Capítulo 462: O Preço
— Estou um pouco triste. — Nas mãos do Rastro, Heian preso pelos seus dedos largos. — Porque vocês disseram tanto. Eu fiquei bem curioso para saber se conseguiriam me dar um pouco de prazer, mas não.
Enfrentar um Felroz Mutante era complicado porque seus corpos regeneravam em níveis elevados, mas esse monstro era diferente. Leonardo ouvira de Veronica uma vez sobre a criatura chamada Rastro, que se alimentava da Energia Cósmica de tudo ao redor para se manter viva, mas… aquilo era absurdo demais até mesmo para histórias.
Não era somente a Energia Cósmica, era tudo.
Os músculos eram revestidos, a carne era dura, sua linha de pensamento não era linear. Ele pensava, analisava e também entendia os seus comandos. Era praticamente uma criatura invencível que…
Leonardo sentiu um aperto no peito. Invencível?
Alguns meses atrás, Juno e ele tinham se enfiado em uma missão onde um dos Felroz Mutantes, que tinha engolido a Pedra Lunar, destruiu um dos pequenos acampamentos de Luma. Aos poucos, a criatura se fortaleceu ao ponto de sua lâmina não chegar até sua carne.
E para dar um fim nela, Leonardo Vulkaris apelou para sua habilidade.
— Gerhman. — Leonardo segurou o broche em seu peito. — Altere o Decreto.
— O que? Por que?
— Faça a habilidade se fortalecer em vez de ficar pior. — A espada foi ajustada em sua mão. — Eu tenho um plano que vai custar um pouco mais da gente. Confie em mim.
— Espero que saiba o que está fazendo.
Depois da resposta, o vapor se tornou praticamente nulo. O vento fraco começou a arrastá-la para longe, e o Rastro levantou seu rosto. Claramente ele sentiu que seu poder começou a voltar, ficando mais forte, ficando mais confiante.
Essas criaturas tinham uma única falha. Uma certeza de que poderiam ser capazes de fazer qualquer coisa, de nunca serem derrotados por seres mais fracos. E por mais que Leonardo achasse vergonhoso ser colocado em uma posição inferior, já tinha sentido essas sensações algumas vezes antes.
Muitas vezes por conta dos Felroz Mutantes, mas naquele dia, quando se mudou para a Cuba, viu um homem que o fazia se sentir pequeno. Sua habilidade poderia ser forte, ele poderia ser rápido, e chegava a ser engraçado como não era nada disso que realmente o colocava em um nível acima.
Era seu otimismo com o futuro.
— Algumas pessoas escondem muito atrás dos sorrisos — ouviu de Clara alguns dias depois de seu parceiro sumir no Abismo de Consyegas. — Sempre sorrindo, sempre alegre.
Sempre caminhando.
— Estou sentindo… que minha força está aumentando mais ainda. — O Rastro apertou Heian e num movimento forte, o jogou contra o chão. Ao abrir os braços e estufar o peito, ele respirou profundamente. — Então, esse é o cheiro da morte misturado com a vitória.
Confiança demais gera falhas. Ainda temos uma chance. Eu só preciso…
O Rastro e ele se viraram para a direita. O ar distorceu quando algo passou rasgando em alta velocidade. A criatura se mexeu com os dois braços, mas Leonardo rapidamente se prontificou.
A chance era só uma. E seria essa.
— Heian — gritou para o rapaz. — Agora.
— Ah, merda.
Ele era um achado completamente fora da curva. Heian era abissal comparado aos outros lutadores e guerreiros da Cuba por justamente ser o faz tudo. Qualquer habilidade, qualquer poder, qualquer ferramenta.
Somente por erguer sua mão, o próprio ar ao redor do Rastro se condensou. Os movimentos das pernas e braços ficaram mais lentos, mas a criatura se mexeu mais uma vez, tentando se libertar. Leonardo correu na direção dele, puxando a espada para trás.
Visualizar o inimigo, achar a brecha, atacar de uma só vez. O Fio do Destino, como sua esposa costumava falar, era sua forma de visualizar, de achar a brecha e terminar o que começaram. E seus olhos fixaram em uma só linha, que se transformaram em dez, depois vinte.
Ele precisava de vinte movimentos certos para que o Rastro fosse derrotado.
— Nada disso vai funcionar, seus vermes. — O Rastro se libertou com um urro, esticando o braço para cima, açoitando o ar ao mesmo tempo que virava para Leonardo. — Acabou a brincadeira.
— Ei.
O Rastro girou o rosto mais uma vez, e então o vulto o acertou. A explosão azulada correu para todos os lados, destruindo o solo, as pedras e pilastras que ainda se mantiveram erguidas mesmo depois da batalha.
Os raios azulados se tornaram grossos, penetrando na carne. O torso do Rastro ganhou uma cor avermelhada quando era fritado por dentro. E com um berro de dor, seu punho se transformou em uma lâmina escurecida.
Ele estocou para frente. Mas antes de conseguir, um segundo impacto. Dinamite apareceu voando contra ele, acertando o membro esticado, e se jogando como uma arma. Ele deslizou pelo chão, não caindo completamente e se juntando a corrida.
— Ainda não terminamos — disse em meio ao sorriso. — Ainda temos um longo dia pela frente.
O Rastro se moveu em um passo. Leonardo sentiu a estranheza no movimento. Ele rapidamente empurrou Dinamite para o lado. Um segundo depois, o braço enlaminado acertou o solo, tornando-o uma cratera pequena.
Pela expressão que fazia, ele estava irritado.
— Ele está ficando mais fraco — gritou para Heian, fingindo. — Temos uma chance.
— Uma chance? — repetiu o Rastro ao esticar o outro braço. — Vocês nunca tiveram isso pra começo de conversa.
Leonardo girou na mesma hora. Sua espada encontrou com o golpe certeiro da criatura. Ele abaixou, forçando sua perna machucada, e defletindo o movimento da direita. Antes de conseguir se afastar, o Rastro criou um espelho ao seu lado.
Ele enfiou a mão dentro do espelho, e saiu nas costas de Leonardo. Ao virar e bloquear, ficou de costas para o inimigo.
— Acaba aqui!
O outro braço desceu, mas Leonardo nem se mexeu. As pedras se levantaram, bloqueando sua visão e o ataque. Não foi o suficiente para pará-lo, mas foi para segurar pelo menos um segundo. Leonardo se jogou dentro do espelho.
Ele saiu praticamente ao lado do Rastro, e segurou a espada com firmeza. A cabeça da criatura estava na sua linha de visão, estava praticamente disposta a ser cortada, mas os vinte fios ainda não sumiriam.
Essa era a única falha que conhecia em si. Mas, aprendeu com seus erros.
Um corte era suficiente para abrir caminho… Um caminho compartilhado com aqueles que estavam dispostos a compartilhar as pedras e concreto, para pavimentar quem tinha o desejo de construir.
Um ataque para selar nossa dívida, Dante.
Ele desceu acertando o pescoço. A lâmina penetrou sua carne, deslizando por alguns centímetros. Leonardo soltou a arma, girou o corpo no ar e empurrou a lâmina para dentro. Ela penetrou ainda mais, liberando o urro da criatura.
— Isso…
— Heian — gritou Leonardo. — Pode fazer.
O Rastro ergueu a cabeça, vendo o homem com as duas mãos juntas perto do peito. Leonardo não teve descanso, antes de aterrizar, a criatura o acertou. Ele saiu rolando e ficou de peito pra baixo. O golpe ainda era doído demais.
— O que é isso? — o Rastro sorriu ainda vendo Heian parado. — O que você acha que vai fazer agora? Eu já disse…
— Sim, já falou mais do que deveria. — Heian mostrou um sorriso de canto. — O velho também falava. Por isso que eu não posso me dar o luxo de perder. A gente já perdeu muito.
— E vão perder mais.
Heian negou.
— Não, não vamos. — A aura ao redor dele se expandiu por, pelo menos, vinte metros. Ela engoliu o Rastro, mantendo-o junto dos outros, mas sem acertá-lo. — Eu treinei por meses para conseguir usar isso aqui sem precisar me preocupar. E felizmente, sempre tive ajuda. A mesma que tenho agora. Você se perguntou o motivo de não estarmos mais atacando com tanta vontade? Não, né?
A expressão da criatura mudou na mesma hora.
— O que…
— É isso mesmo. O coração é o seu ponto fraco. — Ele separou a mão e o Rastro soltou um berro. A lâmina encaixada em suas costas foi despedaçada em fragmentos dentro de seu corpo, cortando as entranhas, sendo enviadas para lugares diferentes, em posições diferentes. — E para acessar seu coração, nós vamos fazer desse lugar a mesa de cirurgia perfeita.
A criatura levou ao ombro, depois a barriga e peito, sentindo as lâminas cortarem. Leonardo suspirou com a mão no pescoço, ainda estava sem ar.
— Marcus… — sua voz quase não saía. — Já conseguiu?
O som da estática soou em seus ouvidos. Eles não tinha noção do que estava acontecendo com o Atirador, mas se ele não conseguisse dar o disparo… Leonardo precisava se levantar… precisava ajudar mais.
— Positivo — a resposta veio seca. — O reforço está a caminho.
Antes de conseguir se virar, um estrondo ressoou em suas costas. O Rastro foi empurrado para frente, e se virou dando uma braçada. Juno abaixou, gingou no ar e acertou um chute em seu rosto que expulsou raios.
Cada um dos relâmpagos descia e acertava as lâminas dentro do seu corpo. O ataque era eficiente contra os Felroz porque cada vez que a garota atingia um dos seus golpes, ela se espalhava como uma teia de aranha.
A velocidade de movimento diminuía, a lerdeza aumentava. A tensão entre os movimentos crescia. Tudo era para fazer com que ele ficasse exposto. E ela não cedia.
Nos dias mais calmos da Cuba, a única quem continuou a treinar sozinha era ela. A única quem crescia de forma que nem mesmo Leonardo poderia entender era ela. A única quem tinha uma chama e um sorriso que se igualavam aquele homem era ela.
A firmeza e dedicação, a convicção e insistência eram os adjetivos que Marcus deu a ela. E o Atirador também. Ele nunca deixou de acreditar, nem por um segundo, que esse dia chegaria. Nem mesmo quando todos os dados de Duna ou a realidade de Kalish vinham a tona.
Os dois, mais do que praticamente a Cuba inteira, estavam dispostos a oferecer suas vidas por aquele momento. Esse era o preço da lealdade. Esse era o preço a se pagar por uma dívida, como a do próprio Leonardo.
Quando a garota se aproximou, Leonardo sabia que era a hora. O Rastro usou suas garras para tentar acertá-la, mas a dança dos pés foi perfeita. Juno rapidamente girou pelos calcanhares, desviando em alta velocidade, deixando uma calda elétrica para trás.
Os olhos dela não saíram dele nenhum segundo durante a troca. Cada vez que o Rastro tentava agarrá-la, as raízes do chão se levantavam, expulsando seu golpe da precisão e abrindo defesa. Cada segundo contava, cada ataque e defesa…
Os dias na Cuba eram calmos, mas nunca chegaram perto da paz. Um guerreiro no jardim, sempre a espera da guerra.
— Já está… — o braço do Rastro passou rasgando o ar, mas errou a garota. — Me deixando irritado. Eu vou… — outro ataque e nada.
A garota dançava na frente dele. E quando o Rastro piscou, ela sumiu.
Juno nunca o perdoaria, nunca deixaria ele fugir. Aquele pequeno movimento, aquele pequeno lampejo, deu a ela a suficiência. Apareceu em cima do Felroz, o punho puxado para trás e reunindo os relâmpagos.
O céu vibrou pelo seu chamado, as nuvens juntaram, os trovões ressoaram. Cada fagulha de atrito gerado no gesto dela fez com que Leonardo entendesse bem o motivo dela ser a discípula direto de Dante.
Não tinha ninguém que pudesse o superar se não fosse ela.
— Martelo do Céu!
O punho dela desceu. A marreta carregada de raios. O choque fez o chão tremer, estrangulando a carne e os ossos, espalhando diretamente onde as lâminas foram enfincadas. O urro de dor do Rastro pegou todos desprevenidos, mas Juno não cedeu.
Mesmo que ele gritasse dez vezes mais, não recuaria. Ela não tinha pena, não tinha misericórdia. Ela viu Dante dar a própria vida, a própria energia. Observou seu mestre simplesmente doar o que ele era para que ela pudesse vencer esse… monstro.
Nada mais importava a não ser cumprir com que ela prometeu para si mesmo no dia que encontrou e foi acolhida. Tudo… tudo era para que pudesse mantê-los a salvo. Tudo para eles.
As asas do Felroz se abriram mesmo no meio da dor e do sangue espalhados. Ele tentou bater, tentou se libertar dos relâmpagos intermináveis.
— Não vai fugir de mim. Não mesmo!
Juno segurou as duas asas, saltou ainda o segurando e afundou os dois pés em suas costas. A carne dele se abriu explodindo para frente em raios, e acertando o concreto do outro lado.
A cidade inteira vibrava com os relâmpagos sendo enviados para todos os lados. Uma vista que poderia ser considerada monstruosa se quem estivesse daquele lado não fosse Juno.
Por isso, ainda visualizando pela luneta, Marcus tinha completa certeza de que ela estava consciente do que deveria ser feito. Sua dor, suas escolhas, as consequências… Avistou Juno se jogando para trás, segurando as duas asas e deixando exposto o peito do Rastro.
Bem no meio, entre os ossos e carnes, da energia e do poder, o coração brilhante do monstrengo.
— Garotinha irritante… — Marcus sorriu.
Seu dedo puxou o gatilho.
O som seco ecoando no meio das explosões poderosas e intermináveis parecia com apenas um ruído entre os sons dos automóveis antigos, das pessoas que conversavam no meio do intervalo de algum evento, ou de um miado contra latidos.
Era ínfimo, pequeno, talvez… inexistente.
Tudo isso porque tudo o que Marcus tinha, ele colocou ali naquele disparo. Sua mão tremula, seus olhos cansados, sua mente esgotada. Naquele pequeno disparo seco, ele entregou também tudo o que tinha.
O Rastro se balançava para todos os lados, tentando alcançar Juno, mas ela se mantinha distante.
— Desgraçada — gritou ao tentar girar. As raízes se libertaram do chão mais uma vez. Eram muito mais fortes, grossas e resistentes. Elas se ajustaram ao braço da criatura, puxando para baixo. — Merda, de onde vem essas raízes de merda? É você, humano?
Leonardo encarou Heian. O rapaz podia ser habilidoso, mas ele não tinha feito nada. Então…
— Rupestre!
As raízes agarraram o pescoço do Rastro, o forçando. Elas eram resistentes, mas foi uma braçada para se livrar. Assim que achou estar liberto, Juno o puxou mais uma vez. O peito, exposto, brilhava.
— Acha que isso vai te ajudar em algo…? — O Rastro virou o rosto para Juno, rindo. — Sua Energia Cósmica está diminuindo, eu sinto. E quando você…
A boca dele parou de se mexer. Uma explosão ocorreu, a bala de Marcus penetrou o interior do seu peito, saindo do outro lado. Mas quando o cartucho chegou no chão, ele retornou pelo mesmo ângulo. O choque foi duplo, perfurando novamente o coração da criatura.
Rapidamente, Juno largou as duas asas dando um salto para trás. Ela caiu apoiando a mão no chão. Ela viu cerca de vinte vultos ao redor de si.
— Ele ainda está vivo — Veronica soou em sua cabeça. — Acabe com isso. Agora.
— Afirmativo.
Mais uma vez, só mais uma vez, ela confiou nos seus instintos. Se jogou como um parafuso, rotacionando o corpo e libertando os relâmpagos para todos os lados. Sentiu o seu poder aumentar de repente, e entendeu…
Heian, atrás, tinha seu braço erguido. Ele estava conjurando ainda mais raios para seu golpe. A rotação tomou seu ápice bem na frente de Rastro. Os braços erguidos, protegendo seu peito, nada serviam agora.
Porque no momento que a garota se colocou presente, outro disparo tinha sido feito pelo Atirador. Seus membros foram explodidos, sobrando apenas o espaço entre o coração e a garota.
O Rastro nunca tinha visto algo parecido antes. Selenor era recheado de figuras poderosas, eram motivados e determinados. Seus rostos eram frios por causa da neve, talvez fizessem barulho quando fosse necessário, mas sempre desistiam quando chegavam ao limite.
Uma cidade tão distante, tão longe e sem nada além de prédios, continham rostos que não se acovardavam contra seu poder ou sua força. Nos olhos daquela garota humana, existia mais do que uma determinação forte.
Existia… Esperança?!
— Você tirou a vida do meu mestre. — O tempo parecia ter parado para os dois. O Rastro encarava a boca dela se mexer. — Nada mais justo do que eu tirar a sua agora.
Um tufão de energia se fundiu ao punho dela, uma armadura formada nos dedos, pulso, antebraço e ombro. Ela simplesmente forjava a arma e a defesa perfeita. E com um sorriso ensanguentado, terminou de dizer:
— Punho de Dante.
O soco penetrou o coração fazendo a luz amarelada se tornar azul. A explosão zuniu as pedras, queimando as raízes, pedras e pilastras. O relâmpago se fundiu a lâmina deixada por Leonardo, se tornando uma teia de aranha dentro do corpo dele.
E os céus se uniram para contemplar o golpe devastador, se juntando a ela. Os trovões todos reunidos naquelas nuvens pesadas desceram para serem comandados mais uma vez pela única portadora que tinha o direito de ordenar os raios.
Juno…
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