Capítulo 496: Fronteira (II)
A névoa tinha morrido fazia mais de dez minutos. Mesmo assim, Dante manteve o ritmo com o Felroz até chegar na estranha ponte de pedra que separava os dois lados. Era uma ponte larga o suficiente para passar três carroças juntas e com muretas de cada lado, sinalizando de uma possível queda.
Nas laterais, entretanto, haviam apenas barro, lama e pedra. O que tinha ali foi substituído. Dante parou dentro de uma antiga loja, atrás de algumas prateleiras e respirou fundo.
— Estamos praticamente na porta deles. O nosso plano vai ser o mesmo.
— Estarei analisando todas as estruturas ao redor enquanto estiver presente.
Dante ficou de pé, levou a mão a cintura e respirou fundo. A lâmina tinha seus riscos, mas não era isso que precisava estar riscado.
— É por um bom motivo. Espero que a Simone não brigue comigo depois.
Girou a arma na mão e riscou a perna, uma parte da coxa e subiu para o braço esquerdo, fazendo um corte raso. Rangeu os dentes, mas segurou a dor. Se chegasse lá sem um arranhado real, seria praticamente descoberto na hora.
Precisa viver esse Selvagem.
— Vamos, monstro.
Ele saíram de dentro da loja. O animal acuado, sendo usado como apoio e Dante arrastando sua perna machucada, com o braço ruim segurando a barriga. Forçou um pouco do movimento, chegando perto da ponte.
Ao pisar nela, uma onda de frio inundou seus pés, subindo rapidamente para as pernas e cintura. Ele travou a repentina onda gelada percorrer todo o seu corpo. Ele ficou imóvel por alguns segundos, e foi nesse tempo que alguns dos Selvagens na ponte o perceberam.
— Ei, irmão. — Um deles levantou a mão na hora. — O que houve?
Dante não conseguia se mover direito. O frio estava se alastrando em seu corpo, penetrando seus músculos, órgãos, veias. Até mover o braço ficou impossível, seus ossos estalavam, como gelo rachando.
E quando chegou ao seu pescoço, sua garganta se fechou na mesma hora. Dante forçou o corpo, mas não acontecia nada. Ele não conseguia sequer piscar direito.
— Droga. — Um deles se aproximou rapidamente com a máscara de ossos e segurou Dante pelo ombro. — Esse é a montaria do Cabealos. Ele deve ter conseguido sair de lá com vida, igual ao Mexlin.
O cara da névoa… Dante gravou o nome dele. Mexlin.
A fonte fria de energia ainda tinha subido até seu rosto, penetrando seus olhos e ouvidos, fechando seus sentidos aos poucos. Ele piscava, parecendo uma eternidade para abrir os olhos, e não escutava direito o que eles falavam.
Quando se deu conta, seus sentidos cessaram na hora. Sua pressão caiu. Ele começou a cair para trás, e o Selvagem o segurou pelo ombro.
— Perdeu muito sangue e não consegue se regenerar usando a Fonte. Irmão Draxx, precisamos levar ele para dentro, agora.
— Não podemos fazer isso. — Draxx se aproximou. Dante viu sua face por trás da máscara de ossos, fitando o colega. — Não estamos aqui para salvar nenhum deles, lembra?
Eles falavam baixo, quase para Dante não escutar, mas conseguia mesmo assim. Seu ouvido já não estava mais falhado, seus olhos também não. Ele conseguia ver perfeitamente os dois se encarando e debatendo firmemente no invisível.
Esses dois… não são Selvagens também.
— Vamos deixar esse cara aqui fora — a voz de Draxx ficou mais baixa ainda, apontando para Dante. — Ele vai morrer mesmo. Não está conseguindo mais segurar a Fonte, ou seja, o corpo dele já era. A gente ficou dias tentando isso, e quase morremos.
— Mas e se ele…
— Jogue ele em qualquer lugar e pegue a criatura, agora — ordenou Draxx. — Não podemos falhar. Menos um para eles é mais uma chance para nós.
Dante arregalou os dois olhos. A energia adentrou sua mente, borbulhando cada uma das suas memórias. E ele sentiu a estranheza de encarar o céu e não conseguir ver o azul. Era apenas a escuridão cheia de pontos brilhantes.
Ele piscou duas vezes, e se levantou.
Olhou para os dois lados, procurando os homens. Depois tocou o ombro, depois o peito, desesperado. Onde estavam eles? Merda. Procurou por Nick e Lilo, depois o rosto. Segurou o próprio rosto rapidamente.
— Vick, onde estou?
— Vick? — Uma voz respondeu vindo de todos os cantos. — Ah, entendi. Era isso então que estava atormentando minha estadia em seu corpo, Dante. Ela tinha um nome, então. É como se fosse uma ajudante.
Dante saltou ficando de pé e ergueu os dois braços, pronto para a batalha. Não tinha ninguém na sua frente, mas a voz sussurrou em seu ouvido, atrás dele:
— Então esse é o espírito de batalha que eles dizem ter.
Dante virou com um soco, mas acertou o vazio. Seu braço esticado, no entanto, foi segurado por uma mão gélida, lisa e fina. Ao encarar a pessoa, Dante sentiu seu coração gelar junto da sua alma e mente.
Aquilo não era uma pessoa. Seus olhos não transmitiam humanidade, não transmitiam vida, era apenas… frio. O mundo inteiro poderia ser congelado por aquilo se fosse necessário, mas não havia intenção de batalha.
Uma árvore de gelo com raízes que tocavam o inferno e a copa nos céus.
— Os Humanos que eu encontrei e vi se esforçarem nunca tentaram me matar antes — disse a criatura. — Você, por outro lado, carrega muitas batalhas. Sinto seu desejo de querer viver, mas, ao mesmo tempo, de querer que as coisas terminem. Diga-me , é tão teimoso em se manter vivo por que precisa voltar ou por que gosta de não saber o que o futuro te aguarda?
— Quem… é você?
Até o hálito escapava com as cinzas. Era um mundo feito de gelo.
— Eu acho que temos a resposta da pergunta um do outro, mas você não tem mais poder para fazer o que queria. Sua alma foi corrompida, dividida em maldições, e agora, você tenta encontrar um jeito de viver sem saber o que fazer. Fascinante. Os Humanos são realmente fascinante, mas… — seu tom ficou gélido. — Fraco ainda para matar o que é necessário.
Dante puxou o braço na mesma hora que a criatura esticou sua mão. Os dois trocaram movimentos curtos, bloqueando o avanço do outro, ficando cara a cara, estagnados. Até que Dante prendeu a respiração e girou rapidamente num salto, acertando socos no ar.
A defesa foi perfeita, idêntica ao que Render fazia quando o enfrentava. Por último, quando tocou o solo, viu sua falha ser observada. O movimento precisava de um tempo para colocar Dante de volta no ataque.
A criatura se mexeu com rapidez, todo o membro direito se transformando em bloco de gelo afiado. Apenas para ser travado…
— Oh, isso é mais impressionante ainda, Dante. — O braço dele foi segurado pelas mãos nuas do humano. — Faz praticamente cem anos desde a última vez que alguém parou um ataque meu. Isso deve ser suficiente para responder sua pergunta.
— Não quero mais saber da pergunta. — Com uma puxada, Dante o trouxe para perto de si, colocando toda a força no movimento do braço direito. — Vou arrancar a resposta eu mesmo.
A criatura riu.
— Sua determinação, foco e disciplina são realmente seu ponto forte, como seu pai uma vez disse.
O choque dos punhos eclodiu num estalo. Dante foi enviado para trás pela onda do impacto, girando no chão gelado, rolando e por fim, ficando de pé. Respirou fundo algumas vezes vendo que o inimigo sequer tinha se mexido do lugar.
Queria poder acreditar que estava na vantagem, mas não fazia ideia do que aquilo podia fazer.
— Está se perguntando onde está, quem eu sou, como veio parar aqui ou como tudo se tornou tão ridiculamente impossível de acontecer. Está fundamentando uma maneira de escapar, procurando pelas minhas falhas. Agora está querendo saber como sei de tudo isso. Da sua família, da Capital, dos seus sonhos de voltar para encontrar sua irmã e seus colegas. Seu caso amoroso com Clara, todas as pessoas da Cuba. Sua viagem pelo mundo afora, no Polar Oceânico.
Dante balançou a cabeça.
— Como?
— Ora, como eu não poderia saber? Você esteve o tempo todo buscando uma maneira de derrotar o invisível. Eu sou o próprio invisível, mas vivendo uma vida tão pacata quanto a sua agora. Você pode me chamar como eles lá fora me chamam.
— As pessoas dão nomes ruins pra tudo. Qual o seu?
A criatura riu vagamente.
— Seu senso de humor me diverte. Eu sou chamado de… Fronteira.

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