Capítulo 461: Milagre
Quando se é uma criança, o peso das palavras não são tão firmes quanto quando a fase adulta chega. Para alguns, a vida e a morte se tratam de um ponto de vista rodeados de escolhas e consequências. Para outros, são apenas palavras para rotacionar um propósito.
Dentro de sua casa, rodeada de brinquedos, uma criança não se importa com a vida ou a morte. Ela apenas brinca como se fosse a primeira vez ou como se fosse a última. Clara gostava das bonecas que sua mãe achava pela cidade, mas eram os pequenos soldados de plásticos, em cima do sofá velho e acabado que ela se entregava.
Porque, quando olhava para os soldados, lembrava dele.
O pai dela, um homem de ombros largos, estava doente. Não no corpo, mas na essência. A Energia Cósmica dentro dele estava em colapso, corroendo-o lentamente, queimando suas veias. E ela nunca tinha entendido diretamente o porquê. na verdade, uma criança não sabe das coisas.
Crianças são apenas crianças.
A mãe de Clara, com lágrimas nos olhos, sempre se escondia entre os cômodos. Nunca deixava Clara perceber seu choro, suas lástimas, suas dores. Uma mãe de verdade nunca faria nada para deixar seus filhos preocupados.
Mas, Clara não era boba. Ela compreendia a dor, compreendia a verdade. Porque… ela conversava com os soldados de plástico.
— Seu pai está piorando, Clarinha. Precisa ajudá-lo. — Um deles sempre pedia que ela ficasse mais com o pai. — Ele não sai da cama faz dias. Precisa ajudar ele.
A ajuda que eles tanto pediam. O milagre por conversar com soldados de plástico que Clara sempre amou fazer se transformou em uma maldição sem fundamento. Ela queria por mais do que tudo ajudar seus pais, tirar aquela dor que eles carregavam nos ombros quando caminhavam pela casa, quando conversavam em segredo.
— Pai, mãe. — A garotinha se aproximou da cama dos dois no meio da noite. — Eu não quero que vocês se machuquem mais. Por favor.
Ela se jogou contra os dois, deitando com os braços esticados, tocando suas mãos neles no meio da noite.
Naquele instante, a pequena Clara sentiu o calor. Um calor que não vinha de uma lareira, mas do próprio corpo dos pais. O brilho azul começou a se formar ao redor dela, tênue, delicado, mas real.
Sem que percebesse, no meio da noite, a Energia Cósmica dentro do corpo dos dois era drenado pelo toque, pela delicadeza da criança. Pela ingenuidade.
E no começo do dia, quando os dos dois se levantaram, seus olhos se arregalaram. O pai levantou cambaleando, tossindo sangue, enquanto a mãe caiu de joelhos, sentindo a vitalidade esvair-se. A criança, assustada, recuou, mas o processo não parava. A energia deles estava sendo sugada para dentro dela, um rio inevitável.
— Clara… — a mãe sussurrou, a voz carregada de dor e amor ao mesmo tempo. — Você… é um milagre…
O pai caiu no chão segundos depois. A mãe logo o seguiu. Clara ficou no meio da sala, as pequenas mãos tremendo, sem entender o que tinha feito. Não havia querido. Não havia pedido. Mas havia acontecido.
Ela passou a vida carregando esse fardo. Aquilo que absorvia, aquilo que tirava dos outros… era a mesma coisa que um dia poderia salvar.
A perda era eminente… para quem não fizesse nada para salvar o que restava.
Por isso, não podia mais deixar que as pessoas que mais amavam se fossem. Não tinha motivos para deixar que a morte carregasse seus entes queridos. Seus melhores amigos, a única pessoa que realmente tinha vontade de compartilhar seus medos e segredos.
Nada faria com que Clara permitisse que Dante se fosse.
Dessa maneira, seu coração seria partilhado, seus medos e sonhos. A vida inteira entregue. Nem mesmo que fosse a última coisa que pudesse, mesmo que a própria morte viesse pegá-lo. Clara o segurou com força, puxando seu rosto cinzento e tocou sua pele.
A vida inteira com medo de tocar os outros. Uma vida usando luvas para que não acontecesse o mesmo. Uma vida temida pelo poder te tirar o que era importante dos outros. Clara nunca se perdoaria se não fizesse aquilo por quem lhe trouxe esperança.
Por isso… somente por isso…
— Fique vivo, por favor!
As mãos dela começaram a brilhar, não com uma luz comum, mas com uma intensidade que parecia rasgar o próprio tecido do espaço. A cor era indescritível, um branco tão absoluto que misturava todas as tonalidades possíveis. O ar tremeu, como se a realidade estivesse prestes a ser reconstruída.
Então, algo cortou o céu.
Lá em cima, acima das nuvens carregadas, uma fenda de luz se abriu. Não era sol, não era lua, não era estrela. Era algo além, algo que vinha de fora do mundo. Uma coluna de pura radiância desceu, rasgando a escuridão como uma lança divina, até alcançar Clara e Dante.
O impacto foi silencioso, mas avassalador. Não houve explosão, nem som. Apenas o mundo inteiro se curvando em silêncio diante do milagre.
O corpo de Dante, antes reduzido a cinzas e carne morta, começou a responder. Primeiro, a pele queimava em luz, reconstruindo-se camada por camada. As rachaduras que deixavam à mostra músculos e ossos foram preenchidas por um tecido vivo, pulsante. O sangue voltou a circular, tingindo as veias. O coração, inerte por minutos, deu o primeiro compasso — lento, pesado, mas vivo.
Clara observava com os olhos inundados em lágrimas. Suas próprias forças se esvaiam com cada segundo. O milagre não vinha de fora. Vinha dela. Cada gota de energia acumulada, cada fragmento guardado em silêncio por cinco anos estava sendo entregue naquele instante.
— Volta… — murmurou, quase sem voz. — Volta pra gente, Dante…
A coluna de luz brilhou ainda mais forte. O corpo dele arqueou, o peito se expandindo com uma respiração profunda, desesperada. Ele abriu os olhos ao mesmo tempo que sua respiração veio com tons de medo e choque.
Ele quase se desvincilhou dela por pressão, no entanto, a dor o fez retornar. Ele tremulou aos poucos, caindo com sua cabeça nas pernas de Clara. E a mulher sorriu, cheia de lágrimas perdidas pelo rosto.
A única pessoa que poderia realmente estar com ela deveria ser Dante. Seus olhos pesaram, com um sono e cansaço que engoliram sua mente. E sem ao menos perceber, Clara caiu para o lado, inconsciente, e de olhos fechados.
Juno, de pé, prendeu a mandíbula uma na outra. Experimentou a vida e morte se rebelarem diante seus olhos. Uma dança calma, mas com sutilezas caóticas. Da mesma maneira que Dante entregou toda a Energia Cósmica para que ela vivesse, Clara tinha feito o mesmo para restaurar seu corpo.
Essa era a diferença para aquele monstro que não tinha nada a perder ou ganhar os matando. Nada além de… diversão.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.