado, veio a resposta carregada de um som abafado. Não era estática. Não era interferência. Era o som contido de alguém chorando.
— Não se preocupe… — a voz de Clara saiu trêmula, mas decidida. — Eu estou a caminho agora mesmo.
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