Capítulo 470: Ronda (I)
— Tem certeza disso? — Clara deu uma risada. Dante usava o botão contra o furo, prendendo a nova vestimenta feita por Karrs, uma das costureiras que tinha ficado responsável pelo alojamento inteiro. — Faz só uma semana desde que você voltou, precisa descansar um pouco mais.
Dante nem se deu muito tempo para dar uma risada.
— Você fala isso, mas está atrás de uma mesa cheia de papéis da Cuba inteira. — E apontou com a mão vagamente. — Ainda está tendo que tratar de problemas que esse lugar tinha antes de eu cair no Abismo.
A cara dela mudou, mas foi para nojo.
— Nem cita aquele lugar. Fico com ânsia de vômito só de lembrar. Nojento dos pés a cabeça.
— Eu percebi quando falei a primeira vez, mas gosto de implicar com você.
Ele terminou de abotoar o casaco. O tecido era grosso, macio ao toque, e caía reto sobre o corpo. Percebeu como o conjunto inteiro escurecia sua silhueta: botas de couro, camisa firme, o casaco preto que, apesar de simples, lhe dava uma presença sólida. Não era a ostentação da Capital, nem os trajes pesados do Nokia, mas tinha uma dignidade própria. Confortável, funcional, discreto.
Por um instante, a lembrança de Talia atravessou sua mente. A roupa preta que ela escolheria quando fosse para a Capital, compondo o uniforme dos Comandos. A saudade lhe bateu no peito como um golpe leve, mas suportável. E, quando desviou o olhar para Clara — os cabelos caídos sobre o ombro, os dedos manchados de tinta, os olhos atentos correndo pelas anotações — sentiu o peso da ausência se dissolver. Ela estava ali. Isso bastava.
A porta rangeu, quebrando a cena. Degol entrou com passos firmes, a cabeça raspada brilhando sob a luz da sala. A roupa dele, sóbria e escura, lembrava a de Dante, mas já moldada ao corpo por horas de uso.
— Senhora Clara. — Ele entrou e parou ao lado de Dante. — Vim buscar seu… Vim buscar Dante para a primeira ronda dele.
Clara deu uma risada.
— Para de graça, Degol. Dante, não se esforce muito. A ronda é para vigiar, não para se matar. Se tiver algum problema com Felroz, use o comunicador. Entendeu?
— Sei disso. Para sua alegria, eu não vou me colocar mais em perigo.
Clara lançou-lhe um olhar divertido.
— Como se isso fosse possível.
Dante se despediu com um último olhar para Clara antes de sair junto de Degol. O corredor que deixava o escritório era estreito, revestido de pedra clara, e descia alguns degraus até a porta de ferro que dava para a área aberta. O escritório de Clara ficava no nível mais baixo da Cuba, mas assim que Dante atravessou o limiar, compreendeu o motivo da escolha.
A vista se abria diante dele como um anfiteatro gigantesco. O coração da Cuba estava ali, revelado em todos os seus andares, como se cada nível fosse parte de uma cidade suspensa dentro daquela caverna colossal. Os corredores serpenteavam pelos andares em linhas curvas, interligando apartamentos improvisados, com portas de madeira, cortinas de pano e bandeirolas coloridas feitas pelas próprias famílias para dar algum calor ao espaço.
No segundo nível, Dante notou uma pequena escola. As vozes das crianças ecoavam pela estrutura, misturadas ao tom mais sério de um instrutor que tentava, em vão, manter ordem. Risadas, cantorias e até choros de birra se perdiam no ar, mas a cena arrancou dele um meio sorriso. Mais adiante, no mesmo nível, ficavam dormitórios coletivos, cheios de redes e beliches, destinados àqueles que aguardavam a chance de receber uma moradia definitiva.
No terceiro e quarto níveis, um som metálico de martelos e serras denunciava o trabalho dos construtores. Pequenos andaimes se equilibravam junto às paredes, e homens e mulheres mediam, serravam, levantavam estruturas de madeira, tentando expandir os espaços. Mesas cobertas de ferramentas ocupavam cantos improvisados, e o cheiro de serragem se misturava ao da pedra úmida.
Já no quinto, quase fora da vista, havia um conjunto de oficinas. Dante estreitou os olhos, percebendo clarões de metal sendo aquecido, o ranger de engrenagens, o sopro de foles. Mais acima, onde a luz natural mal chegava, uma sala maior havia sido adaptada para atividades artísticas e cuidados com os mais velhos. Pinturas improvisadas pendiam nas paredes, e curandeiros se moviam entre cadeiras e macas, cuidando com paciência dos anciãos.
O pátio central, onde ele e Degol caminhavam, era o pulmão daquele lugar. Ali se encontrava o refeitório, sempre ativo. O cheiro de pão recém-assado já subia para os andares superiores, carregado pela corrente de ar que circulava por toda a Cuba. Dante havia comido um pedaço minutos antes, mas o sabor seco ainda lhe permanecia na boca, lembrando-o de como aqueles recursos eram limitados.
Parou por um instante, tentando imaginar como alimentavam tanta gente. Não via sinais claros de criação de animais, nem de grandes plantações, embora suspeitasse que algo deveria estar sendo cultivado nos túneis mais afastados. Aquilo era um milagre de organização, pensado para manter centenas de pessoas vivas sob a rocha.
E, no entanto, o milagre tinha nome. Clara.
Mesmo sem gostar de admitir em voz alta, Dante sabia que era ela quem sustentava aquela engrenagem colossal funcionando, quem mantinha aquele povo respirando, estudando, comendo, trabalhando. E só agora, olhando de cima para todo o emaranhado de vidas, ele começou a ter dimensão do peso que seus ombros tinham novamente.
Voltar para Cuba era alimentar em sua mente novamente um desejo de não deixar que nada ocorresse de ruim para aquelas pessoas. Estava sorrindo quando Degol passou a sua frente, dizendo:
— Vem, vou te mostrar algumas coisas.
Os dois passaram pelo pátio principal, e Degol apontou para onde os trabalhadores ajustavam as paredes nos andares superiores.
— Aquilo lá foi um problema causado por algumas pessoas que vieram da Zona Cega faz uns dias. — O tom dele não era leve. — Eu detesto falar isso na cara da Clara, mas vou falar na sua. Não gosto deles.
— Eu vi Kalish aqui esses dias. Se mudou pra cá?
— Vem e vai porque os outros líderes de lá não gostaram das fazendas terem se mudado pra cá depois de um tempo. — Degol cumprimentou dois rapazes que usavam a mesma roupa que ele. — Meliah e eu ficamos responsáveis por ficar a frente, mas ele cuida da burocracia e eu fico responsável pelas rondas. Mas quando acontece algo como alguém vindo e fazendo besteira, Leonardo e Marcus ficam responsáveis.
— Fica bem dividido, então? — Dante entendia que eles movimentavam e protegiam a Cuba sem deixar o outro sobrecarregado. — E o que eu vou fazer?
— A única coisa que a gente não tem como fazer direito é fazer Ronda externa. Juno tem as missões que Clara e Jix dão pra ela, então a menina não consegue dar conta de tudo. Então, eu pensei que pudesse fazer isso.
— Andar pela cidade lá fora? — Dante não achava uma má ideia. — E até onde eu deveria ir?
— Isso depende de você.
Degol retirou um pequeno comunicador do bolso e entregou a ele.
— Para caso de emergências. Se precisar de qualquer coisa, só chamar.
Ele saiu sem dizer mais nada. Dava para ver os olhos dele um pouco receosos. Dante tinha simplesmente perdido sua força, habilidade e velocidade. Sabia bem que era apenas uma casca sem nada além de um pouco de dignidade.
Então, os outros que o conheciam e o observavam pensavam o mesmo.
“Ele pode se machucar lá fora.”
— Não deve ser complicado andar por ai. — Ajustou o broche acima do peito, e saiu pela porta da frente da Cuba. — Está pronta, Vick?
— Sim. Começando análise…
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