Índice de Capítulo

    — O estado não mudou — disse Simone ao tirar a mão da testa de Clara, os dedos demorando um instante a mais do que o necessário, como se buscassem alguma reação que nunca vinha. — Ela continua estável, mas sem sinal de acordar. Estamos mantendo o corpo dela no melhor estado possível… mas você não pode deixar isso te abalar.

    Dante concordou com um aceno meio desajeitado, o olhar fixo nos lábios imóveis de Clara, como se esperasse que a qualquer segundo eles se mexessem.

    — É um pouco difícil — murmurou, com a voz rouca. — Quando fui eu quem fez isso.

    Simone soltou um suspiro cansado e puxou a cadeira, sentando ao lado dele. O jaleco amassava nas dobras, denunciando horas de vigília.

    — Ah, Dante… — ela balançou a cabeça. — Muita gente pode pensar dessa maneira. Mas você não deveria. Clara faria de tudo para manter você vivo, mesmo que isso custasse a vida dela. E você faria o mesmo por ela, não faria? — os olhos dela suavizaram, quase cúmplices. — Pelos meus anos de experiência, posso dizer com quase certeza que vocês se gostam.

    Dante soltou uma risada fraca, que saiu mais como um suspiro de alívio mal disfarçado. Balançou a cabeça, encarando os dedos dela entrelaçados aos seus.

    — Claro que sim. Clara foi quem me resgatou. E eu… eu não posso deixá-la. Não de novo.

    Simone inclinou-se um pouco para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos.

    — Ficar aqui pode ser entediante, mas se quiser descansar, posso pedir que Marcus ou Jix fiquem no seu lugar. Tome um banho, coma algo. Suas roupas já dizem que você andou por outros caminhos…

    Dante passou a mão pelo tecido. Era verdade. Ele tinha trocado em Selenor. O cheiro, o toque diferente da fibra, tudo trazia lembranças que não queria revisitar. Trahaus e Gregoriano ficaram para trás. E ele tinha visto Kefiane. Mas… a memória que mais lhe corroía era a do homem que conjurou o portal. Foi ele quem o enviou para Kappz. O que significava…

    — E outra coisa — a voz de Simone o puxou de volta. — Preciso que você também passe por uma avaliação mais detalhada. Sei que seu corpo se recuperou rápido, mas não podemos deixá-lo fora da nossa observação.

    — Sem problemas — respondeu, mecânico, mas com sinceridade.

    Simone levantou-se, ajeitando o jaleco. Dante permaneceu imóvel, observando Clara. O contraste da pele pálida contra o branco dos lençóis parecia delicado demais, quase etéreo. Seus cabelos brancos escorriam pela lateral do travesseiro como rios de neve.

    — Nós não estaríamos aqui se não fosse por você — disse Simone, firme, antes de se afastar. — Quero que sempre se lembre disso, Dante. Porque a gente lembra bem. Clara também. Não é à toa que ela tinha uma carta sua no quarto. Aberta.

    Dante arregalou os olhos e soltou uma risada mais genuína, que quebrou por um segundo o peso do quarto.

    — Ela guardou mesmo com ela?

    — Lia todas as noites antes de dormir. Algumas vezes, chegamos a achar que víamos você em outros lugares. Pensávamos que era um truque do destino… mas eram suas batalhas. Eram ecos do que você estava vivendo. — Simone indicou Clara com um gesto suave. — Ela nunca duvidou. Sempre acreditou que você estava lutando para voltar. Nunca deixou de acreditar que sua existência era necessária.

    O peito de Dante apertou. Sentiu o peso de cada palavra.

    — Por mais que eu queira dizer que minha viagem foi cruel, sei que foi indispensável. — Ele respirou fundo, os olhos marejando. — Conheci pessoas, conheci lugares… vi inimigos que nem pensei que ainda existissem. Descobri segredos do mundo inteiro. Outros vivem coisas como nós. Alguns têm muito mais tecnologias. Eu sei que é possível evoluir.

    Simone arqueou uma sobrancelha.

    — Mas…?

    Dante fechou os olhos por um instante, como se tentasse segurar uma enxurrada de lembranças.

    — O amanhã sempre foi tenebroso pra mim. Eu naveguei sabendo que não podia contar com certezas. Cada inimigo era ardiloso, cada aliado improvável. — A memória do pai lhe veio à mente, a sensação de ter de estar sempre alerta, de nunca poder baixar a guarda. — Eu precisava ser forte para sobreviver. E agora…

    Simone se aproximou, firme, quase cortando a melancolia dele.

    — Agora você tem pessoas que podem te auxiliar nisso. Criou um lugar forte, acolhedor. As pessoas vêm até nós pedindo ajuda, não esmola. Você deu a elas vontade de viver. — Fez uma breve pausa. — Mas se isso não te satisfaz, converse com Meliah ou Degol. Eles vão saber do que você precisa e te deixar achar um lugar nesse novo mundo pra você.

    Simone deu as costas, saindo em direção à porta com passos firmes, e o som do trinco ecoou suave quando ela a fechou.

    No silêncio que se seguiu, Dante respirou fundo, sentindo o peso do ar frio do quarto como se fosse um lembrete do vazio que se abria dentro dele. O relógio na parede marcava os segundos num tique seco e irritante, quase zombando de sua incapacidade de encontrar uma resposta para o que viria.

    Mesmo tendo lutado todos os dias para se tornar mais forte, agora, desarmado de sua habilidade, restava-lhe apenas a experiência que carregava dos caminhos fora dali. Mas o que valiam memórias e cicatrizes contra monstros que não paravam de nascer?

    Se um Felroz atacasse… se o Rastro tivesse deixado descendentes… se os irmãos da criatura no Mundo Espelhado resolvessem se erguer, tão poderosos quanto ele, como poderia enfrentá-los?

    A dúvida latejava. A impotência queimava. Dante inclinou a cabeça para trás na cadeira, os olhos fixos no teto branco e impessoal.

    — Meu pai me mataria se soubesse que perdi a habilidade dele — murmurou, rindo baixo, um riso amargo que logo se perdeu no ar. — Minha mãe ficaria aliviada. Eu seria só… uma pessoa normal. Vivendo normalmente. Com medo, raiva… rancor de mim mesmo.

    A voz saiu mais fraca do que esperava. Foi então que outra voz respondeu, calma e rouca, vinda de lugar nenhum:

    — Palavras honestas para um coração honesto, se me permite dizer.

    Os olhos de Dante se abriram num sobressalto, e o ar pareceu pesar em sua volta. À frente, de pé na penumbra, uma figura se materializou sem que houvesse qualquer som de passos. Um rosto marcado por fissuras como cascas ressecadas, os olhos amarelos brilhando como brasas contidas, e agora… cabelos desgrenhados que lhe davam uma aparência mais humana.

    Rupestre.

    Dante se ergueu de imediato, como se seu corpo reagisse antes mesmo de sua mente.

    — Eu… — a voz dele vacilou antes de se firmar. — Nick está bem. Fiz de tudo para proteger ele lá fora, não deixei que os perigos o alcançassem.

    O ser sorriu de leve, com os lábios rachados se curvando num gesto sincero.

    — Ah, Dante. Nosso primeiro contato depois de tanto tempo e sua primeira preocupação é com o meu irmão Sugador? — As mãos grandes e irregulares de Rupestre se estenderam devagar, cada dedo como pedra viva. — Eu não poderia ser mais grato pelo seu coração tão gentil.

    Eles se cumprimentaram, o toque estranho e pesado como se a própria terra tivesse se apoiado contra sua pele.

    — Seu irmão me salvou diversas vezes — disse Dante, firme, sem desviar os olhos. — E também aconteceu algo…

    — Eu sei. — Rupestre o interrompeu com suavidade. — Ele me contou o que você fez. Nunca houve registro de um humano entregar sua Energia Cósmica a um Sugador sem exigir nada em troca. E quanto ao coração do Rastro… sei que pediu a eles…

    — Não. — Dante ergueu a mão, cortando a frase, a voz mais dura que antes. — Era o natural a se fazer.

    Rupestre não pareceu ofendido. Ao contrário, apenas inclinou a cabeça, intrigado.

    — Como pode pensar dessa maneira, Dante? As Pedras Lunares, em comparação, não passam de pó diante do valor do que entregou. Seu pedido nos libertou das cavernas do medo. Ontem mesmo, recebemos o coração.

    O olhar de Dante se perdeu por um instante. Não queria que Rupestre acreditasse que havia sido um gesto de egoísmo ou cálculo. Não era por acreditar que só eles podiam absorver tamanha energia. Era porque… o mundo cruel já havia arrancado deles aquilo que mais desejavam: a própria humanidade.

    Cumprir sua promessa a Leonardo, de que o coração seria entregue a Rupestre, era a única forma de devolver-lhes parte do que haviam perdido.

    — Eu te agradeço, meu amigo. — Rupestre abaixou a cabeça em reverência, o gesto solene vindo de um ser que raramente demonstrava tanto. — Nunca teríamos chegado até aqui sem sua ajuda. Por isso… quero te ajudar com o que te aflige agora.

    — Não é necessário, Rupestre. — Dante tentou afastar com a voz firme, mas o tom vacilou. — É sério.

    — Achei que negar presente fosse desrespeito. — Rupestre sorriu levemente, e sua mão de pedra estendeu-se até repousar com cuidado sobre o pulso delicado de Clara, deitada, imóvel. — Eu sempre serei leal ao que fez por nós. Nunca permitirei que pensem que sua gentileza é fraqueza. Porque os únicos humanos que conheci antes de você me ensinaram que sua maior habilidade era a maldade escondida no coração.

    Os olhos amarelados se fixaram em Dante, como se tentassem atravessar sua alma.

    — Vivi no escuro por tempo demais, até entender que a luz só existe porque alguém decidiu acendê-la. E quando um coração está perdido, ele sempre corre para o abismo. Eu não vou deixar que isso aconteça com um amigo tão… bondoso.

    Uma aura branca começou a se formar na ponta dos dedos de Rupestre, densa e ao mesmo tempo suave, como um nevoeiro luminoso. O brilho não cegava, mas hipnotizava. A energia escorreu lentamente, remodelando-se em filetes que se entrelaçavam como fios de seda, e deslizou até o corpo de Clara. A cada respiração dela, parecia que a luz encontrava um caminho natural, correndo pelas veias, expandindo-se com paciência. Não havia violência naquele processo — era calmo, quase sereno, mas inegavelmente poderoso.

    Em poucos instantes, o brilho se espalhou por todo o corpo dela, contornando cada detalhe, até sumir sob a pele. Ainda assim, o quarto inteiro reagiu. O ar ficou mais pesado, denso, como se a própria atmosfera fosse puxada para dentro daquele fluxo. O silêncio se quebrou pelo ranger da madeira e pelo estalar discreto das paredes.

    A pressão aumentou tão rápido que Dante se viu prendendo a respiração, como se fosse sufocado por algo invisível.

    — Nick me ensinou o que aprendeu com você, Dante. — A voz de Rupestre ecoou profunda, mesmo sem ele elevar o tom. — Modelar e refazer. Além do coração, você nos entregou algo que havíamos perdido há muito tempo.

    A energia que saía das mãos de Rupestre não cessava. Formava redemoinhos que rodopiavam pelo quarto, como pequenos vórtices brancos e prateados. As cortinas balançavam violentamente, batendo contra a parede, e o lençol sobre Clara vibrava como se estivesse prestes a ser arrancado da cama.

    Dante, porém, não desviou os olhos. Observava cada gesto, cada detalhe daquele ser que, apesar de monstruoso em aparência, carregava agora uma humanidade que ele mesmo parecia ter esquecido de possuir.

    — O quê? — a pergunta escapou firme, mas seu peito pesava como chumbo.

    Rupestre então inclinou levemente a cabeça, os olhos amarelados brilhando com intensidade, e deixou que um sorriso quase imperceptível curvasse os lábios.

    — O poder para escolher o que faremos… amanhã.


    Era como estar suspensa em nada. Clara abriu os olhos e não havia chão, céu ou horizonte. Apenas um breu profundo, absoluto, que a envolvia como se o mundo tivesse sido engolido. Não sentia frio, calor ou sequer o próprio corpo. Apenas a solidão interminável.

    Por um instante, pensou que era isso. O fim. Um vazio eterno sem som ou cor.

    Mas então… algo surgiu. Uma fagulha distante, pequena, quase tímida, rasgando a escuridão. Um ponto de luz, tão frágil que parecia que poderia apagar a qualquer momento.

    Clara fixou os olhos nela.

    Aos poucos, o ponto cresceu, pulsando como se respirasse, irradiando calor que ela não sabia que sentia falta até agora. A sensação de estar completa, de não estar mais perdida, tomou conta de seu peito.

    Sem pensar, começou a caminhar. Seus pés se moviam mesmo sem tocar nada, como se o próprio vazio a sustentasse. Cada passo parecia aproximá-la daquilo que era mais do que apenas luz: era vida, era retorno.

    E quanto mais próxima chegava, mais aquela escuridão se dissolvia. O silêncio era substituído por um som suave, o eco de uma voz distante que não conseguia entender, mas que a chamava. Familiar. Urgente.

    Quando finalmente atravessou o limiar daquela claridade, o breu desapareceu.

    Clara abriu os olhos de verdade.

    O primeiro contato foi com o peso quente de uma mão envolvendo a sua. O segundo, o rosto de Dante, tão perto, tão intenso, que quase não conseguiu acreditar. Ele a segurava com força, como se tivesse medo de perdê-la de novo. O olhar dele estava vermelho, não sabia se pelo cansaço ou pelas lágrimas que ele teimava em não derramar.

    A respiração dela voltou em um suspiro fraco, mas suficiente para quebrar o silêncio do quarto.

    — Dante… — a voz dela saiu baixa, mas clara.

    Ele fechou os olhos, encostando a testa na dela, como se todo o peso do mundo tivesse acabado de se soltar de seus ombros.

    — Eu tô aqui… — murmurou, apertando a mão dela ainda mais. — Eu nunca mais vou soltar você.

    Clara sentiu as lágrimas escorrerem pelo próprio rosto, não sabia se eram dela ou dele, mas não importava. O breu havia acabado.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota