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    Quando Dante se aproximou do prédio, viu a quantidade de gente que estava na calçada. Algum carro foi empurrado para mais longe, com quase cinco homens arrastando-o. Não avistou nenhum dos dois guardas que Clara tinha designado para fazer a função na rua, mas quando chegou mais perto da porta de entrada, deu de cara com Marcus.

    O atirador saiu bufando e nem mesmo o cumprimentou. Dante passou pela porta com as mochilas e bolsas. Dentro, o hall tinha sido reforçado alguns dias antes. Antes não havia cimento liso, nem pilastras. Clerk tinha feito um ótimo rendimento pela semana, deixando o lugar mais fácil de transitar e também com poucos buracos nas paredes.

    Tinham deixado claro que o primeiro andar era apenas para que as pessoas pudessem subir para as Ilhas Prediais. A aparência tinha mudado, mas a essência de que as pessoas deveriam manter-se no alto para os Felroz não os pegarem ainda era enraizado em suas mentes.

    Quando subiu para o quarto e quinto andar, encontrou com Clerk ajeitando uma maca para os pacientes. Ali, no quinto, Clara tinha deixado claro que seria hospedado para os mais enfermos, crianças passando mal e grávidas. O que Dante não esperava era encontrar Meliah sentado enquanto seu irmão mais novo era realocado em uma maca boa.

    As mãos de Degol Jones tinham sido deformadas, bem escurecidas. A carne ainda exalava o cheiro de queimado, e suas unhas sumiram. Se fosse apenas a pele, Dante entenderia. Quanto mais chegava perto do corpo dele, mais entendia que o que o acertou foi muito além de um simples ataque ou golpe.

    — O corpo inteiro foi deformado. – Sua voz soou de forma grave. Levou a mão ao ombro de Degol e arrastou até o pescoço, onde havia um corte fino da orelha ao tronco. – Ele ainda respira.

    Clara apareceu do outro lado da maca, o encarando. Atrás de si, Simone e Meliah. Dante, no entanto, tocou o rosto de Degol, pressionando sua bochecha para dentro.

    — A carne ainda não está podre. Pode ser restaurada. E os cabelos não queimaram, então, não vai ficar careca quando acordar.

    — Quando acordar? – A pergunta partiu de Meliah. – Acha que ele vai acordar? Vim de bem longe para…

    — Não me importo muito de onde veio, sendo bem sincero. – Dante esticou as mochilas e colocou na mesa ao lado. – Sei que não veio apenas de passagem. Veio pedir que seu irmão fique aqui durante o inverno.

    Meliah nem teve tempo para se explicar. Nem precisava. Era a escolha lógica. Durante a queda de temperatura, o setor industrial onde morava iria se esgotar sem suprimentos e sem pessoas. Pelo que Clara havia dito em uma das reuniões, metade dos seus trabalhadores foram levados embora, e a outra metade estava sem confiança de que apenas Meliah Jones poderia os proteger.

    Dois dias atrás, em uma das suas rotinas, viu um casal de adolescentes tentando se esgueirar para perto do prédio de Clara. Quando Dante os parou, um deles respondeu:

    — Queremos um lugar para ficar, um que não precisamos morrer de trabalhar.

    Poderiam ter ido a Luma, mas ela não teria recursos da parte urbana. Jix também confirmou isso. O velho em suas costas lhe informava diariamente as situações das reuniões, mas não que Meliah e Degol iriam aparecer. Por isso, o velhinho também tinha surpresa.

    — Marcus está irritado por isso. — Jix apontou levemente para Degol na maca. – Deveria ter conversado com ele antes de ter tomado sua decisão, senhora Clara.

    — Não tive tempo. Degol estava ferido demais e o inverno está chegando mais rápido do que eu esperava. Clerk ainda está no quinto andar, mas precisamos que ele reforme debaixo para cima, assim não corremos riscos.

    Dante retirou as duas sacolas da cintura e entregou a mesa de novo.

    — Posso não ter tido a melhor entrega do dia. Aqui está a lista.

    Clara tomou o pequeno papel. Meliah não escondeu a curiosidade consigo e também leu. A cara dele foi mudando, da indiferença para a estranheza, e depois para incredulidade.

    — Ótimo, Dante. – Clara sorriu e esticou a mão para ele. Dante segurou, apertando com carinho os dedos finos dela. – Vai servir para todo mundo. Obrigada, de novo.

    Meliah, então, pegou o papel com Clara, averiguando mais uma vez.

    — Tem muita coisa aqui. – A voz cheia de relutância ao falar. – Como você…?

    — Trabalhando bastante.

    Meliah o encarou e depois balançou a lista.

    — Mesmo que seja algo simples pra vocês, são itens que não temos mais produção faz anos. Onde você está encontrando isso tudo? Poderia ajudar mais do que apenas…

    Dante o olhou de lado, mostrando um sorriso.

    — Ajudar mais o seu povo? Olha, não quero ser rude de novo, mas eu trabalho para pagar minha estadia aqui. Só isso.

    Ele começou a sair, os deixando sozinho. Clara pediu que Meliah entregasse o papel e sentasse novamente. Assim que fizeram, Clara tomou um pouco do silêncio para que seu visitante respirasse e deixasse a pressão de antes desaparecer.

    Clara, que aprendera desde cedo a discernir o tom de uma mentira, viu a verdade estampada nos olhos daquele homem antes mesmo de ele abrir a boca. Era o olhar de um náufrago agarrado ao último pedaço de madeira flutuante em um mar revolto.

    — Por que veio até mim, Meliah? — Ela segurava a própria perna. Demonstrar fraqueza diante do homem cuja riqueza não vinha do antigo dinheiro, mas sim de material seria idiotice.

    — Porque você é a única que pode me entender.

    Clara inclinou a cabeça, os olhos fixos nele.

    — Homens desesperados dizem muitas coisas. Nem sempre a verdade.

    — Nem todas precisam ser – respondeu Meliah, com uma franqueza que a surpreendeu. — Só o suficiente que você me ouça.

    Com um movimento lento de mão, ela indicou que ele continuasse. Não um gesto de ordem, mas de paciência.

    Não era somente o tempo cinzento que tornava a sensação desconfortável. Meliah não era o tipo de homem que fazia um pedido, nem mesmo pediria. 

    — Seja lá o que atacou meu irmão, ainda está a solta. Degol nunca foi o melhor dos homens, mas ele daria a vida por mim, como deu seu sangue e suor pelo nosso setor e por cada alma que ajudou a erguê-lo.

    — Dante sempre insiste que não é grosseiro e repete que não se importa de onde você veio, Meliah. E, sendo honesta, depois de todos os problemas, sinto que ele está certo. Não vai ser sua história que vai me fazer ter pena ou compaixão.

    Meliah recostou na cadeira, encarando o irmão moribundo na maca. O peito de Degol erguia em esforço, cada movimento, quase como se fosse uma luta perdida. O andar inteiro era mal iluminado, lançando as feições exaustas do homem deitado.

    — Há muito tempo, Clara, Luma me disse que você cuidava das pessoas sem ter nada além de sua própria boa vontade. Não sei o que eu poderia oferecer quando meu irmão está nesse estado. A cabeça quente sempre foi a dele. Ele se ajoelharia na sua frente, então, se quiser, eu faço o mesmo…

    — Para quê? Ajoelhar vai trazer seu irmão de volta? Não. Vai consertar o que fez antes? Também não. — Clara inclinou-se mais na direção dele. — Se quer manter seu irmão aqui, Meliah, então vamos falar de negócios. 

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