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    Marcus arrumava sua carabina. Vestia a verde-escuro que tanto protegeu durante os anos. Essa vestimenta sempre lhe deu a sensação de conforto e segurança, mas nunca de esperança. Dessa vez, diferente de todas as outras anteriores, ele se arrumava abaixo do térreo, no nono andar.

    O teto e o chão do salão haviam sido remodelados pelas mãos habilidosas de Clerk. “O Construtor”, assim o chamavam, embora ele nunca parecesse prestar atenção aos títulos que lhe atribuíam. Marcus, por outro lado, achava graça. Havia algo de irônico no fato de o apelido ter se espalhado como fogo em palha seca, quando o próprio Clerk não dava a mínima. Talvez fosse isso que tornava o nome tão apropriado — um homem que construía mundos com pedra e madeira, mas que jamais se preocupava em erguer um pedestal para si.

    Assim que Marcus terminou de arrumar sua arma, outras pessoas adentraram. Era Clerk, levando sua esposa grávida para uma das camas que tinha arrumado, e a colocando deitada. Marcus ficou observando ele ajudá-la, e depois abraçar a própria filha, tocando a barriga de sua esposa.

    A sensação retornava a ele como uma maré, lenta, inevitável, trazendo consigo cada detalhe, cada sombra do que havia se perdido na maré das lembranças.

    — Marcus — um dos ajudantes do terceiro andar apareceu da porta —, Clara está te chamando lá pra cima.

    — Ah, certo. Já estou indo.

    Ele pegou as duas pistolas e alocou novamente no coldre, dando as costas para o andar e subindo. Os degraus foram uma das poucas partes do prédio que não tinham sido reconstruídas por serem mais demoradas.

    Lá em cima, Clara esperava junto de Jix e Simone. Os três sentavam na cadeira, observando um mapa esticado. Quando se aproximou, Clara ergueu o olhar, e apontou para a mesa.

    — Conseguimos.

    Marcus detestava adivinhas.

    — Conseguiu o quê, senhora?

    — Meliah disse que vai trazer cerca de seis fornalhas para colocarmos no térreo. — A voz carregava um tom casual, mas a verdadeira emoção estava estampada no rubor que tomava suas bochechas, quente e vivo, desafiando o frio cortante ao redor. — Eles vão trazer mais vigas, vamos poder trabalhar também os pisos.

    — Essa é uma ótima notícia.

    Clara ainda citou as vigas, a fiação elétrica e um sistema hidráulico. Meliah simplesmente estava disponibilizando todos os seus recursos sem ao menos pedir nada em troca? Degol poderia ficar no sexto andar sendo tratada por Simone, mas isso alguma hora ia terminar. Uma hora o caçulo dos Jones acordaria ou dormiria para sempre.

    E isso era o que atormentava Marcus também.

    — Muito generoso — completou com deboche. — E o que ele pediu em troca?

    — Para ser sincero — Meliah apareceu subindo as escadas com outros dois dos seus homens. — Não pedi nada em troca. Meu irmão merece um lugar para descansar, então, eu decidi que… o ideal seria entregar o suficiente para que possamos estar a par.

    Marcus não gostou do que via. Meliah estava sorridente demais, animado demais. Pra quem tinha o irmão enfermo, ele doava recursos demais para querer compensar sua estadia. Marcus sabia, mais do que ninguém, que o valor de algo nem sempre estava naquilo que se dava, mas naquilo que se mantinha oculto. E Meliah, apesar de todo seu sorriso, estava cheia de segredos.

    — Pode falar — anunciou Marcus confrontando-o. — Por que está fazendo isso? Não vamos te entregar nada.

    — Calma aí. — Clara segurou o braço de Marcus, o puxando com leveza. — Ele está ajudando, Marcus. É suficiente, por agora. As pessoas estão ficando mais animadas, teremos um pouco mais de conforto. Luma também disse que deve vir passar uns dias com a gente.

    Marcus puxou o braço dela com um gesto firme, querendo despregar o toque que o prendia àquela sintonia desconfortável. Friamente, encarou Meliah antes de erguer seu dedo e apontar para ele.

    — Não confio em um ladrão. Não se acomode demais, seu irmão uma hora vai acordar… — e viu o sorriso na cara dele. Nem mesmo o respeitava dentro da sua própria casa. — ou não. Quem sabe o que vai acontecer com ele, não é? Preste bem atenção em como fala com quem está abrigando você e suas pessoas.

    O sorriso de Meliah murchou instantaneamente. Aquelas palavras o machucaram, fazendo sua expressão se esvair pouco a pouco.

    — Marcus — Clara reagiu na mesma hora, o chamando alto. — Está com merda na cabeça? Ele está nos ajudando.

    Ele virou para ela, avançando em passos pesados. Clara foi obrigada a recuar dois passos, tateando a mesa atrás de si, ficando presa entre ela e Marcus.

    — Perdeu o juízo? — suas palavras saíram baixas, mas medrosas. — O que está fazendo?

    — Estou te mostrando que as pessoas são o que são. Ele nunca veio aqui prestar ajuda. Nunca veio ver se tínhamos condições. — Tocou a testa, no lugar onde uma ferida antiga era vista ainda. — O irmão dele me acertou, eles zombaram da gente, disseram que iam nos matar. E quer que eu aceite assim? Eu lembro muito bem como era perder pessoas. Foi essa lembrança que me fez ficar vivo, agora você traz as pessoas que te apontaram armas para dentro da minha… da nossa casa. É assim que quer continuar?

    As vozes se elevaram ao mesmo tempo. Meliah e seus homens começaram a gritar, os moradores não gostaram da atitude de encurralar Clara. Simone ficou de pé, gesticulando para que parassem. Até mesmo cachorros latindo era possível de ouvir contra aquela atitude.

    Marcus sentia a respiração pesada. O peito parecia apertado, pressionado contra a própria pele. Seus olhos focavam nos de Clara, e ela exalava medo. Sua feição recuada, o corpo todo acuado. Então, os sons todos morreram de uma só vez.

    Ele abaixou o olhar, levando a mão à cintura. Segurava o cabo da arma.

    — Marcus — Jix disse, as mãos erguidas em um gesto instintivo, como se tentasse afastar não só as palavras, mas a tensão no ar. Seu rosto estava marcado pela aflição, e sua voz falhou momentaneamente antes de continuar, mais suave, quase um sussurro. — Não precisamos disso, está bem?

    Clara segurou o ombro dele e gentilmente o empurrou para trás. A pressão no seu peito parecia ter subido para sua cabeça. Ele não sabia o que fazer. Tinha feito algo errado. Não era para ter segurado a arma. Nenhum deles era o inimigo. Não precisava se preocupar…

    Homens como Meliah o atormentavam desde sempre. Ele não queria aceitar. Era errado.

    — Jix, comigo — ouviu a voz vindo de suas costas. — Marcus, também. Estamos saindo para uma expedição.

    O atirador ergueu a cabeça finalmente. Dante passou por ele, esticando a mão para o velhote sentado, e o puxou para suas costas, prendendo no suspensório. Quando viu Dante o encarando de lado, a vergonha o obrigou a abaixar a cabeça.

    — Pare de se lamentar. Quer proteger sua casa de pessoas que nunca fizeram bem a você. — E encarou os demais ao redor. — Esse é o desejo que carrega hoje. Gritar e espernear ajudou em algo?

    Simone ergueu a voz, claramente irritada.

    — Meliah está nos ajudando mais do que pedimos.

    — Tem certeza disso? — Dante colidiu seu olhar contra eles. — Marcus está protegendo o que acredita. Se um homem que sei que é cruel entra na minha casa e minha família o recebe sem levantar da mesa ou questionar suas atitudes, então eu seria o errado?

    Clara rapidamente tomou a voz para si, puxando a atenção ao se aproximar.

    — Sei que é um pouco complicado de entender. Mas, é a primeira vez que temos tanto. Esses dutos, as fiações, tudo vai melhorar o prédio. Poderemos finalmente ter um lugar dedicado às pessoas. Longe do frio, Dante. Longe do medo.

    — Eu entendo.

    Simone ergueu a voz.

    — Não entende. Veio de um lugar onde tinha tudo, não era? — sua voz chegava às pessoas que subiam as escadas para entender o que acontecia. — Como sabe se nunca precisou de nada? Vamos, conte sua história agora. Diga que Marcus está certo, mas não diga que sabe o que nós sentimentos.

    Irada, Clara olhou pra ela.

    — Está falando sério? Nós não precisamos disso. Dante tem nos ajudado esse tempo todo, sozinho.

    Simone balançou a cabeça, passando pelo lado da mesa, sua expressão ficando mais sombria.

    — Sei que ele não quer ficar. Desde o começo, eu sabia que ele não estava sendo sincero. Eu vejo ele conversando sozinho durante a noite, mexendo na bateria. Está pensando em forjar um portal de volta para casa. Nunca pertenceu a esse lugar. Kappz nunca foi o objetivo dele.

    Marcus e Clara ficaram surpresos pela expressão de Dante ter ficado risonha.

    — Parece que você descobriu o óbvio. — Dante suspirou. — Tenho uma família que precisa de mim em outro lugar. Sou o Recruta de Dalia, venho da Capital. Quer que eu vá embora, senhora Simone? Devolva tudo o que eu entreguei primeiro.

    Ele deu uma risada debochada.

    — Não pode, não é? A sorte de vocês é que eu sei honrar uma dívida. — E brandiu a cabeça, num gesto ofensivo contra Meliah. — Agora que conseguiu criar esse caos todo, pense no seu irmão e no seu pedido. Não consegue sequer ficar sem fazer um alarde?

    Seu ombro foi tocado por Jix. Marcus encarava Dante ouvir algo do velho em seu ombro e virar. Ele começou a caminhar pela ponte de madeira que ligava os prédios, no meio do caminho, chamou:

    — Vai ficar ai ou vai vir?

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