Capítulo 464: Amanhã (II)
— Estou um pouco decepcionado com você — a voz de Leonardo cortou o silêncio do quarto. Ele se sentou devagar na borda da cama, do lado oposto a Clara, apoiando os cotovelos nos joelhos e encarando Dante com uma mistura de reprovação e cansaço. — Se sair por aí sem dizer nada, as pessoas ficam preocupadas. Pode ser o Dante, mas não é imortal.
Dante respirou fundo, sustentando o olhar de Leonardo por alguns segundos antes de voltar os olhos para Clara. Naquele aperto silencioso das mãos, ele sentia o peso da preocupação dela. Estava exausto. Saiu por alguns instantes, e esses idiotas já se comportavam como se ele estivesse à beira da morte. E, no fundo, talvez não estivessem tão errados: sua energia tinha sido drenada até o limite. Ainda assim, não queria que todos ficassem à sua volta como se fosse um cristal prestes a se quebrar.
Leonardo continuou, sem suavizar o tom:
— Ainda temos que ver se o Rastro não deixou sequelas nos Felroz mais distantes. E tem Keishin… — fez uma pausa curta, como se aquilo fosse até embaraçoso de dizer — …insistindo com aquela história de casamento. Você precisa ficar.
— Eu entendi o recado. Avisar antes de sair, pode deixar.
— Se continuar assim, vou colocar Arsena na sua cola — seu tom era sério, nenhuma brincadeira. — Ela voltou ontem da Zona Cega e ficou sabendo do que passamos. Está louca para te encontrar. Quer isso?
Dante arqueou uma sobrancelha, e um riso escapou. A lembrança veio vívida: o inverno, o campo congelado, e Arsena no chão depois de uma surra que ela mesma pediu ao subestimá-lo. A espadachim que conjurava armas tinha o orgulho mais afiado do que qualquer lâmina que invocasse.
— Não — respondeu, ainda com o sorriso nos lábios. — Eu realmente entendi o recado. Heian me falou algo parecido faz algumas horas. Sem sair, sempre conversar. Vocês fizeram um ótimo trabalho aqui na Cuba.
O jeito como Leonardo mexeu os ombros, relaxando após um instante de silêncio, e a maneira como lançou um olhar para Clara deitada ao lado dele fizeram Dante entender de imediato. Não precisava de explicação: tinha sido ela. Aquilo tudo, aquele esforço invisível mas presente em cada pedra e cada rua da cidade, carregava a marca de Clara. Um trabalho lento, custoso, que certamente havia exigido mais dela do que ele poderia imaginar. Queria ter visto com os próprios olhos como ela havia feito tudo florescer… mas Moonlich tinha tomado esse direito.
— A gente trabalhou na fundação que você fez. Essa cidade veio com as pessoas de fora sentindo que podiam ter uma vida boa. Ninguém aqui tinha isso antes, nem mesmo ela. Muitas vezes, nas reuniões, a gente via que os sentimentos dela se contradiziam.
Dante franziu a testa, desviando os olhos de Clara por um instante.
— O que quer dizer?
— Ela acreditava que você voltaria um dia. Não teve um só dia em que eu não a vi orando pela sua volta. — Os olhos dele se estreitaram. — E quando alguns dos homens de Kalish disseram que você já tinha partido… eu nunca mais quero ver aquela raiva. Nunca.
Dante deu uma risada.
— Raramente ela fica irritada.
— Minha esposa diz que quando ela fica irritada, é porque eu fiz alguma besteira. Então… — apontou diretamente para Dante, o dedo firme, quase acusatório. — Se prepare para isso. Seu lugar é aqui, meu amigo. Não se esqueça disso. As pessoas se lembram do que você fez por elas.
Dante deixou o olhar voltar para Clara. Os cabelos brancos dela caíam suavemente por trás da orelha, iluminados pela luz fraca que entrava pela janela. Os olhos fechados, serenos, davam a impressão de um sono profundo, como se o mundo inteiro pudesse desmoronar e ainda assim ela permaneceria ali, intocada. Ele queria vê-la acordar. Queria ouvir sua voz de novo.
Acorde logo… por favor.
Sua garganta apertou. As palavras saíram entrecortadas, como se precisassem ser arrancadas de dentro.
— Eu fiquei… — parou, respirou, tentando não engasgar com a própria confissão. — Tive medo de não conseguir voltar. Lutei por isso. — Seu peito se contraiu. — Deixei pessoas importantes para trás quando vim pra cá. E agora… não sei como posso reconstruir esses laços.
— Não existe maneiras de reconstruir algo que nunca foi destruído, Dante. — Leonardo se levantou quando o broche acima do seu peito chiou um pouco. — Esse é um sinal para Felroz. Dois chiados. Marcus está patrulhando. Eu preciso partir agora.
Dante concordou o deixando ir. Quando a porta foi fechada, ele segurou um pouco mais forte a mão de Clara. Inclinou-se para frente, tocando a cabeça no lençol forrado, e trouxe os dedos dela para perto de seu nariz.
O odor de flores. Quando a conheceu, era diferente. A lama, o sangue, o medo. Tudo era misturado nela. Agora, existia algo como uma pureza enraizada nela Dante queria ter certeza de que era somente dela.
Queria ouvir a voz dela, mas sem o desespero e o medo. Queria sentir… o amor dela.
Deitado, Dante adormeceu ali. Segurando o que mais importava.
Marcus esperou Leonardo se reunir no sexto andar da Cuba, numa das portas laterais que dava para o lado sul da cidade. Assim que ele saiu, Marcus remexeu o bolso, e tirou uma laranja. Jogou para o espadachim.
— Olha, você conseguiu uma. — Leonardo pegou a faca e começou a descascar. — E então, onde está o Felroz?
— Está naquela direção, 700 metros. — Não puxou o rifle, continuando fitando a cidade. — Já acertei ele. Estão coletando qualquer coisa de importante, mas duvido que vá dar em alguma coisa.
Já no meio da laranja descascada, Leonardo deu de ombros:
— Então por que me chamou?
— Porque você estava dando um sermão no velhote na frente da Clara. — Revelou um olhar de lado, frio. — Se fizer isso de novo, eu não pego mais isso ai. Clara precisa descansar e Dante está sofrendo, pode ter um pouco mais de empatia.
‘Oh’, essas foram as palavras de Leonardo para uma concordância divertida.
— Eu deveria deixá-lo ir para qualquer lugar sem supervisão, então? Se algo acontecer…
— Deixe eu te falar algo. — Marcus girou na direção dele. Não estava sorrindo, queria que ele soubesse que era sério. — Dante não é um homem qualquer. Sabe bem disso. Você esteve cuidando dos problemas que Clara te deu porque sua politicagem é melhor do que das outras pessoas, mas não deixe isso subir a sua cabeça. E não, Dante nunca esteve sozinho, não desde que ele acordou. Agora, pare de achar que ele deveria te obedecer. Ninguém estaria aqui hoje se não fosse por ele.
— É uma hierarquia, então?
— Chame do que quiser, Vulkaris. Todos nós sofremos quando ele se foi, Clara mais do que qualquer um. Se não fizer por mim, ótimo, faça por ela. — Marcus retornou a encarar as nuvens se juntando no horizonte de Kappz. — Ela merece isso.
Leonardo segurou um pouco da respiração e concordou levemente.
— Tem razão. Posso ter sido um pouco rude com ele, mas… não sei o que vai acontecer agora. A volta dele foi sempre o que queríamos, mas sem a habilidade…
— Não tenho dúvidas de que ele sabe disso, e provavelmente é quem mais pensa no assunto. Deixe Clara acordar, deixe os dois conversarem, e depois você volta a falar disso.
Pela forma como o espadachim concordou, Marcus não quis mais tocar nesse assunto.
— E sobre aquele Vinigo, ele se foi?
— Sim, ontem cedo – respondeu Leonardo. – Parece que os planos que a cidade de Kenshin tinha para amarrar Cuba a eles se foi no momento que Clara disse que o coração dela não pertencia a nenhum deles. Foi bem romântico, pode admitir.
— O pai daquele garoto é lunático por batalhas, dominaram mais outros dois acampamentos que cresciam do outro lado da cidade, mas também estavam querendo o que temos e eles não. Energia elétrica.
— Bom, não são os primeiros. A Zona Cega tem esse mesmo desejo faz algum tempo. Alias, Gerhman vai receber uns deles na semana que vem, e nós vamos conseguir entender melhor sobre o que se trata essa negociação.
Aquela cidade era estranha por natureza. Gostavam de se matar apenas para criarem mais leis sobre o outro, enfiando um lugar que poderia ser grande em miséria e migalhas. E agora, depois de tanto tempo, queriam negociar para que fosse disponibilizado energia.
— Clara precisa estar presente. Peça para esperarem.
— Sim, eu sei. Já deixei informado. – Leonardo continuou parado, mas algo nele queria falar. Marcus sentia quando o encarava. No fim, ele conseguiu perguntar: — Sei que não é da minha conta, mas… por que Luma não veio para cá na semana passada?
— Não tenho a resposta. Ela disse que estava cuidando de alguns problemas antigos, não me disse o que era.
E isso o matava por dentro.
— Bom, não fique assim. – Leonardo bateu em seu ombro lentamente. – Você tem um longo caminho a percorrer para conquistar seu coração. Tenho certeza de que vai conseguir.
Prestes a responder, viu Leonardo girar sorrindo e sair pela mesma porta que entrou.
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