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    Vinigo ajoelhou-se sobre uma das almofadas carmesim, o tecido luxuoso não trazendo qualquer conforto à sua posição rígida. O quarto estava silencioso, mas carregado de expectativa. Sabia que seu pai viria, e que sua hora já estava marcada, como sempre fora para todos os filhos da família Novae. Não havia espaço para atrasos, tampouco para deslizes.

    Logo, os serviçais entraram em fila, passos curtos, quase inaudíveis. Vinigo percebeu como nenhum deles ousava erguer os olhos. Moviam-se como sombras, arrumando a mesa baixa com pratos refinados, taças e frutas cortadas em proporções perfeitas. Não havia troca de olhares, não havia humanidade nos gestos — apenas a pressa em terminar o serviço e desaparecer.

    Vinigo sabia bem o motivo. Entre os Novae, um erro simples podia custar o sustento de uma família inteira. Um erro maior custava a vida. Recordou-se, com certo desconforto, da jovem que servira vinho meses atrás: uma das criadas mais atenciosas, mas que teve o azar de derramar a bebida no vestido branco de sua irmã mais velha. Na manhã seguinte, ninguém mais ouviu falar dela.

    Esse tipo de atitude era comum, quase natural entre os filhos da família. Mas Vinigo nunca se acostumara. Não queria governar com medo, nem ter o terror estampado nos rostos ao redor. O que desejava era algo mais duradouro: respeito. O respeito, acreditava ele, era a única forma de manter os vivos realmente ao seu lado.

    A porta de ferro às suas costas se abriu com um rangido metálico que ecoou ao restante do lugar. O ar do salão pareceu mais pesado. A voz que veio logo em seguida trouxe consigo a lembrança que não estava ali para encontrar seu pai, sozinho.

    — Viu a cara da Bella? Tenho certeza de que, se eu pedisse, ela se ajoelhava ali mesmo e rasgava minhas calças por um… — a frase foi cortada, não por falta de vontade, mas por surpresa. Os passos cessaram. — Ora, ora… o caçula retornou à casa.

    Vinigo não se moveu. Continuou ajoelhado, os olhos fixos na mesa diante de si, como se Silver sequer merecesse um olhar. Sua voz soou fria, calculada, mas com um toque de ironia:

    — Silver… o prazer de ouvir sua voz é o mesmo que sinto em dias de tempestade, quando a chuva arranca as telhas e encharca a casa. Desprezivelmente irritante.

    Houve uma breve gargalhada seca. Silver avançou pelo salão, seus passos ecoando deliberadamente altos, parando apenas um metro de distância.

    — Ah, mas isso é porque eu consegui um pouco mais de prestígio que você, irmãozinho? — disse, inclinando-se para mais perto. — Ou porque você nunca consegue fazer nada direito? Sei da sua viagem até aquela cidade no meio de Kappz. E voltou sem nada além de uns homens mais gordos e desse nariz enfiado no chão. — A voz dele se tornou um sussurro debochado. — Me diga o que encontrou lá… e eu pego para você. Já que não consegue nem isso.

    Vinigo finalmente ergueu o rosto, apenas o suficiente para deixar escapar um olhar frio, sem sequer virar o corpo. Sua resposta veio cortante:

    — O hálito de um Felroz é mais suportável que o seu. Afaste-se de mim, Silver. Está fedendo bastante.

    A expressão de Silver mudou da água para o vinho, ruborizando-se de tal forma que parecia prestes a explodir. Seus punhos cerraram-se até os nós dos dedos ficarem brancos.

    — Seu maldito… — rosnou, com a voz embargada pela fúria.

    Antes que desse o próximo passo, uma voz firme, feminina, cortou o ar carregado:

    — Silver, se afaste dele, por favor.

    Vinigo ergueu lentamente os olhos, desviando o olhar em direção à porta lateral do salão. Micaela Novae caminhava até eles com a elegância que lhe era habitual, cada passo fazendo o tecido do vestido azulado ondular suavemente. Sobre os ombros trazia um casaco leve, e os cabelos soltos escorriam até a cintura como um manto de ébano. No peito, preso por uma corrente dourada, um pingente em forma de lágrima refletia a luz das tochas, emitindo um brilho suave que dominava o olhar de quem ousasse fitá-lo.

    Os serviçais, que ainda recolhiam discretamente as travessas do jantar, abaixaram as cabeças em reverência e apressaram os movimentos, temerosos de presenciar o que poderia se transformar em um conflito aberto entre os herdeiros Novae.

    Micaela parou a poucos passos dos irmãos, seu olhar frio e carregado de autoridade recaindo sobre Silver.

    — Nosso pai já disse que, se você fizer qualquer coisa dentro deste salão outra vez, ele cortará a sua mão. Lembra?

    Vinigo ergueu uma sobrancelha, surpreso. Isso era novidade para ele. Então Silver, o primogênito, já havia se metido em alguma confusão que escapara ao controle, mesmo dentro da sala sagrada de reuniões do patriarca. Não era difícil de acreditar, mas a confirmação tinha o gosto de uma revelação.

    — Idiota — murmurou Vinigo, baixo, mas em tom o suficiente para que o irmão escutasse. — Arrumar confusão no salão de reuniões do próprio pai… é a coisa mais estúpida que eu poderia ter ouvido.

    Silver respirava pesado, as veias do pescoço latejando, mas Vinigo não parou. Era divertido destratar um imbecil quando era conveniente, e mais ainda quando era Silver.

    — E sabendo que foi você, Silver, não consigo deixar de me impressionar. Porque, além de idiota… é burro.

    — Estão juntos agora pra me fazer questionar minhas ações? Não enche meu saco, Micaela.

    — Estou apenas representando a ordem que o pai deu. Se fizer qualquer coisa hoje, você vai estar literalmente fora dos domínios Novae. Aquela terra que o te prometeram? Vai perder ela em dois tempos pra um dos outros filhos.

    Ah, Vinigo tinha certeza de que isso era pior do que chamá-lo de imbecil, idiota ou burro. Silver poderia tratá-lo como um ser inferior, mas eram da mesma linhagem, da mesma mãe e pai. Os outros filhos, no entanto, eram de outras mulheres.

    Seu pai tinha sido bem frequente nas casas pela cidade tempos atrás, mas quando apareceram pessoas dizendo que Atechi Novae havia dito mais de seis filhos, as coisas ficaram complicadas para quem tinha vindo primeiro.

    Agora, tudo o que eles procuravam era uma maneira de crescer a cidade para que nenhum dos filhos, de qualquer esposa, se matassem. Mas, era impossível com o temperamento de Silver. Alias, o que ele mais detestava do que Vinigo eram os tais ‘caçulas de segunda linha’, que ele tanto falava.

    Um apelido carinhoso.

    Uma das serviçais se apressou para chegar até eles. Os três ficaram de joelhos sobre almofadas, com as posturas eretas, esperando. A mulher colocou um pequeno suporte e serviu as xícaras, despejou o chá e retornou de costas, sem tirar a cabeça baixa.

    — Ainda fazem isso? — Micaela achou estranho. — A mãe não tinha falado para parar?

    — Sim. — A porta se abriu, mais uma vez, revelando a figura de Atechi. Grande e pesado, com seus ombros largos e braços parrudos. Ele caminhava com duas mulheres atrás dele, ambas feitas para servi-lo, mas a expressão delas dizia a Vinigo que não havia nada ali além de medo. — Parece que alguma coisa aconteceu, e não foi pra melhor.

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