Índice de Capítulo

    Marcus inspirou profundamente ao ouvir a pergunta, como se tentasse absorver a calma que lhe escapava. Com os olhos fechados por um momento, levou a mão ao rosto.

    — Eu… tenho uma opinião não muito convencional. Na verdade, desde que Clara me disse que eu deveria deixar um pouco eles de lado, eu… tento não pensar tanto para focar nos meus problemas.

    Dante concordava com ele. Só não esperava que apontar uma arma para a cara de uma pessoa que havia acabado de conhecer fosse ‘não pensar tanto’. Claramente sua decisão foi tomada sem hesitação, sem reflexão.

    O que GreamHachi tinha feito a Marcus, ele ainda não tinha superado.

    — A cidade é enorme — disse Jix, interrompendo os dois. — Eu conheci quando viajava. Todos os andarilhos diziam que eles expulsavam as pessoas, mas que são bem tecnológicos. O portão deles é revestido de cobre, e quando alguém o toca, uma corrente elétrica queima seus ossos.

    Prestes a dizer que Jix contava histórias, ouviu de Marcus que era verdade.

    — Clara e eu conhecemos GreamHachi por já tentamos ir até lá. Tentei por muitos anos ser aceito. Levava meu pai até lá para que pudessem ajudar com a doença dele, mas passei praticamente minha adolescência inteira cuidando dele em uma tenda do lado de fora, num corredor longo cheio de matagal. Meu pai, um dia, mandou eu ir atrás de água. E quando voltei de lá, nunca mais o vi. As pessoas disseram que meu pai estava fraco demais, por isso, ele…

    Então, era a morte. Dante sentiu a tristeza dele como uma onda turbulenta. Foi uma sensação quase palpável, algo que ia além das palavras, como se a melancolia estivesse transbordando dos olhos de seu amigo, mesmo que ele tentasse escondê-la. Um aperto no peito de Dante o fez perceber que aquela tristeza não era apenas de quem a carregava, mas também de quem estava por perto, afetando-o de maneira profunda e inexplicável.

    Isso era o motivo de Marcus odiar aquele lugar.

    — Marcus. — Esperou que o atirador erguesse a cabeça. — Seu pai teria orgulho. O legado dele continua em você, mas não deixe tudo ser jogado fora por algo que você pode controlar.

    — Eu sei. Eu sei — sua voz baixa. Levou a mão ao rosto mais uma vez, virando de costas. — Desculpe, eu só preciso de um tempo.

    Um soluçar seco deu a entender que Marcus chorava em silêncio. Ele não se moveu em nenhum momento, mas Dante pôde observar sua mão esquerda tremendo ligeiramente. Não queria mais continuar fazendo-o se lembrar das piores recordações que tinha, era cruel.

    — Eles nunca deixaram ninguém entrar porque são uns merdas. — Marcus levantou a cabeça, falando firme e forte. — Sempre me chamavam de ‘Impuro’. Bateram no meu pai e gritaram que ele era nojento, que vivia no mesmo lugar que os Felroz. Aqui, na cidade de Kappz, todo mundo é um ‘Impuro’ pra eles.

    — Ah, então vem daí o termo. — Jix compreendeu na hora alguns fatores. Seus olhos brilharam com uma compreensão rápida, quase instintiva, enquanto sua mente começava a juntar as peças do quebra-cabeça. — É por isso que os andarilhos diziam que deveriam se banhar no Lago Grow, ao norte.

    Marcus assentiu.

    — O lago tem uma fama de que era o lugar mais puro da região inteira. Lá, longe dos Felroz, eles teriam chance para serem limpos por alguns Xamãs, vindo da cidade de GreamHachi. — O rosto dele endureceu na hora, como se a raiva transbordasse no lugar da antiga tristeza. — Malditos parasitas. Malditos, malditos. Enganam todos que vão, todos.

    — Como assim?

    — Essa fama de lago que limpa as impurezas, eu ouvi quando era muito mais novo, antes de perder meu pai. Foi quando perdi minha mãe e irmã.

    Dante realmente detestou ter perguntado sobre o lugar. Cada uma das respostas de Marcus deixava claro seu ódio por GreamHachi. Sua raiva duraria a vida toda, acreditava nisso. Mas, não esperava que esses homens que lutavam para serem ‘puros’ tinham tanta merda por debaixo do tapete.

    — Como as perdeu, menino? — perguntou Jix com tanto pesar na voz quanto Marcus no rosto. — Como eles te tiraram tudo?

    — Foi em um dia de sol. Minha mãe decidiu sem meu pai que levaria minha irmã para se limpar. Havia um boato de que as mulheres poderiam entrar para aprender a tricotar se fossem limpas. Subiram o norte inteiro até o lago, e eu fui atrás, escondido. Lá em cima, vi a fila de pessoas que queriam se lavar. E esperei até que minha mãe e irmã fossem levadas para dentro do lago. Lá… elas…

    Os olhos de Marcus tremularam. Sua boca sibilava, sem conseguir terminar. Sua cabeça abaixou e levantou, mas quando encarou Dante, o velhote se aproximou e o abraçou. Dante passou os braços por trás das costas dele, apertando enquanto ouvia um choramingar.

    Ele é forte, muito mais forte do que eu.

    Aguentar ver a irmã e a mãe sendo mortas de uma maneira tão brutal e ainda permanecer vivo para contar sua história. O pai assassinado sendo chamado de ‘Impuro’, e Marcus carregando seu legado. A arma levantada de um atirador não deveria sequer hesitar.

    Ele questionava a si mesmo.

    Jix também passou a mão na cabeça de Marcus, com lágrimas nos olhos. Dante não tinha ideia de como era perder alguém, ainda mais todos eles.

    — Desculpe por tocarmos nesse assunto, rapaz — disse Jix. — Desculpe mesmo.

    O abraço permaneceu por mais tempo. Dante não queria soltar Marcus, mas ele não chorava ou soluçava mais. Parecia cansado, o corpo mais rígido. As memórias causavam dor e sofrimento, mas traziam o peso que cada um tentava afastar por anos.

    Por isso, não ligou dele ficar ali.

    — Jurei vingar todos eles — sussurrou Marcus. — Jurei que mataria aqueles homens com minhas próprias mãos. Minha família podia estar viva, eles podiam estar aqui. E eu perdi… perdi todos eles por um sonho de viver melhor.

    Dante o abraçou mais. A tristeza da voz dele era recheada de raiva e rancor, dava pra sentir o aperto de sua mão na capa. Marcus não queria apenas desabafar, queria ser ouvido, queria que sua história fosse contada.

    Essas pessoas de GreamHachi fizeram com ele o que um homem teria feito com a sua família no vilarejo. E Dante não hesitou em matá-lo. Uma vida pelas suas três mais preciosas. Seria o mesmo que tratar sangue com sangue, e ele não podia julgar um homem que queria vingar aquilo que lhe foi tirado.

    Havia dito a ele que não levantasse sua arma para alguém desarmado. Ainda quer pregar moralidade sem ao menos conhecer, o pensamento lhe causou certa raiva de si. Ainda segurava Marcus, como um pai realmente abraçava o filho, e Jix tentava ser o mais delicado, dizendo coisas gentis.

    Nesse tempo todo, Dante tinha visto o lado errado do conflito.

    — Meliah Jones não é amigo — disse para os dois. — Nós iremos pegar a Pedra Lunar e mandaremos os dois de volta para o lugar que vieram. Não importa mais. Depois disso, melhoraremos aquela cidade nós mesmos.

    Marcus se afastou depois de ouvir e não deu tempo para seu rosto ficar descoberto. Jogou a malha esverdeada por cima da cabeça, e encaixou o óculos térmico em frente aos olhos. Suas duas mãos agarraram a carabina, e esticou-se de forma ereta.

    — Positivo, senhor.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota