Capítulo 58: Inverno (I)
— Inadmissível. — Antton sentava junto de Luma e Meliah, sua voz sendo a única alta o suficiente para contrariar o canto dos pássaros. — Quantas vezes eu disse que Clara não tem gente o suficiente para comandar alguma área. Eu mesmo já deduzi isso das últimas vezes.
Ele socou a mesa, e algumas xícaras tremeram.
— Sem recursos, sem gente e com uma bateria que qualquer um de nós poderia utilizar de uma maneira melhor. Eu ainda levanto a decisão de que ela não deveria ter algo tão precioso e usar de maneria tão ridícula.
Luma tomou sua xícara e bebeu um pouco, e depois a devolveu a mesa. Mesmo ouvindo aquele jovem homem dizer tantas atrocidades, ele parecia não se importar com nada além da bateria. Antton continuava sendo o mesmo de sempre, um pouco presunçoso e muito arrogante.
Sorria lembrando que ele realmente era assim desde que o conheceu.
— Luma, algo a dizer sobre? — Meliah não pareceu satisfeito com os gritos de Antton. — Sei que você tem mais contato do que todos nós.
— Levando que seu último contato foi um pouco vergonhoso — respondeu Luma, rindo. — Dante e Marcus te fizeram de gato e sapato. Mas, isso ocasionou no estado atual do seu irmão. Aliás, como Degol está? Soube que ficaram sem nenhum tipo de atadura para as queimaduras na pele.
O rosto de Meliah parecia fundo em lama, quase escondido entre a indiferença e tristeza que seu irmão se encontrava. Degol Jones foi queimado por algo que Meliah tinha certeza de ter sido eletricidade, mas não queria acreditar que alguém tinha esse poder para si.
— O corpo ainda não se recuperou direito. Não temos remédios, nem pomadas. A situação está pior porque metade dos nossos trabalhadores sumiram. E a outra metade que ir embora. Estão com medo do que pode acontecer.
Luma já esperava. Alguns dos moradores do Setor Industrial já tinham se encontrado com ela na semana passada, usavam os mesmos trapos quando o clima esfriava. Meliah poderia ser um ótimo planejador, com seu setor em grande especto de produção em massa, mas era um péssimo gestor de pessoas.
Na verdade, nem Antton ou Meliah eram bons nisso. Luma tinha sua coordenação por meio de outros quatro subordinados, mas nunca ficou sozinha nesse quesito. Eles nunca ouviram opiniões de fora, por isso, duvidava de que tinham ouvido sobre o que acontecia na parte urbana de Kappz.
— Deveria tentar negociar suprimentos — falou sem delongas. — Clara está tendo um ótimo rendimento com recursos. Pelo que me lembro quando fui lá na semana passada, o prédio que estão alocados foi refeito.
— Como assim, refeito?
— As paredes e tetos de cada andar foram reformados. — Luma viu o rosto de Antton se contorcer em raiva. — Ela está criando um tipo de ala para moradores. Degol pode ficar quanto tempo quiser aqui, pelo que já me ajudou, mas não tenho muito a oferecer. Clara tem Simone, que já curou mais gente do que eu já vi de pessoas. Deveria conversar com ela, não acha, bonitinho?
Antton batia seu dedo na mesa. Meliah pensou um pouco, mas não conseguiu responder.
— Acredito que Clara possa estar envolvida em algum tipo de esquema ilícito — disse Antton, de repente. — Não faz sentido ela conseguir reunir tantos recursos. Nós temos gente que não come faz mais de dois dias, e todas as vezes que vou lá, eles estão preparando algum tipo de comida diferente.
— Ela tem pessoas capazes para fazer isso — respondeu Luma. — E o que está fazendo me ofende, Antton. Dante é quem está recolhendo os suprimentos. Já viu como ele trabalha?
— O velhote? Por que eu deveria? É um peso morto.
Meliah e Luma o encararam juntos.
— Vejo que você não mudou nada seu comportamento de antes — disse Meliah, cruzando os braços. — Degol e eu nem chegamos perto de conseguir aquela bateria, e você ainda subestima Clara e eles. Quer saber de uma coisa? Cansei, Antton.
O mais velho dos Jones puxou a cadeira para trás e fez uma cortesia direta para Luma. Segurou sua mão e cortejou com respeito.
— Obrigado por me receber e por cuidar do meu irmão. Estarei partindo para visitar Clara.
Antton se levantou na hora, quase derrubando as xícaras. Sua cadeira, entretanto, tombou para trás.
— Clara não tem nada que possa oferecer, Meliah. Por que se submeter a outra humilhação?
— Não quero ouvir mais de você sobre isso, Antton. — Meliah não se alterou, nem mesmo manteve o olhar constante. Dava pra ver que parecia mais irritado do que triste com a situação atual. — Meu irmão precisa de cuidados, e você nunca me ofereceu nada além de problemas. Irei visitar Clara para uma solução. Meu irmão precisa de um lugar confortável para ficar. Aqui com Luma, ele será mais um peso do que ajuda. Clara pode ter algo a oferecer. Bem mais do que você teria. Não me lembro da última vez que me ofereceu ajuda. A única coisa que pede é para eu resolver seus problemas. Agora, com o inverno chegando, não vou deixar meu irmão sofrendo para você ter sua vingança pessoal.
Luma assistiu Meliah chegar bem perto de Antton e apontar para ele.
— E não ache que se fizer algo aqueles dois vão deixar pra lá. Teve sorte das outras vezes, mas não abuse dela.
I
Dante parou no meio da viela com três mochilas nas costas. O casaco vermelho tinha sido jogado apenas para o braço direito, dando a oportunidade para que as mochilas se prendessem apenas ao esquerdo.
O céu nos últimos dias tinha mudado constantemente. Antes o azul predominante preferiu dar lugar ao cinza escuro. Cada nuvem pesada era arrastada pelos ventos gelados vindo do norte.
— Consegui pegar. — Jin apareceu de uma das casas, com várias sacas escuras. — Foi o que pediram, certo? Meias.
— Isso.
Dante abaixou e Jix subiu no ombro direito dele, se prendendo aos suspensórios. Por mais de duas semanas, eles saíam pela cidade buscando mais suprimentos e recursos. Desde então, Dante manteve-se longe dos conflitos mais internos e gerenciais. Era o único que fazia buscas, e quando retornava, não conversava muito com moradores.
Foi o que determinou quando Jix disse que precisavam dele como um escudo, não como um peso. Pelas ruas, o silêncio era mais reconfortante. Buscar recursos mais próximo se tornou mais complexo a medida que os dias avançavam. Fazia dois dias que sua procura se aproximou do antigo Centro de Pesquisa, mas Dante sequer chegou próximo dele.
Se algum Lagmorato surgisse por ele estar presente, seria uma dor de cabeça e tanto.
— Está ficando tarde — disse Jix o tirando do transe de olhar para o nada. — Quer voltar?
— Eu gostaria. — Ainda fitava o Centro de Pesquisa. As portas fechadas, lacradas por ferro, mas suas paredes e janelas intactas. — Só não entendo como um lugar tão grande não sofreu danos aparentes. É um pouco estranho.
— Sim, eu já tinha reparado. Deveria perguntar a Clara o que tem ai dentro.
Vick, então, soou para eles.
“Emissão de sensores ativos vindo de dentro do edifício. Necessito proximidade para ativar protocolo de rastreamento. Alvo inicial: Pedra Lunar”.
Jix encarou Dante por um segundo e depois o cutucou.
— Você disse que Vick foi quem acessou a bateria. Vamos voltar para discutir sobre isso. Não temos certeza do que tem lá dentro.
Dante recuou um passo, ainda intrigado.
— Certo. Vamos voltar. Vick, marque a posição do Centro de Pesquisa.
O ponto amarelo pulsou e se transformou em um azul. Dante vagueou o olhar mais um pouco. Virou e retornou para “casa”.
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