Capítulo 73: Cartas
Talia caminhava pelos corredores do Hospitaleiro com passos firmes, que ecoavam suavemente nas paredes frias de metal. Sua farda negra, impecavelmente ajustada ao seu corpo, parecia feita sob medida, cada costura destacando a precisão e o profissionalismo exigidos pelos Comandos. O tecido era rígido, mas confortável, um reflexo da disciplina militar que moldava cada aspecto de sua aparência.
A boina, posicionada perfeitamente em sua cabeça, trazia no centro o pequeno símbolo de uma estrela prateada. O brilho discreto do emblema reluzia sob a luz artificial dos corredores, uma marca de sua patente e do respeito que carregava consigo. Seus cabelos, bem presos, não deixavam espaço para desleixo.
As botas engraxadas completavam o uniforme, reluzindo como espelhos. Cada passo parecia meticulosamente ensaiado, o som das solas ecoando com a precisão de um metrônomo. Talia era o exemplo ideal de como um soldado deveria se portar — não apenas pela aparência, mas pela postura ereta e o olhar afiado, que capturava tudo ao seu redor com atenção meticulosa.
Os corredores do Hospitaleiro eram silenciosos, exceto pelo murmúrio distante de conversas e o zumbido do maquinário pesado vindo do lado de fora. Talia mantinha o ritmo, cada movimento demonstrando que ela estava em total controle, mesmo quando seus olhos analisavam o ambiente com um cuidado calculado.
A entrega ao Correio era apenas o primeiro passo do dia; depois disso, teria que se apresentar ao Comandante Sinali, um encontro que sempre exigia sua total atenção.
Enquanto cruzava o pátio interno, o sol pálido refletia nas superfícies metálicas ao redor, criando um contraste entre a frieza do ambiente e a atividade dos recrutas que se moviam em todas as direções. Muitos deles pareciam perdidos, suas expressões revelando a confusão e o nervosismo típicos de quem ainda não tinha encontrado seu lugar. Talia observou a cena por um instante, os olhos fixando-se em um grupo que tropeçava nas próprias ordens.
Ela não pôde evitar um leve sorriso. Eu já fui uma deles, pensou, lembrando-se de suas próprias primeiras semanas no Comando. Um inferno — era a única forma de descrever. Cada dia parecia uma batalha interna, e não apenas pelas dificuldades do treinamento, mas pela sombra que a situação de Dante lançava sobre sua mente.
A lembrança foi um golpe rápido e amargo. Dante, com sua postura sempre firme, mas carregada de um peso que ela não conseguia aliviar. Aquele tempo fora um turbilhão, uma mistura de medo, determinação e incerteza. Ela sacudiu a cabeça, afastando os pensamentos. Não era hora para distrações.
Com passos firmes, Talia seguiu em direção ao Correio, os olhos voltando a se fixar no caminho à frente.
Ao entrar no Correio de Gauls, ela parou na bancada. Hermes estava esperando, com um olhar baixo, verificando alguns documentos. Talia bateu a carta na bancada, o fazendo erguer a cabeça.
— Ah, Talia. — O sorriso dele cresceu, não sendo genuíno, e sim de cansaço. — Outra carta para seus pais?
— Positivo.
Hermes recebeu e colocou em um caixote destinado ao vilarejo. Mais uma das outras dezenas de cartas informando para seus pais sobre a situação que estava, os estudos, os treinos e… seu irmão. Mesmo que ninguém mais falasse do caso, ela não tinha perdido as esperanças.
A primeira missão foi concluída. Ela saiu caminhando para fora do Correios, e fazendo uma curva para a direita, deu de cara com o Oficial Tecno. Segurando dois copos de café, ele ergueu o braço, desviando dela com facilidade.
Talia ficou toda sem graça, justamente porque Tecno era um dos poucos Oficiais que a respeitava de fato. Só não sabia se era porque ela era inteligente ou por seu irmão ter sido parte do esquadrão dele.
— Está com pressa? — eles começaram a fazer o mesmo caminho. Talia aceitou o café. — Comandante Sinali disse que precisava de alguém para receber aqueles dados, lembra? Então, eu conversei com ele sobre você.
Talia não tinha pedido isso a ele.
— Por que fez isso? Agora ele vai pensar que estou puxando seu saco, Tecno. Merda, tenho que falar com ele direito. Esclarecer isso.
— Não. Eu deixei o seu histórico na mesa dele. O Comandante leu e gostou. Disse que você é a primeira pessoa a acertar 90% de todas as composições de dados externas. — Tecno passou na frente dela, a fazendo parar. — Ei, você bateu o recorde de sondagens externas. Temos praticamente todo o mapeamento territorial da Capital concluído. Fazia mais de 70 anos que ninguém tinha feito com perfeição.
Ela suspirou alto, emburrando a cara, e virou-se para ele, a frustração transbordando.
— E eu ganho alguma medalha com isso? — disparou, o tom carregado de sarcasmo, enquanto levantava a carta para que ele visse.
Tecno inclinou a cabeça levemente, um sorriso quase imperceptível surgindo no canto dos lábios. Ele ajustou os óculos com um movimento calculado, como se estivesse deliberando sobre a melhor resposta.
— Se quiser, posso programar algo no sistema para te dar uma insígnia virtual, — respondeu, a voz cheia de um humor seco, mas com aquele toque provocativo que fazia Talia revirar os olhos.
— Ótimo. — retrucou ela, cruzando os braços. — Uma insígnia que ninguém verá. Exatamente o tipo de reconhecimento que eu precisava.
Tecno deu de ombros, mas o brilho divertido em seu olhar não se apagou.
— Bem, não sou eu quem decide o valor das tarefas.
Talia sabia bem que não era ele. Tomou o restante do café e entrou pela porta da frente do Comandos. Seguiu com ele pelos corredores iluminados, passando por vários Soldados e Cabos usando a farda preta. Eles temeram ficar na frente dos dois, dando espaço para passarem.
A porta do Comandante Sinali já estava aberta quando entraram. Os dois prestaram reverência, com suas mãos indo ao peito. Entretanto, o Comandante estava ocupado com outra pessoa.
— Acha que isso é um relatório aceitável? — ele trovoava a voz em um esporro coletivo a três soldados de preto. — Que merda estavam na cabeça para me entregarem um relatório com 20% de incidência magnética? Quem está pagando a estadia de vocês aqui? Estão malucos.
O primeiro soldado tentou apontar, mas Sinali apontou para ele, vermelho de raiva.
— Não ouse falar, garoto. Não teste mais minha paciência.
Talia tinha ouvido rumores sobre esse experimento. O Comando estava sempre explorando novas formas de obter vantagem, mas este em particular chamava atenção por sua peculiaridade. Segundo as informações que chegaram a ela, estavam testando um novo tipo de tecnologia baseada em magnetismo.
A origem do projeto era quase acidental. Durante uma operação de rotina, um Cubo de Comunicação havia falhado inesperadamente, emitindo um ruído em uma frequência fora do padrão. O incidente, que inicialmente parecia apenas um contratempo técnico, teve um efeito surpreendente: alguns Felroz nas proximidades mostraram sinais claros de vulnerabilidade. Movimentos descoordenados, hesitação, até mesmo a perda temporária de controle sobre suas ações.
Agora, o projeto estava em fase de testes. O magnetismo era apenas a ponta do iceberg — a ideia era usar combinações de ondas sonoras e campos magnéticos para explorar ainda mais essas vulnerabilidades. Mas Talia sabia que o Comando raramente divulgava tudo.
Ela foi adiante, ignorando o grito do Comandante. E ele também a deixando passar adiante.
O teste, mesmo à primeira vista, tinha sido realizado de maneira vergonhosamente amadora. Talia mal podia acreditar quando ouviu os detalhes. Os três soldados encarregados da operação pareciam mais interessados em terminar rápido do que em garantir qualquer resultado significativo.
Eles usaram o Cubo de Comunicação em uma distância absurdamente longa, muito além do alcance ideal para gerar qualquer impacto relevante. A frequência, em vez de ser ajustada para variar e explorar possíveis respostas dos Felroz, foi mantida exatamente igual durante todo o experimento. Nenhuma tentativa de modular ou alternar os padrões foi feita, um erro básico que qualquer recruta de engenharia teria evitado.
E, para piorar, não utilizaram nenhuma fonte de Energia Cósmica para potencializar o efeito do Cubo. Era como tentar ligar um gerador sem combustível. O conceito de Energia Cósmica era fundamental em quase todas as tecnologias avançadas do Comando, mas ali, simplesmente, haviam ignorado essa premissa básica.
Talia balançou a cabeça, incrédula.
— Não é de se admirar que deu tudo errado. Eles literalmente fizeram tudo errado — murmurou para si mesma, o tom ácido de sua voz refletindo a irritação crescente.
Talia pensou no desperdício de recursos e no tempo perdido. Se ao menos tivessem seguido os protocolos… Mas não, parecia que ninguém se preocupava em fazer as coisas direito ultimamente.
Ela respirou fundo, tentando conter a frustração. Era mais um lembrete de que, se quisesse ver resultados, precisaria estar pessoalmente envolvida. E talvez, só talvez, mostrar a esses soldados como as coisas deveriam ser feitas.
O Comandante Sinali a escutou, parando de esbravejar contra os três. Talia tomou o lápis em cima da mesa dele, e passou por cima de diversas partes, diferenciando suas partes. Demorou dois minutos, e levantou o relatório.
— Aqui, senhor. Acredito que deve ser melhor desse jeito.
O Comandante tomou e leu. Segundos depois, soltou uma risada triunfante.
— É necessário três de vocês para fazerem o que a Recruta Talia faz, hein, seus imbecis? — Ele abanou a mão para a porta. — Vão, alguém já corrigiu a merda que fizeram.
Os três não sabiam se agradeciam ou xingavam Talia pelo que ela fez. Acertar o relatório de outro soldado era gravemente uma das ações mais imorais para o Comando. E ela nem pareceu se importar, mantendo-se indiferente.
— O senhor queria me ver, Comandante?
— Sim. Sente-se. Tecno, você também, filho.
Os dois tomaram a cadeira, ficando lado a lado.
— Ei, moleques, fechem a porta — Sinali gritou para os Cabos na entrada de sua sala. Assim que o som da madeira colidiu contra a outra, continuou: — Vamos lá, Talia. Isso aqui é melhor do que os Sargentos. Tecno te colocou para ser a primeira estagiária na Composição de Magnetismo, mas não sei mais o que fazer.
— Isso foi um elogio, senhor? — a Recruta realmente não sabia diferenciar quando ele estava sendo sarcástico.
— Claro que é, garota. — Ele jogou o relatório no meio dos outros, empolgado. — Isso aqui é melhor do que todos os meus registros nos últimos seis meses. Bom, eu quero te dar uma bolsa. Algo que possa explorar todos os seus conhecimentos, o que acha?
Talia esperava ser chamada de muitas coisas, mas um convite à bolsa de estudos? Isso era diferente.
Estariam tentando me afastar do Comando?
A ideia cruzou sua mente como uma faísca. Ela sabia que, em alguns casos, os superiores usavam essas oportunidades como um meio sutil de remover soldados problemáticos ou difíceis de controlar.
Não. Não teria motivo para isso. Tecno também estava envolvido. Eles realmente queriam entregar uma bolsa para ela.
— Então, você vai ter aulas complementares durante sua folga. Vão ser duas horas só, como pediu daquela vez, mas você dá conta. Eu sei. — Sinali estava mais empolgado do que ela. — Acha que isso tudo vai te deixar mais entretida com o Comando?
— Eu sou entretida, senhor — sua fala, no entanto, era completamente o oposto disso. — Só estou um pouco confusa. Elisabeth e Fernando são dois dos melhores alunos da minha sala, até melhores do que eu. Por que me escolher?
A pergunta se tornou uma ofensa, não para eles, mas para Talia.
— Está dizendo que aqueles dois são mais inteligentes do que você? — Sinali soltou uma risada. — Está de brincadeira comigo? Eu estou de olho nos seus estudos desde que chegou. Um CR de 9,94 desde que pisou aqui na Capital. Eu quero saber se quer trabalhar comigo, Talia. Se não quiser, eu vou estar perdendo a melhor Cadete nos últimos cem ou duzentos anos que pisa na minha sala.
O Comandante esticou a mão pra ela, num sinal de comprometimento.
— Eu quero fazer você a próxima Comandante.
Dessa vez, o próprio Tecno ficou chocado.
— Aceita minha proposta, Recruta Talia?
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