Capítulo 452: Derrota (IV)
O vento rasgava os ouvidos de Juno enquanto ela despencava das alturas. Suas correntes estalaram no ar como trovões, chicoteando até se fixarem em destroços encravados entre os prédios semi-caídos. O impacto do puxão a lançou para frente em um salto veloz, e assim, em sequência, ela avançava, predador sobre presas invisíveis.
A cada corrente que se prendia, cada salto que a empurrava mais perto do centro da destruição, a Energia Cósmica se intensificava. Era como atravessar um campo de tempestade: ondas de força que pressionavam o peito, que embaralhavam os pensamentos, que lhe arrancavam quase a respiração. Mas não importava.
Quando finalmente aterrissou em meio às ruínas, o chão ainda fumegava. Prédios inteiros tinham desaparecido, reduzidos a um mar de concreto retorcido, aço quebrado e labaredas que insistiam em consumir o que restava. Os ecos da explosão ainda vibravam nas paredes rachadas, como se a cidade estivesse respirando dor.
Juno caiu de joelhos, o braço no chão para estabilizar o corpo contra a energia que reverberava de lá. Seus olhos se ergueram, e no meio daquela devastação, ela sentiu.
Era ele. Não era uma memória, não era uma ilusão. Seu mestre estava ali.
O coração da garota disparou como nunca. Uma mistura de esperança e terror a percorreu, pois junto àquele sinal de vida pulsava também a fúria descomunal do Felroz mutante. As duas presenças se entrelaçavam como garras opostas tentando rasgar o mundo.
Mesmo o corpo dele estando destroçado, mesmo os ferimentos estarem o contornando completamente. A Energia Cósmica de Dante ainda vibrava mesmo na derrota. Ele era assim, sempre foi assim.
O sorriso protetor, suas aulas apontando seus defeitos. Não havia um dia onde ela imaginou que seu retorno seria dessa maneira. Não… ele não ia morrer ali.
Juno tinha tanto pra falar com ele. Sobre as suas batalhas, sobre as descobertas. A cidade que ela tinha aprendido a gostar tanto. Isso tudo porque ele a salvou. Por isso… por isso… ela não podia deixar…
Ela apertou os dentes, o peito arfando.
— Mestre… — a palavra escapou como um sussurro, uma súplica do que ele representava ao todo.
A criatura já estava próxima demais. Tão perto que Juno podia sentir o ar pesado deslocado a cada passo que ela dava em direção a Dante. A sombra da massa disforme o cobria quase por completo. Quando o braço único do monstro se ergueu, alto como uma guilhotina prestes a cair, ela entendeu: Dante tinha ido além do limite humano para vencer.
Os prédios ao redor, partidos ao meio, ainda desabavam em estalos de concreto e metal. Entre os escombros, vozes desesperadas se erguiam — choros, súplicas, gritos por socorro. O campo de batalha não era só dele e da criatura; era uma cidade inteira sufocada pelo terror.
“Ele não matou o Rastro para proteger as pessoas. Eu sinto a Energia Cósmica de um portal aberto.” — A voz de Verônica soou dentro de sua mente, firme, mas apressada. — “Eles vieram de outro lugar, mas duvido que esse seja o começo da luta.”
— Então… — Juno sussurrou, com o coração batendo como um tambor em sua garganta.
“Sim. Dante optou por não matar aquele monstro feito de Energia para proteger as pessoas que estavam aqui.”
Juno sabia que ele não perderia sem ter lutado.
O braço do Rastro deformou diante de seus olhos, a carne esticando em fibras escuras que se entrelaçaram até formarem uma lâmina grotesca. O metal vivo brilhava sob a luz mortiça, refletindo o caos em volta. A lâmina se ergueu mais alto, pronta para decepar a cabeça de Dante.
Juno sentiu a garganta fechar, as pernas se dobrando instintivamente, prontas para avançar. Mas sabia que não seria rápida o bastante. Não havia espaço. Não havia tempo.
Então a voz ecoou em seu ouvido, clara, decidida, atravessando o chiado do comunicador:
— Eu ouvi tudo, garota — disse Marcus. — Na verdade, todo mundo ouviu.
Houve um silêncio breve, como se todos prendessem a respiração.
— Se é o Dante quem está lá… — disse Leonardo Vulkaris, sua voz grave como trovão. — Então todos temos uma dívida a pagar agora.
Um coro de confirmações preencheu o canal. Vozes diferentes, mas unidas, sobrepostas em um clamor de lealdade. O comunicador, antes frio e impessoal, agora transbordava vida, como se cada palavra fosse um braço estendido em direção a Dante.
Juno fechou os olhos por um instante, sentindo o calor daquela união. Um sorriso pequeno escapou, ainda que o medo lhe corroesse por dentro. Pelo menos isso. Pelo menos sabia, sem sombra de dúvida, que em Kappz, Dante não estava sozinho. Era amado. Era seguido.
O Rastro parou ainda mais perto dele. O silêncio era sufocante, quebrado apenas pelo som distante de chamas devorando ruínas e dos gritos da cidade em colapso. A criatura inclinou a cabeça, os olhos vazios fixos em Dante, quase como se tivesse compaixão — mas não era compaixão.
Era algo pior. Podia sentir isso apenas pela forma como se movia.
— Você não pertence a este mundo. — sua voz tinha retornado para o normal, grossa e carregada de desdém. — Com esse espírito, com essa força… em outro lugar, talvez, você seria feliz. Talvez até reverenciado. Mas aqui… aqui não passa de desperdício.
O braço restante se ergueu mais uma vez, a carne pulsando, se retorcendo em veias negras até moldar uma lâmina grotesca. O movimento era lento, cruel. O Rastro se deliciava com o movimento, com a expressão, com a cena.
No final, era tudo o que ele mais queria. Lutar e ganhar.
Todos queriam isso.
O tempo pareceu se arrastar. Dante ouviu alguém gritar ao lado dele, mas sua voz foi engolida pelo caos. O coração dele batia contra o peito, cada segundo se alongando como uma eternidade.
O golpe desceu.
Um clarão seco cortou o som da cidade.
Tink!
Um disparo certeiro ecoou pelo ar, reverberando contra os prédios despedaçados. A lâmina de carne foi atingida no meio do movimento. Ossos e músculos explodiram em estilhaços grotescos. O braço do Rastro se desviou, batendo contra o chão com violência, abrindo uma cratera ao lado de Dante em vez de atravessar seu pescoço.
O monstro recuou, uivando, a carne ferida se retorcendo em espasmos, tentando se regenerar.
— O que é isso? Merda. O que…
A fumaça do tiro ainda pairava no ar quando todos ouviram pelo comunicador a voz firme, carregada de tensão. O Atirador que nunca errava, anunciando:
— Alvo confirmado. Ninguém toca no velhote enquanto estivermos aqui. Avancem.
O silêncio que se seguiu durou apenas um segundo, mas foi o bastante para reacender algo. Juno inspirou fundo, suas pernas finalmente se moveram. O impossível tinha acontecido: Dante ainda respirava.
E a mais de duzentos metros dali, sobre o parapeito da Torre de Vigilância, o Atirador reposicionava seu rifle colossal. O cano reluzia com o calor, uma serpente de fumaça escapando pela boca do ferrolho. Seus olhos, ocultos sob a viseira escura, não piscavam.
Com um movimento firme e preciso, puxou a alavanca. O som metálico ecoou no vazio, seco e quase solene; um tambor anunciando que o próximo disparo já estava à espera de sangue.
Sua própria Energia Cósmica foi sugada para dentro da arma. Foi desse jeito que Duna projetou a arma, para ser uma extensão de sua própria capacidade, para servir como se fosse ele mesmo o próprio disparo.
O cartucho no interior girou, vibrou, e a cápsula de munição começou a brilhar em azul profundo, encapsulada pelo poder bruto que só ele dominava. Cada disparo era um pacto — sua vida oferecida em fragmentos, moldada em pura destruição.
— Sem hesitar. — As palavras escaparam de seus lábios em um sopro baixo, o mesmo mantra que ele repetia sempre que o dedo se aproximava do gatilho. O olhar atravessava prédios, fumaça e distância, como se pudesse ver Dante ajoelhado lá embaixo. — Sem hesitar, velhote.
O dedo encostou suavemente no gatilho. Não havia tremor, não havia dúvida. Apenas a certeza de que mais um disparo mudaria o destino de uma vida. A vida de quem o salvou mais de uma vez…
Uma dívida que seria eterna.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.