Capítulo 61: Inverno (IV)
Honra, a palavra pairava sobre Dante como um fantasma, uma sombra que nunca o abandonava. Ele se lembrava dos dias no Campos de Bambu, onde o som dos galhos, que se curvavam ao vento, se misturava ao eco das lições de seu pai.
— A honra é o que nos diferencia dos animais — Render lhe dizia, a voz grave como o trovão, enquanto o fazia repetir as passagens de passos, um a um.
A memória não era ruim apenas porque seus dias eram pacatos, mas por ter o rosto do homem em sua mente. O Sargento, homem de sorriso amarelado e um hálito de conhaque barato, apontando o dedo gordo para seu rosto.
Por mais que seus olhos permanecessem abertos, encarando os primeiros flocos de neve caindo sobre Kappz, as palavras de quase uma década ainda pairavam.
— Nunca vai ser nada. Nada. — A saliva dele voando enquanto gritava ainda parecia viva. — Vai morrer antes mesmo de ser alguém, seu merdinha.
O sorriso torto do Sargento não era de alegria, mas de satisfação. Um lobo que havia se alimentado, deixando o sangue escorrer pela boca. E foi desse jeito no fim, quando Dante manchou os dentes dele com o próprio sangue.
Morrer sorrindo deve ser motivo de honra?
— Encontrei você.
Era Meliah Jones. Vinha com um casaco longo, diferente do que costumava vestir nas semanas anteriores. Teve consciência de que o frio era pior do que imaginava, um onde ele não podia se esconder completamente atrás de suas maquinarias.
O Setor Industrial os acomodaram por tempo demais para mimá-los. Não que Dante se interessava. Queria apenas se manter sozinho em sua vigia solitária.
— A intenção era ficar sozinho. — Dante inclinou-se, pondo os cotovelos na coxa, apoiados. — O que quer?
— Achei que deveria conversar com você. Clara me falou que todos os recursos que foram coletados foram por sua causa.
Ele se sentou ao lado de Dante ignorando todos os avisos para ficar distante. Duvidava que ele saberia ler, Dante riu para si. Não era do seu fetiche mandar alguém ir embora. Só não queria misturar os pedidos de Clara com qualquer outro.
— Conversar comigo. Bom, pode falar. O que aconteceu? Seu irmão está bem?
— Na verdade, ele está piorando. — O mais velho dos Jones retirou um cigarro de dentro do bolso interno do casaco marrom, e colocou na boca. Acendeu com um isqueiro. Dante não via um daqueles desde a capital. — Ele está piorando dia após dia. A febre não cede, os dedos ficam mais escuros dia após dia, e não temos como tratar com nada convencional. Eu tentei, é sério, falar com Antton para ele me dar um pouco da pasta azul que usam para selar os ferimentos dos animais abatidos, mas ele negou também. Disse que estou morando com o inimigo.
Dante soltou uma risada baixa, quase inaudível, como o estalar de um galho seco sob os pés.
— Ele não está errado, está?
— Inimigo ou amigo, todo mundo quer o melhor para as pessoas que protege. — Ele esticou o isqueiro assim que viu o charuto nos dedos de Dante. — Quer? Ainda tenho outro.
Aceitando o isqueiro, Dante acendeu com um trago leve, soltando a fumaça pelo nariz, sumindo pelos ventos frios.
— Gosto de dizer que tenho meus próprios inimigos — continuou Meliah olhando para longe. — Cheguei aqui com Degol faz muito tempo, mas nunca esperei que chegássemos perto de ter o Setor Industrial todo. Os Felroz não foram fáceis de tirar. E tem Sharm, aquele ninho…
Os dois ficaram em silêncio. O que Meliah queria, Dante não sabia dizer. Jogar conversa fora sempre foi algo que gostou de fazer quando estava com Tecno ou Freto, mesmo naqueles dias caóticos, os dois eram sublimes amigos.
Sentia segurança quando caminhava ao lado deles. Agora, em Kappz, Dante não sabia se o que seu coração lhe entregava era aversão. Ali, tudo era… pacato demais.
Nunca vai ser nada. Nunca vai fazer nada.
— Dante?
Ele encarou Meliah depois de ter se perdido novamente.
— Desculpe, estava pensando em outra coisa. — Pegou o charuto e abaixou a mão. — Posso ter sido um pouco rude com as palavras da última vez, mas não mudo meu discurso. Eu não quero saber de onde vieram ou o que fizeram, na verdade, não sou ninguém para julgar o que você acha ou não correto. Quero apenas saber se vai ajudar enquanto estiver aqui.
— Claro que sim — a resposta veio em tom de desgosto e um pouco de raiva. — Sei que meu irmão está passando por algo que não posso simplesmente resolver, mas não vou ficar de mão abanando só por causa disso. Eu sei muito bem o que…
— Pare de falar um pouco.
Não esperava que ele fosse realmente ficar quieto. Dante se levantou com um movimento lento, quase preguiçoso, e arqueou as costas até ouvir o leve estalar de vértebras. Não era um gesto de conforto, mas de um homem se preparando para carregar mais um peso das suas escolhas.
— Clara tinha pedido uma fornalha. Ela quer aquecer o sexto andar enquanto pode cozinhar as carnes que Luma vendeu. Essa fornalha, eu não achei em lugar algum.
Meliah não discordou da suposição, na verdade, manteve-se bem centrado.
— Esse não é um lugar que teria uma fornalha. No máximo, em restaurantes, mas meu irmão e eu fizemos a limpa. Quando estávamos montando a refinaria, pegamos tudo que pudemos daqui.
— E agora, não temos nada. — Mesmo descontente, Dante manteve-se relaxado. — Deixe eu adivinhar, você sabia que ela queria uma fornalha, e sabe onde tem uma. Sabe também que isso vai me custar algo, por isso veio até mim.
Pela expressão de surpresa no rosto do outro, Dante sabia que havia atingido o alvo com precisão.
— Como você… sabe disso?
— Não é diferente de quando minha irmã queria algo de mim, mas não queria falar com meus pais. — Talia sempre o procurava no meio da noite para que ele pudesse pegar algo pra ela do lado de fora, mas sua mãe nunca deixava ela ir porque era perigoso. A lembrança fez Dante sorrir. — No caso, você quer algo que Clara não pode saber, e veio até mim pra isso. O que é?
Meliah baixou os olhos. Tentou esconder o desconforto, mas suas mãos inquietas o traíam, tremendo levemente enquanto ele lutava para encontrar as melhores palavras.
— Foi há alguns meses. Muita gente disse que viu um grupo andando do lado de fora de Kappz. Não era gente daqui, e nem de GreamHachi, eram de fora mesmo. Eu… encontrei com um deles, um homem bem velho, que disse que existia um objeto que poderia curar todas as doenças, feito de algo chamado Energia Cósmica.
Cada dia que passava, Dante tinha mais certeza de que eles pouco sabiam sobre a Energia Cósmica. Um povo que não se preparava para a luta e sim para sobreviver. Esquecia desse fato às vezes.
— Uma pedra curativa, hein? — Dante não fez desfeita da informação. — E qual o nome dela?
— Ele chamava de Ma’ns Pessas. Eu não entendi direito, admito. Ele falava uma outra língua, mas a filha dele, uma garotinha linha, disse que ela tinha outro nome. — Meliah fez uma pausa e respirou fundo. — A ‘Pedra Lunar’.
Vick não havia mencionado algo sobre essa pedra antes? Dante franziu a testa, puxando a memória com cuidado. No Centro de Pesquisa, ele se lembrava claramente das palavras:
“Emissão de sensores ativos vindo de dentro do edifício. Necessito proximidade para ativar protocolo de rastreamento. Alvo inicial: Pedra Lunar”.
Então, era disso que se tratava?
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