Capítulo 497: Fronteira e Falha
— Fronteira é o nome dado a todos os tipos de situações onde nós nos colocamos. — Render ficou de costas para Dante. — Quando estiver perto de uma dessas coisas que eles chamam de irreais, você precisa encontrar uma maneira de fazer sua mente entender o que é e o que não é você.
Então, era disso que seu pai falava? Mencionou somente duas vezes sobre algo assim, mas Dante não deu muita trela. Gostava das lutas, de treinar, não da teoria. Mas, a Fronteira era… real?
— Claro que sou real. Seu pai deve ter enfrentado algo parecido quando estava ativamente em batalhas. Ele era poderoso pelo que vi em suas lembranças. Uma pitada de racionalidade junto de um espírito que se recusava a deixar o filho se aproximar. Um tipo de corrente amarrada no seu pescoço para que sempre se lembre de que nunca será o mais forte, Dante.
— Fala pra cacete, hein. — Os dois braços se levantaram, de novo. — Deveria parar de falar coisas idiotas.
— Sim, eu deveria parar de falar sobre coisas idiotas e falar sobre pessoas idiotas, como seu pai que te treinou para morrer. — Seu sorriso se esticou a medida que o de Dante morreu. — Estava procurando uma maneira de te deixar irritado, mas nisso você é bom, não é? Ficar calmo.
— Não perco a cabeça sabendo da mentira que me contam. Até porque, eu não vou morrer para provar um ponto. Quer falar, fale.
— Os insultos aos humanos são o melhor remédio para atormentá-los. Uma criatura que não se mancha pelo que ouve se torna tão… irritante para mim, Dante. Xingar sua mãe ou irmã não faria diferença. Clara ou seus colegas, nenhum deles teria efeito em você. Sua criação foi tão perturbadora que somente uma aberração poderia passar um tempo apanhando.
— Sim, tem razão.
A cara de Fronteira ficou entediado.
— Detesto seu humor agora.
— Não é diferente de todas as criaturas estranhas que já enfrentei antes que tentam falar o que veem na minha cabeça. Acha que é o primeiro dizendo coisas sobre minha família ou meus amigos? Não tem nada de novo nessa sua fala, apenas uma criatura fedorenta se escondendo em algum lugar dentro da Energia Cósmica querendo que eu dê brecha. Agora, eu não preciso mais saber o que é você, preciso só saber se consigo te matar agora ou depois.
O humano abriu o sorriso de novo, tensionando os músculos inferiores. Ah, Fronteira lembrava de como os Humanos eram persistentes quando queriam lutar até a morte. Nunca imaginou que depois de tanto tempo, praticamente cem anos, enfrentaria outro desses.
— Levei quanto tempo da última vez? Cinco minutos? — Negou com a cabeça. — Acho que foram três minutos até que ele desistisse. Qual era mesmo o nome dele? Jix…?
— O velho?
A boca de Fronteira se abriu, sorrindo.
— Conhece o velho Jix então? Que inusitado. Ele veio até mim sem querer, assim como você, querendo trazer de volta a vida seus familiares. Me ofereceu o mundo inteiro para trazer quem ele queria, mas eu tinha dito a ele que poderia ter o que ele quisesse se conseguisse me vencer. A habilidade dele, como era mesmo? Gravidade, não é?
— Não. Não era ele. Jix não seria maluco a esse ponto?
— Como acha que os humanos reagem a perda? Quando seus mais próximos morrem, eles não podem simplesmente deixar isso para lá, Dante. Quando seus corpos fazem coisas além do inimaginável, como controlar a natureza, fazer a chuva parar ou costurar a pele sem ao menos tocá-la, sua mente se pergunta: é possível trazer alguém a vida? E eu te respondo. Sim, é possível.
— Mentiroso.
— Por que eu mentiria pra você de algo tão grandioso? — Fronteira virou um pouco a cabeça para o lado. — A dor, a depressão, a raiva, a vingança, tudo é possível pelo preço certo, mas a verdadeira tragédia vem de quando nada disso é superado. Como por exemplo… a falta de poder. Ainda busca, mesmo que minimamente, uma forma de trazer de volta aquilo que você chama de capacidade. Quer ajudar as pessoas, quer mantê-las seguras do lado de fora, de criaturas como os Felroz, de criaturas como eu. Por que? Porque isso é o que te torna humano. É pra isso que você foi forjado. Uma mente, um corpo, uma alma, um espírito feito para continuar em frente mesmo quando tudo se perdeu lá atrás. Passou seus meses treinando com seu robô de estimação, aprendendo e aperfeiçoando na dor seu físico, querendo acreditar que não perdeu tudo para aquele monstro que chama de Rastro. O mesmo Rastro que te atormenta até hoje quando lembra que poderia ter vencido se não fosse tão bondoso. Algumas vidas se perderiam no processo, mas você poderia proteger ainda mais do seu povo. O que isso te torna? Uma pessoa bondosa ou um azarado? E o que fez antes se perde? O que faria se pudesse refazer? Caminharia em um sentido diferente ou faria o mesmo? Você faria as mesmas escolhas, Dante?
Isso, diga para mim que mudaria para melhor, que faria o mundo inteiro ser protegido pela sua ilusão mundana. Diga pra mim que escolheria seguir um caminho diferente, onde tudo e todos seriam melhores.
— Claramente, você fala muito. O que tem o passado? — Dante negou com a cabeça, enojado. — Querer mudar tudo o que está lá atrás é o mesmo que dizer a todo mundo que morreu pra me proteger ou que fez algo pra me ajudar que eles não são nada. Quer saber, Fronteira, eu realmente tinha uma pergunta pra fazer, mas agora depois disso tudo o que você me falou, eu tenho certeza que minha pergunta vai ser respondida quando eu enfiar seu corpo dentro de uma valeta qualquer e te ver suplicando a sua miserável vida pra mim. — Dante segurou o próprio punho, com uma respiração pesada. — Jix veio até aqui e você atormentou ele com memórias, eu aposto. Falou da família, dos filhos que ele perdeu, da mulher que ele tanto amava, não foi? Eu sei que falou porque você faria o mesmo se eu fosse igual a ele. No entanto, eu não perdi nada. Eu tenho tudo o que preciso bem aqui, e se isso não for suficiente para te matar, que seja tentando até o máximo te fazer sofrer e angustiar porque agora eu estou bem determinado a fazer você sofrer por tudo.
— Tudo isso por um homem que conheceu a pouco tempo? Não ficou mais de… alguns meses com ele. E está assumindo as dores dele? — Fronteira achava fascinante a lealdade. — Por que se apegam tanto ao lapso de vida e ignoram a morte ao lado de vocês? Se soubessem que estão sendo feitos de marionetes pela vida, claramente se entregariam de bom grado. Ele tentou, seu amigo, de tudo, mas acabou morrendo de dor, afundado numa tristeza sem fim. Eu mostrei o caminho para ele, de morrer. Assim como mostrei para todos aqueles que tinham uma dívida com a própria vida. Reencontre quem você perdeu do outro lado. Eu sou a Fronteira de tudo.
— Que nome de merda, sinceramente.
Fronteira ficou fitando Dante parado, sem se mexer.
— E então, o que vai fazer, Dante, filho de Linda e Render? Vai me matar, como disse?
— Eu queria, mas vou estar caminhando pra direção que você quer, não é? — Dante respirou fundo. — Vou fazer isso ainda, mas não agora porque você não é merda nenhuma.
— O quê?
— É isso mesmo, Fronteira. Algo que não faz nada além de falar sobre algo só me deixa com dor de cabeça. Jix veio aqui, você infernizou a vida dele, e agora ele está bem. Consegue ler minhas memórias, não consegue? — Dante apontou para a própria cabeça. — Veja o sorriso dele com as pessoas perto de mim. Ele sobreviveu e está vivo querendo um lugar para as pessoas ao redor dele. Eu ia te bater pra cacete, mas você não merece isso.
Dante negou com a cabeça várias vezes.
— Parece o Rastro do Mundo Espelhado querendo me mostrar o quanto minha vida ou das pessoas são miseráveis. Você não é nada original. Agora, me tire daqui. Eu não tenho nada pra pedir pra você, seu merdinha.
— Com quem… você acha que está falando?
Dante soltou uma risada.
— Com outro merda que acha que a Energia Cósmica é a coisa mais incrível do mundo e perderia pra mim se eu tivesse alguma. Bom, eu não tenho, e acontece. Eu não vou ficar remoendo isso pra você só pra ficar barganhando comigo. Eu não quero nada que venha de uma criatura que se esconde no meio de um lugar avulso, fora da realidade só pra me assustar. Você pode fazer com todos eles lá fora que nunca passaram por nada disso, mas comigo? Sério? Não vai arranjar nada.
— Ora seu…
— Sim, é isso mesmo. Me mande de volta, seu saco de merda todo fudido. Eu sou Dante, da Capital, irmão e filho de gente importante, que vai voltar uma hora e não quero ajuda de uma criatura mesquinha como você. Se for pra te bater, que seja enfiando um pé nessa tua bunda gelada sem nada a oferecer além de propostas merdas. Sim, é isso. Faça essa sua cara de merda pra mim, bostinha.
Fronteira ficou praticamente sem palavras. Nunca tinha visto um humano reagir de maneira tão… estranha. Nenhum humano recusava ter seus caminhos voltados atrás. Mesmo aqueles com determinações tão aparentes, tão fortes eram carregados de desejos.
Voltar atrás, fazer diferente.
Por que você é tão…?
— Falha.
Dante e Fronteira ouviram, vindo de longe, ainda mais distante do que aquele estranho lugar.

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