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    Os braços não respondiam. Ele havia tentado durante longos minutos, forçando cada tendão, cada nervo, como se gritasse para dentro do próprio corpo — mas nada. Os músculos eram puro chumbo, esmagados sob um peso invisível. Era como se uma montanha tivesse se assentado sobre ele, impedindo qualquer reação.

    Suas pernas não obedeciam. O tronco estava estático. Apenas a cabeça permanecia livre, e mesmo isso parecia um esforço antinatural. Dante não havia caído de lado ou de bruços quando tombou. O destino, ou talvez a própria teimosia dele, o mantivera ajoelhado, como se tivesse escolhido não se render nem no fim.

    E esse gesto, pequeno e trágico, tinha lhe custado tudo.

    “Seu corpo está em decomposição agora”, avisou Vick, a voz ecoando pela mente, carregada de alerta e urgência. “Estou revestindo você com toda a habilidade de regeneração disponível, mas não consigo acompanhar a velocidade da destruição causada por aquele monstro.”

    O calor metálico do sangue queimava a boca. O ar parecia ácido. Ainda assim, os olhos de Dante subiram do chão, onde seus joelhos tremiam, e encararam a carcaça colossal diante dele.

    O Felroz.

    Metade de seu corpo — o lado direito — estava em frangalhos, a carne e o metal retorcido se espalhando pelo campo de batalha como destroços. Mas o lado esquerdo, o coração da criatura, permanecia intacto, pulsando com uma Energia Cósmica quase palpável.

    E mesmo ajoelhado, mesmo mutilado, o monstro falava.

    — Eu… admiro você — disse a criatura, a voz grave, retorcida pela dor. — Você… foi o único que me fez sentir medo em uma verdadeira batalha. Mas… você também chegou ao seu limite, não foi?

    Dante ofegou. O peito se movia em contrações dolorosas. O sangue escorria quente da boca.

    “Refazendo tecidos destruídos… mas seu corpo está colapsando mais rápido do que posso reparar, Dante. Preciso que Nick e Lilo absorvam Energia Cósmica para manter o processo estável…”

    A voz de Vick começou a falhar, distorcida, como um rádio no fim da frequência. Dante ainda a escutava, mas o mundo girava. A única certeza que tinha era cruel: havia se entregado por completo. E mesmo assim… perdera. Mais uma vez.

    — Sua habilidade corporal me mostrou que os humanos são mais do que apenas brinquedos — continuou o Felroz, imóvel, mas com o único olho restante brilhando. — Este corpo… é apenas uma cápsula que eu precisei para me manter vivo, Dante. Mas você… fez a escolha errada.

    — Não… — a voz de Dante saiu rouca, abafada.

    — Claro que fez. — A criatura, ou o Rastro que a habitava, riu fracamente, o som quebrado, quase humano. — Seu último movimento… aquele soco capaz de apagar minha existência… você o desviou. Concentrou sua Energia Cósmica em um golpe final que faria tudo desaparecer. Mas, na última fração de segundo, você os viu.

    A audição de Dante se expandiu, como se alguém tivesse arrancado um véu dos ouvidos.

    E os sons vieram.

    Os choros. As vozes em pânico, atrás dele. Pessoas clamando por ajuda, soluçando, tentando sobreviver em meio ao caos.

    Sim… ele se lembrava.

    — Alterou o golpe para não atingi-los. — O braço intacto do Felroz moveu-se lentamente até tocar a massa destroçada do próprio corpo. — Você trocou a sua vida e a minha pela deles. Um punho que poderia selar o destino de ambos… e você recuou. Isso me custará tempo, mas veja… eu sou feito do mesmo golpe que me feriu. E vou me regenerar.

    As pálpebras de Dante se fecharam, pesadas como pedra. Ele inspirou fundo, o ar rasgando a garganta, cada sopro sendo quase um adeus.

    Dante… seu corpo não vai aguentar. Estou acionando o protocolo de conversão de Energia Cósmica interna. Se eu fizer isso, você…”

    — Não, Vick. — Ele abriu os olhos, a pupila dilatada, o olhar fixo no monstro diante de si. Sua voz, mesmo falha, carregava uma resolução irredutível. — Quero que use… minha Energia Cósmica. Use para avisar a qualquer um que estiver perto que essas pessoas precisam de ajuda. Avise a elas, por favor.

    De dentro da roupa rasgada e encharcada de sangue, os dois pequenos Felroz deslizaram como fagulhas vivas. Subiram ágeis até seus ombros, agarrando-se a ele como se temessem que Dante desaparecesse a qualquer instante.

    Nick encostou as mãos pequenas e frias contra o rosto dele, os olhos arregalados, tentando transmitir forças que não tinha. Lilo, inquieta, girava no ar em espirais de luz tênue antes de pousar na bochecha dele, tocando-o com delicadeza, como se pudesse aliviar sua dor apenas com aquele gesto.

    Ele sorriu fraco, quase invisível.

    Queria poder me despedir melhor de vocês. Desculpem por isso.

    — Não se preocupe. — A voz do Rastro soou mais firme, carregada de uma confiança sombria.

    A criatura, até então ajoelhada e destroçada, erguia-se devagar. A perna direita, outrora esmagada, agora se recomponha em uma fusão grotesca: músculos azulados se entrelaçavam em fibras vivas, colando-se à carne apodrecida, enquanto ossos se formavam em estalos secos. O som da regeneração era nauseante.

    Ele arrastou o membro recém-formado no chão, como se testasse a força, e deu um passo em direção a Dante. Seu sorriso, exibindo dentes podres e irregulares, abriu-se em escárnio.

    — Esse lugar não é muito diferente de onde eu estava. Sempre precisam de um líder. — Sua voz carregava desprezo, mas também um certo orgulho doentio. — Em Selenor, ainda precisava lidar com aquela bruxa miserável, a Rainha do Norte. Mas aqui? — Ele abriu o braço como quem saudava um novo lar. — Aqui não sinto nenhuma anomalia. Sabe o que isso significa?

    Se inclinou levemente para frente, os olhos incandescentes fixos em Dante.

    — Que seu sacrifício não foi nada além de perda de tempo.

    Dante tentou falar, mas a garganta queimava. Seu corpo estava oco, a vitalidade drenando como água entre os dedos. Nem mesmo a raiva se sustentava dentro dele. Apenas o vazio.

    “Nick e Lilo estão absorvendo a Energia Cósmica que conseguem para te ajudar, Dante. Não desista. Não desista.”

    A voz de Vick ecoava firme, mas distante, vindo de um lugar longe demais para que ele pudesse recuperar.

    Ele fechou os olhos por um instante, sentindo as lágrimas ameaçarem brotar, e forçou um riso fraco.

    — Eu… perdi. — As palavras saíram ásperas, cortando como vidro. — Perdi.

    A ironia o atingiu ao perceber o contraste. Sua vida se esvaía a cada batida do coração, enquanto, diante dele, o inimigo recuperava o vigor, a perna agora sólida, firme como se nunca tivesse sido arrancada.

    O Rastro parou diante dele, imponente, olhando-o de cima como um juiz diante do condenado. Sua presença pesava tanto quanto o ar envenenado que se infiltrava nos pulmões de Dante.

    — É o curso natural dos mais fracos. — Ele disse, com uma calma cruel, cerimoniosa. — Mas por ser o único que realmente conseguiu isso… — aproximou-se ainda mais, a sombra de seu corpo cobrindo Dante. — Farei com que seja indolor.

    Do lado destroçado, a carne continuava estagnada, ainda sem sinais de regeneração. Aquele desequilíbrio grotesco tornava a criatura ainda mais ameaçadora — meio quebrada, meio intacta, mas completamente letal.

    Dante aceitava sua derrota.

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