Capítulo 47: Sonhos de um Lugar Ideal (III)
— Você não tem medo de enfrentar aquelas coisas?
A pergunta fez Marcus girar, para encarar ambos sentados. Quase que deitado, Dante apoiava o corpo todo no cotovelo direito, e tinha uma pera na mão. Eles haviam encontrado um pé de fruta quando retornavam de Luma, tomando um pouco e colocando nos cestos.
O que mais deixou Dante determinado a ouvir a pergunta novamente era porque Clara estava estranha desde que tinha voltado de lá. A resposta que ela queria, Dante não sabia se realmente tinha para dar.
— Acho que não. — Ele não foi confiante sobre a resposta, mas comeu o restante da fruta antes de continuar. — É meio estranho dizer que preciso ter medo delas. É tudo uma questão de Intenção. Eles sempre carregam aquela sede de sangue e violência, então é fácil prever quando acontece isso. É mais complicado prever as pessoas do que as criaturas, meu pai dizia bastante isso.
Mesmo dando uma risada descontraída, não pareceu o suficiente para Clara.
— E por ter feito isso durante tanto tempo, você não teme mais lutar contra elas da forma que fez no Reservatório.
— Diferente do que parece, eu não luto faz tanto tempo, Clara. Se colocar o tempo que eu estou aqui com o que servi na Capital, deve dar um pouco mais de um mês. E não é tanto para um soldado. — Ele encarou o rosto dela, a pele era lisa, mesmo com alguns traços da juventude indo embora. — Da mesma forma que eu luto, vocês também fazem, mas da maneira que acham certo. Uma luta que tem mais gente pra proteger, é assim que as pessoas também fazem sua força.
— Não é isso, Dante. Está longe disso. — Clara parecia aflita, fechando a mão uma na outra e colocando entre as pernas. — Viu que Kappz é enorme. Luma toma conta da parte florestal, Antton fica com a caça, e os Jones tiveram um problema e tomaram o controle tanto das coletas quanto das ferrarias. Eles têm mais do que eu tenho, mais do que nós vamos ter um dia. A única coisa que conseguimos ganhar foi graças a vocês dois.
Ainda na bancada, Marcus segurava sua pistola carabina com boca larga. Não disse nada, mas esperou pela sua resposta. Dante não entendia muito bem como aquelas pessoas agiam ou porque tinham tanto medo do desconhecido, talvez, tinha sido sua criação que o moldou dessa maneira.
Agradecer seu pai e sua mãe deveria ter sido algo que fez mais vezes ao longo do tempo.
— Não considero nenhum deles detentores de algo. Você subestima a sua própria conduta, não está vendo? Esse discurso é porque eu sou forte ou por que tem medo de algo acontecer?
— Claro que tenho medo, Dante. Luma disse que Jones precisa de eletricidade, e que precisa de gente para ir até a prisão. Ela sempre sabe das coisas. Nos avisou sobre um problema…
— Do que adiante eles irem até lá embaixo nesse lugar. Sharm é o nome, né? — Dante deu de ombros. — Não quero saber dessas pessoas. O que você fez por mim naquele dia foi suficiente para mim. Ninguém se joga no meio da lama, Clara, cuida da outra pessoa e a tira de problemas.
Só então Marcus se levantou da bancada e sentou-se ao redor deles. Ele pegou uma pera na fruteira entre eles, e a cortou com uma pequena faca de bolso.
— Eu consigo entender o sentimento dela — disse Marcus partindo a fruta em quatro partes menores. — Dante, uma coisa é proteger as pessoas, outra é fazer o que você faz. Se eu estivesse sozinho lá dentro do Reservatório, não teria nem chegado perto de trazer a bateria de volta. Sua força, sua capacidade física, não é algo que nós dois… podemos pagar.
— Pagar? — A sensação de desconforto cresceu no peito de Dante. Ele se ajeitou, sentando direito pela primeira vez. — Acham que devo ser pago pelo que sou ou pelo que faço?
— Sua chegada foi um milagre – disse Clara, sem um pingo de vergonha. — Não temos como simplesmente descartar que seria melhor aproveitado em outro lugar do que aqui no meio da cidade.
Marcus gesticulou com a cabeça, assentindo.
— Parece que eu estou sendo interpretado de maneira errada. — Dante deu uma risada e colocou a mão na nuca. — Não tem porquê eu querer ir para outro lugar quando estou onde quero estar. Aqui é onde cai, ninguém além de vocês me ajudaram, e sou grato por isso. E Marcus, você diz que não faria nem metade do que fizemos, mas se não fosse você lá dentro, eu teria morrido. Isso aqui – ele esticou a mão para trás, tocando o ferro frio da bateria que recarregava —, foi ligado pela sua Energia Cósmica. Eu estou vivo por causa dos dois, e devo isso a todo custo.
— Mas, não temos nada. — Clara ainda tinha seu olhar cabisbaixo, um olhar triste. — Eles todos possuem recursos. Nós só temos isso.
— Só?
Dante não os deixaria cair nessa zona depressiva.
— Essa energia é pedida por todos eles. Antton queria ela, Luma, esse tal Jones querem. Conseguem entender que enquanto estiverem em posse de energia e água potável do reservatório, terão qualquer coisa. As pessoas sabem disso, elas voltaram a vir para cá. — Dante apontou para frente, em direção a outra ilha de prédio. — Eles esperam ser chamados para saber se podem ficar para ver algo que repele o medo da noite. Por que pensam que isso aqui é pouco? Olhem ao redor, os dois.
Clara ergueu a cabeça e Marcus já fitava o horizonte de casas e arranha-céus. Dante esticava a mão para lá.
— Eles tem uma pequena zona para trabalharem, mas vocês possuem tudo isso. A cidade inteira. E temos recursos para trabalhar. As pessoas não querem sentir que estão ali para serem exploradas, vocês não querem isso.
— Mas, eles dão algo para sobreviverem – Clara respondeu mais forte. — Não temos comida, não temos abrigo. Estamos em cima de um prédio mais tempo do que podemos, e agora, eles querem o que demoramos anos para conquistar. Meu medo é eles tomarem o que é nosso por direito.
Dante negou na hora.
— Isso eles não vão fazer.
— E como pode ter tanta certeza disso?
Dante pegou mais uma pera e colocou de pé em cima da mão. Com um único dedo, ele a partiu.
— Porque eles também têm medo. — Dante colocou um pedaço de volta na fruteira, mantendo uma consigo. — Eles sabiam que tinham uma criatura no Reservatório, e agora não tem mais. Se ela tivesse morrido por outro Felroz, eles teriam ido até lá para ver, mas não. Eles sabem por boatos de que a criatura morreu por nossa causa, o que deixa claro que nós somos mais fortes do que vivia lá. Clara, não importa se o boato é real ou não, viver com medo do que pode acontecer só vai atrapalhar sua visão sobre o que pode ou não fazer.
A cara dela rosou. Uma cor que era natural dela, voltando. Mesmo com medo, seus olhos brilhavam um tom ofuscante, querendo ir adiante. Dante não tinha ideia do quanto eles sofreram ali, mas na Capital, o privilégio de ter tudo era algo a não ser questionado.
Em Kappz, por outro lado, o básico era extremamente difícil de obter.
— Enquanto estivermos vivos, eles não podem fazer nada contra nós. Então, se quer tanto ajudar essas pessoas, comece com quem está pedindo sua ajuda.
As pessoas do outro lado, ainda observando eles conversando, sentaram em caixotes. Não queriam confusão, não queriam problemas. Crianças, animais, mulheres e idosos, os homens não deixavam que eles ficassem de pé, doando seus lugares.
Existia uma esperança de que eles fossem recebidos.
— Posso não saber administrar um lugar, mas creio que você tem a maior parcela da cidade pra você, Clara – disse Dante voltando a deitar. — Só precisa querer melhorar ela.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.