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    Fazer ronda por mais de quatro horas na cidade era menos vigiar e mais conversar com Vick sobre as mil maneiras de manter a Cuba funcionando. Ainda não era uma cidade de fato, mas crescia como se fosse. Dante caminhava com passos firmes pelas vielas estreitas, passava por grupos de jovens aprendendo a manusear lanças improvisadas, por mães carregando baldes de água e por idosos que se reuniam em bancos de pedra para falar das colheitas subterrâneas. Tudo estava em movimento, mas nada lembrava o campo de batalha. E era exatamente isso que o incomodava.

    Quanto mais tempo passava longe da guerra, mais sentia o peso do silêncio.
    Era como se o corpo, acostumado a sobreviver entre aço e sangue, estranhasse a calma, como se algo estivesse errado no simples fato de não precisar lutar.

    Por isso, subiu. Passou por escadas estreitas, escombros de antigas estruturas de ferro e concreto, até alcançar o topo de um dos prédios parcialmente reconstruídos. Dali, a visão se abria para além da muralha rochosa da Cuba: o horizonte não era apenas um amontoado de prédios arruinados. Era o mundo lá fora, cicatrizado por batalhas, silencioso e misterioso. Respirou fundo. O ar tinha o gosto metálico da ferrugem e da poeira, mas ainda assim lhe pareceu mais puro do que qualquer conversa política.

    A voz de Vick o alcançou, suave, menos metálica do que de costume, como se modulada pela própria percepção dele:

    — Sinto seus pensamentos vagando para longe, Dante. — Houve uma pausa breve. — Como uma IA, tenho registros de seus familiares, e todos indicavam que o tédio, para você, sempre foi mais perigoso do que qualquer criatura selvagem sem consciência.

    O comentário era neutro, factual, mas Dante não conteve uma risada curta.

    — Estou apenas pensando.

    — Posso saber no quê?

    — Claro que pode. — Ele passou a mão pela nuca, sentindo as cicatrizes sob os dedos. — Estou em um corpo envelhecido, cheio de marcas de batalhas que venci só para conseguir voltar até aqui. Mas agora que estou de volta… tenho medo dos meus pensamentos.

    — Dos seus pensamentos?

    — Tenho medo que eles sejam iguais aos de antes. — A voz saiu quase como um sussurro, perdida no vento que batia lá de cima. — Medo de que, a cada dia, eu volte a pensar como no passado… e queira correr de novo para a Capital.

    Vick silenciou. Dante acreditou que ela estava apenas calculando dados, cruzando informações, preparando algum discurso lógico que tentaria acalmá-lo. Mas a resposta que veio foi inesperadamente humana:

    — Você está buscando um propósito. — A pausa soou quase como uma respiração. — Sempre esteve.

    Dante ergueu as sobrancelhas, intrigado.

    — Os humanos são movidos não pelo caminho mais fácil, mas pelo mais improvável. — A voz de Vick parecia quase contemplativa. — O mundo é vasto demais, e você já o observou de perto. Viu mares, fortalezas, monstros, cidades que ninguém acreditava que existiam. Comparado a isso, Kappz é pequena. Este lugar, a Cuba, mesmo com toda a vida que pulsa aqui, ainda é pequeno.

    O vento balançou os fios de cabelo de Dante, e ele permaneceu em silêncio.

    — É por isso que sua mente o atormenta. — Vick continuou. — Ficar parado aqui é como negar suas próprias experiências, como se estivesse trancando um livro depois de escrever apenas metade da história.

    Dante apoiou os cotovelos sobre uma viga retorcida, olhando o horizonte. A beleza que tinha visto da primeira vez que esteve em Kappz ainda se arrastava pela sua mente, mesclando no presente. Observar esse mar de concreto era como retornar para os dias calmos, onde definiam o que poderiam comer.

    Agora, eles definiam onde explorariam. Kappz se tornou um lugar onde os Felroz se escondiam dos humanos, e isso era suficiente para que houvesse silêncio até mesmo onde deveria haver barulhos.

    Dante suspirou. Ficar dessa maneira não iria adiantar em nada.

    — Já que não vamos para lugar nenhum — murmurou, erguendo a cabeça — quero que me ajude com algo, Vick.

    A resposta veio rápida, clara, quase como se a IA tivesse esperado o pedido por muito tempo:

    — E o que seria?

    Dante olhou para as próprias mãos. Grandes, calejadas, cheias de cicatrizes, mas vazias. Lembrou-se do olhar frio do pai.

    — Eu nunca aprendi nada sobre tecnologia. — A voz saiu carregada de um peso antigo. — Não faço ideia de como funcionam as coisas. Meu pai sempre deixou claro que eu servia apenas para batalhar, e agora… — abriu as mãos, deixando-as pender no ar, era a derrota o acertando. — Agora eu não tenho nada.

    O silêncio se estendeu por um segundo, antes de Vick responder:

    — Gostaria de aprender sobre o quê? — Fria e objetiva, Vick perguntou uma serenidade que Dante deixou Dante impressionado. — Meus conhecimentos técnicos seguem ramificações do que Render, Linda e Talia dominavam. Também foram incrementados com o que você observou em Singapura e em Selenor.

    Ele respirou fundo, e sem pensar demais, se lançou da viga. O corpo despencou alguns metros antes de seus pés tocarem o concreto do térreo. O impacto reverberou nas pernas, mas ele se firmou sem vacilar. O horizonte, diante dele, continuava o mesmo de sempre: cinzento, gasto, cheio de ruínas. Mas, pela primeira vez em muito tempo, Dante decidiu que daria um novo significado àquela paisagem.

    — Tudo. — A palavra saiu firme, sem espaço para hesitação. — Primeiro, quero que me auxilie nos treinamentos. Use a imagem do meu pai para me enfrentar. Preciso que meus instintos continuem vivos. Não posso perder isso.

    Ele ergueu o queixo, encarando a muralha que delimitava a Cuba como se fosse um adversário.

    — E depois… faça uma trajetória da tecnologia básica. Observe pelo que eu vejo aqui dentro, o que temos na Cuba, e trace um caminho de como modificar, melhorar, expandir. Quero aprender do começo, passo a passo.

    Vick processou os dados por alguns segundos antes de responder:

    — Deseja controle imediato para criar e ramificar novas formas de padronizar e organizar os módulos de segurança?

    — Exatamente. — Dante assentiu.

    — Veronica, mesmo com sua capacidade, não criou nada além de um broche em forma de comunicador. — A voz dela soava quase crítica, mas sem emoção. — Ele foi montado a partir dos antigos Cubos de Comunicação que entregou a eles. Nada além disso.

    Dante soltou uma risada curta, mas verdadeira. Fazia um pouco de tempo que sentia ansiedade por incerteza. Era praticamente recomeçar, dando sentido a algo que já havia significado.

    — Ótimo. Então vamos começar por aí. Faça isso, Vick.

    Ele saltou novamente, dessa vez em uma distância maior. Chegando ao solo e batendo seus pés contra o concreto, mas sem sentir dor. Então, respirou fundo e começou a retornar para Cuba, assobiando.

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