Capítulo 459: Legado do Velho (III)
— Legado?
O Rastro esboçou um sorriso lento, cheio de desprezo. Os olhos ardiam como brasas, e a respiração dele era como o rugir de uma fornalha. Antes que pudesse zombar ou brandir suas garras, as duas asas explodiram em chamas amareladas. O fogo tomou forma com violência, ardente como o próprio sol, iluminando o cenário devastado com um clarão quase divino. As labaredas não cediam, não apagavam, como se a própria matéria delas fosse feita para queimar sem fim.
O monstro rugiu, virando-se para os lados em desespero, tentando sufocar o incêndio. Esse movimento brusco abriu a brecha que eles aguardavam.
— Assim que ele se foi, nós ficamos para honrar o que ele fez por nós. — Heian juntou as mãos à frente do peito, o rosto sério e o corpo exausto, respirando com dificuldade. A voz, porém, saiu firme, ressoando entre o vapor e a fumaça. — O Legado é só uma arma. A verdadeira intenção é fazer o inimigo sentir o que nós passamos.
As chamas cresceram ainda mais, subindo como colunas incandescentes pelas costas do Rastro. O calor queimava o ar ao redor, deformando as imagens. Foi nesse instante que o chão se ergueu. Espinhos emergiram do concreto, raízes grossas e retorcidas avançaram pelas pernas do Felroz, agarrando seus tornozelos e puxando-o para baixo com força. O solo rachou, tremendo como se quisesse engolir o monstro.
Do lado, Juno apareceu em movimento rápido, o braço erguido. Pequenas fagulhas que ela havia deixado discretamente no corpo dele durante os ataques anteriores se acenderam de uma vez só. O estalo elétrico ecoou no ar. Em seguida, os fios de energia se esticaram violentamente, rasgando músculos e abrindo feridas nas pernas e nos braços. As correntes de relâmpagos se fixaram nas pedras e pilastras quebradas, prendendo o corpo colossal como se fossem correntes forjadas pelos deuses.
O Rastro esperneava, rugia, mas quanto mais se debatia, mais a carne se lacerava. O cheiro de sangue queimado tomou o ar.
— Explodindo em três… dois… um…
Dinamite abriu os braços, e o chão ao redor tremeu. No mesmo instante, as costas do Rastro se abriram em uma fissura grotesca, jorrando sangue escuro. O grito da criatura sacudiu o ar, tão ensurdecedor que fez as paredes ao redor desmoronarem ainda mais. O rugido não era só dor — era fúria, um lamento bestial que se espalhava como ondas de choque.
Em segundos, a cena se transformou. O monstro, antes invencível, agora se contorcia preso, amarrado, queimado e sangrando. Seus movimentos grandiosos estavam limitados a espasmos de dor. A vantagem, enfim, havia virado.
Dinamite, ainda arfando, observava o monstro com a calma dura de quem já havia enfrentado horrores parecidos. Seus olhos não brilhavam com triunfo, mas com certeza. Ele sabia o que estava fazendo.
— Por tantas vezes enfrentei Felroz mutantes, aprendi onde eles escondem as falhas. — murmurou, como se explicasse para o próprio grupo, mas também para si. — Sempre nos lugares onde os tentáculos ou braços não alcançam… onde a carne é macia.
O olhar dele percorreu as costas ensanguentadas do Rastro, onde as labaredas e as fagulhas de Juno ainda queimavam e rasgavam.
— Por isso que as costas sempre foram o alvo. Simples. E letais.
Deu um passo para trás, os ombros relaxando. A batalha tinha chegado ao fim, e o peso dela se dissipava. Encontrou uma pedra chamuscada no chão e sentou-se, respirando fundo, o corpo ainda trêmulo pelo esforço.
— Acabou. — disse, num tom baixo. — Agora ele vai continuar sendo destroçado de dentro pra fora. Não há mais o que fazer.
— Não há mais o que fazer?
A voz ressoou como um trovão abafado. Os quatro se viraram rapidamente.
O Rastro ainda estava ali, preso, sendo despedaçado em mil tormentos. Sua carne se abria em cortes profundos, rasgada por dentro e por fora. O fogo queimava sem cessar, consumindo as asas. As correntes de eletricidade percorriam seus membros, rasgando músculos e tendões. O gelo solidificava partes da pele, estalando em rachaduras que se misturavam ao sangue negro. Explosões internas reverberavam em seu corpo, forçando mais líquido pútrido a jorrar.
E mesmo assim, ele permanecia de pé.
Os olhos, dois globos incandescentes, ardiam em vivacidade. Não havia neles desespero ou medo. Apenas uma firmeza monstruosa, uma chama inquebrantável. O Rastro não tinha desistido. Não estava morto. Estava mais vivo do que nunca.
Ele ergueu lentamente a cabeça, os dentes à mostra em algo entre um sorriso e um rosnado.
— Eu cresci sem um pingo de vontade. — Sua voz ecoava em camadas, cada palavra repetida por diversas vezes, em diversos tons. — Aprendi a me esconder dos olhos das criaturas, a rastejar pelas sombras… me fortaleci em silêncio até o dia em que decidi que nunca mais viveria nelas.
Os braços, mesmo presos por raízes, correntes elétricas e cravados de espinhos, começaram a se mover. O som dos músculos se rasgando e se reconstruindo ao mesmo tempo era grotesco, como carne sendo arrancada de ossos. Lentamente, eles se esticavam para os lados, cada centímetro conquistado pela pura vontade do monstro.
— Eu nunca deixei um humano ou um Felroz ditar minhas ações. — A cada palavra, o vapor em torno vibrava, reagindo à intensidade da voz. — Desde que cheguei até aqui, desde que toquei o solo e respirei o mesmo ar que vocês… eu sempre fui mais forte.
O coração de Heian disparou. O ar ao redor parecia mais pesado, suas narizes fecharam, o som deixou de chegar até eles. De novo, ele estava contorcendo a realidade ao redor para si. E isso não tinha mais como ser pior.
Dinamite cuspiu no chão, erguendo-se com esforço, o rosto vermelho de suor e sangue.
— Por que cacetes esses monstros são todos psicopatas?
Leonardo Vulkaris respirava ofegante, os olhos fixos no inimigo, e respondeu sem desviar o olhar:
— Acho que é porque eles não conseguem pensar na possibilidade de perder para pessoas mais fracas.
Juno estreitou os olhos, as lâminas ainda vibrando em suas mãos. Cada nervo dela gritava que aquele monstro não cederia facilmente.
Leonardo então completou, sua voz firme, quase solene:
— Mas não precisam se preocupar. Essa aberração tem seus segundos contados. Depois que o Legado é ativado… não existe nada que ele vá poder fazer.
O Rastro mostrou os dentes, cheios de sangue, tortos e retorcidos. Com ambos os olhos arregalados:
— Tem certeza disso?
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