Índice de Capítulo

    Na noite em que Marcus recebeu o chamado de Clara para visitar um dos hospitais antigos, fez de tudo para entrar com cautela, segurando sua carabina. Odiava tanto visitar o hospital, detestava ter que relembrar todas as vezes que seu pai mandava buscar uma seringa que não tinha sido usada, e sempre que voltava de lá, via o homem com cara de decepção.

     A lembrança ainda era viva:

    Não aprendeu nada do que eu te ensinei? – Virava o rosto para o outro lado, ignorando o filho e pegando um dos pequenos tubos de vidro na prateleira. – Precisa ser mais ágil, precisa ser mais rápido. Sem hesitar.

    Quando Clara solicitava que ele entrasse novamente pelas portas do antigo Hospital Rong, Marcus sentia as lembranças novamente abraçando um lado que pedia todos os dias para sumir.

    A ala dos remédios ficava bem mais distante do que tinha costume de pegar as seringas. Ele atravessou as catracas, pisou no hall, onde as macas tinham sido destruídas, jogadas para os lados, a água atravessava o teto de vidro estraçalhado, e formava uma imensa poça depois de uma longa semana chuvosa.

     Quantas pessoas deveriam ter ficado ali até irem embora ou… mortas? Era um pouco cruel demais pensar que antes dele, tantos outros fizeram o mesmo. Queriam apenas sobreviver um dia de cada vez. 

    Cansado da mesma rotina de sempre, Marcus apenas sentou em um banco de madeira estacionado bem abaixo da estátua de um antigo e renomado doutor. E descansou a cabeça um pouco. Se Clara tivesse um pouco mais de apoio, a situação melhoraria. Marcus tinha tanto respeito por ela, pelo que fazia aos outros. A ajuda diária, os alimentos buscados.

    Ninguém, nem mesmo Antton, entregava tanto quanto ela. Mesmo assim, quando o assunto era escolher uma localidade, os mais fortes visavam a zona de caça, a antiga Selenor. Lá, os caçadores mais experientes ensinavam os mais novos integrantes como utilizar arcos e abater javalis ou alces. Essa era a propaganda deles.

    — Pura merda. – Marcus fechou os olhos, jogando sua cabeça para trás. – Selenor nem existe de verdade.

    A comunidade de caçadores de lá foram trocados por gente de Antton, homens com cérebros pequenos e sem consciência, alimentados apenas pelo desejo de ter carne para trocar com os outros distritos, mas nunca com Clara.

    Para aquele merdinha, Clara nunca teria nada para oferecer.

    Naquele último ano, quantas vezes teve que partir para o meio de uma casa ou loja? Quanto material armazenou na sua mochila ou bolsas e levou de volta? E quando Antton descobriu que Clara tinha certo peso em Kappz, ele veio pedir pelos recursos.

    Aquele dia em especial, Marcus hesitou.

    — Ele parece morto. – A voz veio de perto. Marcus abriu os olhos tentando levantar a arma, mas sentiu uma mão agarrar seu pescoço e um pé acertar sua barriga. O ar do pulmão se foi completamente. Seu rosto ficou vermelho. – Ah, é o cachorrinho da Clara. Meliah, olhe o que eu achei aqui, vem ver.

    Fazia força para frente, mas Degol apertava ainda mais sua garganta, o pressionando para trás. Marcus tentou levantar o braço, mas recebeu outro chute na barriga. Arfou secamente, ficando sem força nenhuma.

    — Solta ele – disse Meliah ainda do outro lado de uma sala, observando pelo vidro quebrado. – Ele não fez e nem vai fazer nada.

    — Ele nem parece do mesmo jeito que o Antton falou. – Degol libertou a mão e deu um tapa em sua orelha.

    Marcus sentiu a pressão zunir seus ouvidos. O único som que chegava eram ruídos baixos, de passos. Sua visão ficou escura. Nunca tinha imaginado que um tapa tinha tanto efeito. Quando abriu os olhos, eram botas escuras, e o rosto de Clara, preocupada, toda molhada por conta da chuva que havia retornado.

    — O que houve?

    Sua mão não tinha tomado a arma. Os olhos estavam fechados. Não tinha inspecionado o local antes de sentar. E seu pior erro, não ter concluído o que foi feito.

    — Eu… hesitei, senhora.

    Sempre era hesitação. Sempre.

    Clara o ajudou a se levantar. Enquanto Marcus ficou sentado recuperando um pouco da sua derrota, ela andou até alguns pontos, verificando algumas partes. Assim que retornou, ainda mantinha o semblante leve.

    — Eles levaram apenas a caixa de munições que tínhamos visto. Não tem problema.

    — Claro que tem problema. Essa não é a parte da cidade que eles deveriam ficar. – O gosto da raiva era amargo, e o de perder para eles era duas vezes pior quando falava. – Eles não mantém nem mesmo as promessas com os outros chefes de setores, dona.

    — Marcus, eu não sou nenhuma chefe. Não quero dizer que eles estão corretos, mas não te matar aqui e agora foi um sinal bem grande de respeito. – Ela esticou a mão em sua direção. A chuva surgiu com ventos bem fortes, obrigando Marcus a piscar várias vezes contra as gotas. – Ainda temos a caixa de remédios e as ataduras no fundo. Vamos pegar e voltar. Tivemos sorte. Da próxima vez, pode ser pior. Precisa tomar cuidado.

    Sem hesitar. Sem hesitar.

    I

    Sem hesitar, seu filho da puta.

    A pele de Degol endureceu no mesmo momento que Marcus apertou o gatilho. O disparou soou tão alto que pareceu ferro sendo brandido contra o outro, e marcou o início do conflito.

    Degol recebeu o tiro bem no meio do rosto, sendo arremessado quase vinte metros, batendo contra um carro, o amassando para dentro e caindo sentado. Sua mão tremia. Lentamente levou os dedos ao rosto, e o líquido vermelho escapava de um ferimento, mesmo que superficial.

    O atirador ainda estava com a arma erguida. Degol o assistiu puxar mais uma vez a trava da carabina e atirar. Outro disparo o acertou como um canhão, arremessando ainda mais fundo contra o carro.

    — Merda. – Degol puxou a bala do peito, ficando de pé e jogando para o lado. – Eu vou te matar, desgraçado. Vou te matar agora, seu…

    Mais um tiro o arremessou longe, caindo no meio da rua. Ele rolou algumas vezes, e ficou de pé.

    Dante deu uma risada eufórica, achando hilário.

    — Como você fez isso? – perguntou a Marcus. – Parece muito mais forte do que antes. Sua Energia Cósmica nem mesmo oscilou.

    Não muito adiante, Meliah assistiu o irmão ser bombardeado por duas três vezes, caindo e gemendo de dor. Encarou Marcus e saltou na sua direção como uma bala. A reação de Marcus foi o que lhe deixou confuso.

    Meliah sentiu um calafrio nas costas. O atirador que tinham encontrado naquele dia no hospital não tinha essa aura sombria. O que aconteceu para ele ficar desse jeito?

    — Mandei você se mexer?

    Marcus puxou a pistola do seu coldre tão rápido que quando Meliah percebeu, ele tinha sido lançado a quase dez metros pra longe. A dor era pouca, seu peito não ardia tanto, mas a forma como o atirador fez, Meliah Jones não tinha certeza de quanto ele tinha diminuído a potência para não o matar.

    Ele poderia não ter se segurado. Meliah o encarou abaixar o braço, e puxar a carabina novamente para frente.

    — Vou pegar ele – ouviu de Degol na sua direita. Ele forçava os braços para ficar de pé. O corpo enrijecido, como a pele se tornando mais cinzenta, sólida. – Vou bater na cara dele até ele pedir perdão, como eu devia ter feito da outra vez.

    Meliah abaixou a cabeça. Não era só Marcus que o preocupava. O atirador havia melhorado muito, mas o velho do lado dele nem mesmo tinha se mexido.

    — A arma ficou mais forte. – Dante apontava para a carabina. – Fez algum tipo de ajuste? O que foi que fez?

    — Não está na hora de falar disso – respondeu Marcus destravando a ISE novamente. – Temos um trabalho pra fazer.

    Dante deu uma risada que Meliah detestou do fundo do seu coração. Ele não está nos levando a sério, pensou ao forçar a palma contra a rua e ficar de pé. Desde que tinha chegado, ninguém os respeitou.

    Precisava apenas ganhar a merda da aposta que fizeram, e levariam a bateria.

    As mãos de Degol Jones foram enrijecendo ao ponto de se tornarem blocos de pedras. A pele parecia ter blocos de concreto espalhados, criando uma espécie de armadura natural. A habilidade do seu irmão consistia em reter o material que tocava e fortificava os músculos de dentro para fora. Ele era uma máquina de defesa que tinha vencido muitos Felroz, batendo de frente com mais de três ao mesmo tempo.

    Aqueles dois não tinham chance. A limpeza no Reservatório poderia ter deixado-os confiantes, mas ainda não tinham nem mesmo usado suas habilidades. Era justamente isso, quando ficasse de pé, faria com que os dois sofressem por terem ido tão longe.

    Quando se deu conta de que Degol se lançou na direção de Marcus, Meliah travou no mesmo lugar. Seu irmão socava o ar enquanto o atirador se esquivava se jogando de lado e aparando o movimento.

    O atirador não tinha esse tipo de velocidade antes. Meliah abriu a boca, surpreso, quando viu Degol errar um chute, errar o movimento ao pisar e deixar suas costas indefesas. Marcus sacou a segunda pistola, bem diferente da outra. Essa segunda era mais fina, a madeira menos rústica e o cano em um tom escuro.

    — Ele aprimorou a arma? — sua pergunta saiu baixa, mais para si do que para os outros. 

    Os dois disparos lançaram Degol de volta pro chão. Sua armadura de pedra não tinha sido penetrada, mas dois rombos profundos foram suficientes para que ele gemesse de dor. Meliah ficou sem reação diante dos fatos.

    Seu irmão tinha conseguido vencer um Felroz, e agora, apanhava para um atirador qualquer que vivia em Kappz?

    — Parece que estão sem sorte hoje, hein – ouviu bem perto de si. Era o velhote. – Deve ser ruim ter a confiança de antes sendo arrebentada. Não se preocupe, vou honrar a promessa que fizemos.

    A risada macabra que soou em sequência fez Meliah questionar, pela primeira vez, se ir até o centro suburbano foi o certo a se fazer. 

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