Capítulo 70: Retornando de Mãos Cheias (I)
— Tudo pronto. — A voz firme de Seleri rompeu o silêncio enquanto ele segurava a corda com força, puxando-a para ajustar a tensão. Ao seu lado, Bit Boy trabalhava com a mesma eficiência, suas mãos ágeis garantindo que cada nó estivesse perfeitamente preso.
Juntos, eles levantaram a barraca, o pano grosso se esticando e formando um abrigo improvisado. Não era apenas funcional, mas cuidadosamente planejado.
Seleri prendeu as escadas contra o tecido resistente e Bit Boy seguia ajustando as emendas. O garoto tinha talento para produzir materiais de alta classe, e fazia sem ao menos reclamar de seu posto. Ele era eficiente, Seleri acreditava que mais do que até mesmo ele.
A barraca, que antes parecia pequena e desajeitada, agora começava a se transformar em um espaço seguro e protegido.
Seleri parou por um instante, avaliando o trabalho com um olhar crítico, antes de dar um breve aceno de aprovação.
— Está estável. Isso vai aguentar.
Os dois terminaram ao mesmo tempo que Dril retornou do meio da mata. Ela arrastava um javali, o animal tinha sido ferido na nuca, um golpe seco que nem mesmo drenou sangue. E pela forma como Dril o puxava, era bem mais gordo do que o último.
Numa ordem direta de Seleri, Bit tocou o chão, uma onda de Energia Cósmica começou a se espalhar, como um pulsar de luz invisível que vibrava pelo ar. À medida que seus dedos subiam, algo começou a tomar forma. Primeiro, era apenas um contorno difuso, como uma sombra esculpida no vazio. Então, gradualmente, a estrutura de madeira começou a surgir.
A mesa se materializava com detalhes intrincados — as tábuas eram robustas, sem marcas aparentes.
Quando a mesa finalmente se completou, Bit baixou a mão com cuidado, e a energia que a sustentava pareceu se estabilizar. Ele deu um passo para trás, admirando o objeto com uma expressão de leve cansaço, enquanto Seleri se aproximava para inspecionar o resultado.
— Bom trabalho — murmurou ele, aprovando com um aceno breve.
Dril jogou o javali em cima da longa mesa.
— Ai, estou cansada. — Puxou um caixote perto da barraca e usou como banco perto da mesa. — Siny ainda não voltou? Achei que ia demorar mais do que ela.
— Ainda está verificando o lugar. — Seleria ergueu o facão feito por Bit dias atrás. Ele ainda ficava impressionado com a perfeição das criações do rapaz. — Temos tempo até chegarmos em Triscon.
Dril deu de ombros, não se importando. Apenas deitou na parte da mesa não tomada pelo animal.
— Parece meio triste, Seleri.
A faca ainda vibrava com a luz do sol, mas ele via seu próprio reflexo. Os cabelos negros e os olhos fundos. A barba grande, e uma boca cortada pelo frio do começo do inverno. Não lembrava da última vez que tinha se visto em algum reflexo, mas não foi uma visão reconfortante.
— Hoje não é um bom dia. — Ele ergueu a faca e desceu contra o pescoço do javali. — Na verdade, é um péssimo dia.
I
— Vai demorar um pouco mais para irem embora — Marcus dizia às pessoas sentadas. — Onde moro, a senhora Clara vai tomar conta. Tem lugar para todo mundo. E podemos levar tudo que precisam.
Foi um pouco difícil de explicar a eles que Clara nunca precisou de nada, nem de pagamentos e nem de suprimentos. Essas pessoas foram exploradas, tanto que se recusavam de qualquer maneira a aceitar ficar em um lugar sem terem algo a oferecer.
Não os condenava pelos pensamentos. GreamHachi tinha regras, mas como eles iriam entrar sendo que nasceram fora dos portões da cidade?
— Nós fizemos um acordo — respondeu uma das mulheres segurando uma pequena bolsa, protegendo seus únicos pertences com completa ferocidade. — Eles nos dariam um lugar, um pedaço de terra. Nos prometeram um lugar para lavrar.
— Ah. — Marcus compreendeu na mesma hora. — O Aquário Feudal.
— E eles nos pagariam — outro disse, mais amedrontado. — Mas, quando viemos para cá, entendemos que nunca nos dariam isso. Aquele cara ficava nos chamando de Impuros e Manchados. Ele matou um amigo meu na semana passada.
Então, eles ainda enganavam os habitantes das cidades somente para ter mão de obra gratuita. Ofereciam casa, um pedaço de terra e comida. Mandavam irem de uma cidade a outra para terem seus próprios recursos, e quando chegavam lá, os descartavam do lado de fora.
O medo de serem devorados por um Felroz a noite era menor do que não ter um lugar seguro.
O Aquário Feudal tinha esse nome por uma razão simples, mas cruel: apenas aqueles que nasciam dentro da cidade eram dignos de usufruir de suas águas, de sua segurança, de sua riqueza. Um privilégio fechado, reservado para uma elite que se alimentava da exclusão, deixando para trás todos os outros, os que estavam à margem, os que não nasceram dentro de seus muros.
Esse nome martelava a cabeça de Marcus sempre que ele pensava em sua família. Ele não era diferente de tantos outros que olhavam de fora, ansiando por algo que parecia tão perto, mas que sempre estaria fora de alcance.
Assim ele permaneceu até alcançar a idade adulta, quando se encontrou com Clara.
Ela não era parte daquela elite que controlava o Aquário Feudal, mas tinha algo que Marcus nunca soubera como buscar: uma visão do mundo além daquelas paredes, uma ideia de que talvez houvesse algo mais, algo diferente, algo possível.
Foi com Clara que ele finalmente encontrou uma razão para olhar além do que o Aquário representava. Mas, à medida que o tempo passou e a realidade se impôs, ele começou a se dar conta de que o que mais desejava era justamente o oposto de tudo aquilo que um dia almejou.
O Aquário Feudal claramente nunca abriria suas portas para ninguém, mas ele não seria igual.
Não por ele, mas porque mostrou que era possível viver no meio do caos: Dante.
I
Foi uma viagem distante. Dante tinha demorado para chegar ali apenas com Marcus, agora, com aquela quantidade de gente o seguindo a passos cansados, ele não ousaria acelerar o ritmo. Quando buscou Marcus na direita, deu um breve aceno de cabeça.
O atirador respondeu erguendo a mão.
— Ótimo. Estamos chegando.
Suas palavras animaram o pessoal que vinha atrás. Eram mais de trinta pessoas, mas que preferiram deixar bastante dos recursos coletados nas caixas justamente porque não valia a pena sofrer para chegar até o abrigo.
Dante não sabia o que Marcus tinha dito a eles, mas foi suficiente para tirarem da cabeça a ideia de que GreamHachi era o lugar ideal. E falando nisso, os rostos deles todos tinham uma grande aflição quando viam Juno andando ao lado deles.
Ela sentia os olhares deles, sentia que tinham medo e nervosismo por estarem no mesmo recinto e indo para o mesmo lugar. Dante não tinha como esconder isso, mas o certo era o certo.
— O plano vai dar certo — disse Jix em seu ombro. — Mesmo que eles não aceitem a garota, ela tem potencial. Se GreamHachi conseguisse colocar as mãos nela, ela seria nutrida com mais raiva e ódio do que já tem.
— Ah, duvido muito disso. — Dante andava com uma mão na cintura e dando uma risada. — Quem sabe o que uma pessoa pode fazer quando não gosta do lugar que está? Uma vez, eu tentei fugir da casa dos meus pais. Tomei uma surra que até hoje tenho marcas. Algumas lições foram feitas para serem aprendidas, mas foi a partir daquele dia que eu entendi que meu pai não me batia porque ele queria, ele me treinava para ser forte.
— E você se tornou.
Dante viu que Juno tinha chegado mais perto, ouvindo sua história. O tédio que ela tinha antes foi substituído por uma curiosidade sem fim. Parecia que algo dentro dela despertou, como se o mundo ao seu redor tivesse se tornado um vasto enigma, cheio de perguntas.
Havia uma fome em seu olhar, uma busca insaciável para entender. O que deveria ser? Dante tinha quase certeza de que era sobre a capacidade que ela possuía, e mais ainda, a luta que tiveram.
— Parece que melhorou. O chute no seu peito não foi proposital, mas eu tinha que pegar firme para não te deixar acertar.
Ela concordou com a cabeça algumas vezes.
— Não está doendo, senhor. Como… você treinou? — ela ficou parada olhando para frente e fez uma cara reflexiva. — É um pouco estranho, mas… quero saber como você ficou assim.
— Assim como? Velho? — Dante deu de ombros. — A idade vai chegando e temos que aceitar que somos todos reféns dele.
— Não, não. Como ficou forte, senhor. — Juno apontou na direção de seu braço. — Como aprendeu a usar sua força daquele jeito?
Ah, a sede por conhecimento da Energia Cósmica. Dante já teve seu tempo de aprendizado. Ele se lembrava claramente de como seu pai o ensinou a usar a Energia Cósmica. As lições não eram suaves nem cheias de carinho, mas duras e implacáveis.
A cada movimento, ele ditava as regras do que Dante poderia ou não fazer com sua habilidade, sempre limitando seu potencial, sempre tentando moldá-lo dentro de um espaço controlado.
— Você pode fazer muito mais do que isso, mas é preciso saber quando e como usar. A energia não é uma ferramenta para se exibir, é uma força que exige respeito — dizia ele, com aquele tom que não admitia discordância.
Agora, ao olhar para Juno, Dante percebia o mesmo brilho de curiosidade em seus olhos, uma busca implacável por entender e dominar algo que parecia impossível de ser compreendido. Ele não podia negar que a sede dela o lembrava de um tempo em que ele também ansiava por mais. Mas também sabia que esse desejo, se não fosse guiado corretamente, poderia consumir alguém, assim como fez com ele por tanto tempo.
— Eu posso te ajudar, se quiser — arriscou a dizer em um tom brincalhão. — Mas a única forma que eu aprendi foi apanhando, então, você vai ter que sofrer como eu sofri com meu pai. O que acha?
— O senhor vai me ensinar mesmo?
Juno nem parecia acreditar.
— Claro que sim, por que não? Não é tão complicado, só precisa de tempo. — Ele apontou para cima. — Olhe para o céu. O Inverno está chegando. E esse velho aqui no meu ombro também me ensina, sabia? Jix é meu tutor.
Juno encarou Jix, e fez uma reverência um pouco exagerada e bem embaralhada.
— Parece que ela tem um parafuso a menos — disse Jix, rindo. — Bem parecido com você, Dante.
Dante desviou o olhar e continuou em silêncio, suas próprias memórias e sentimentos estando em conflito. A palavra de Jix, embora leve, parecia se agarrar a ele de uma maneira estranha, algo que ele não podia simplesmente ignorar.
Até porque, se Juno fosse realmente parecido com Dante, então ela teria os mesmos problemas que ele em querer aprender.
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