Capítulo 75: Extremamente Complicado
No meio da neve, dos carros, dos ventos e também da tempestade que caía sobre Kappz, Dante e Juno se arremessaram um contra o outro.
No primeiro dia, Clara havia achado uma péssima ideia treinar a garota naquele clima tão hostil. Mas, como Juno começara a perceber ao longo dos dias, Dante não precisava da tempestade para ser mais perigoso do que qualquer ameaça natural. Ele era uma força em si, dez vezes mais impiedoso e implacável do que qualquer rajada de vento ou avalanche de neve que poderia surgir. Ele não dava descanso, não dava espaço para hesitação. Cada movimento seu era um teste, uma provocação silenciosa, forçando Juno a se adaptar, a aprender, a resistir.
O gelo e o vento não eram mais os inimigos mais temíveis naquele momento. Dante, com sua presença esmagadora, tornara-se o maior desafio que Juno enfrentaria até então. E isso a deixava extremamente excitada.
A Pedra Lunar estava sendo testada por Clerk e outros dois colegas de Meliah, que decidiram fazer alguns experimentos para tentarem diluir a Energia Cósmica para não dar rebote na pele de Degol. Havia um sinal de que a pedra realmente funcionava, porque somente aproximando do moribundo fedorento, ele respirou melhor.
Sem a Pedra Lunar, com suprimentos e água estocados por mais dois meses, a única coisa que ela gostava de fazer era subir para o terraço com um visor térmico que Marcus desenvolveu para lhe dar de presente, e observar os dois lá embaixo.
O aparelho que ele deu era bem mais interessante do que realmente achava. Mesmo que o vento e a neve bloqueassem sua visão normalmente, os óculos térmicos enxergavam além, indo para os dois se confrontando.
Nos primeiros dias, Juno teve até mesmo um pequeno vislumbre do que Dante realmente era. Clara não tinha sequer cogitado que ele pegaria leve com ela. Das vezes que conversaram, Dante deixou claro que seu treinamento foi rigoroso ao ponto de ser surrado do momento que acordava até a hora que ia dormir.
Qualquer coisa diferente disso não seria ele, pensou assistindo a garota usar seus braços para alcançar o ombro do velho. Juno tentava, e muito, só que quanto mais o tempo passava, mais sua percepção se tornava afiada.
Foi no primeiro dia que Clara percebeu aquela estranha sensação de descrença nela. Assim que os dois retornaram, Clara viu Juno entrar e quase cair deitada perto de uma das fornalhas do primeiro andar. A menina suspirava, sua mente nublada, mas Dante gargalhava implicando com ela.
— Aqui. Eu trouxe um pouco de comida pra você. — Clara esticou a pequena cumbuca e sentou em sua frente.
Juno e ela começaram a comer. Clara achou que a menina falaria da experiência, 8 horas no meio da neve tendo que correr atrás de um senhor de idade deveria ser um pouco expressivo. Mas, a personalidade, Juno não falava até você perguntar.
— O que achou?
— Está gostosa. — Não parava de enfiar a colher na boca. — Muito gostosa. Obrigada.
Pelo menos era educada. Clara gostava dela. Parecia uma jovem muito gentil. Bom, se não fosse por quase matar Degol Jones.
— Eu quis dizer sobre Dante.
Ela abriu a boca, começando a entender.
— Ele… é gentil. Muito gentil. Achei que ele ia me matar. — Falava com tanta tranquilidade que Clara achou bem estranho. — E ele sabe mostrar onde estou errando. Ele disse que sou uma merda.
Não se conteve e deu uma risada.
— Típico dele fazer isso. E o que mais?
— Ele sabe parar durante a luta, mas não deixa de me acertar. — Juno levou a mão ao ombro, apertando o músculo e os ossos, depois a testa com os dedos, e o pulso direito e esquerdo. — Sempre me segura nesses lugares. Acho que é porque são os pontos que sou uma merda.
— Não precisa repetir que você é uma merda, Juno. — Clara passou a mão na cabeça dela, e deslizou os dedos pelo cabelo preto e longo. — Acredito que para Dante, você é uma pessoa extraordinária. Ele nunca treinou outra pessoa, pelo que sei. Então, está tudo bem achar que ele te faz se sentir péssima, mas é o jeito dele.
Juno concordou num murmúrio silencioso.
— E conseguiu acertar ele?
— Não. Nenhuma vez.
Ali, Clara entendeu o que Dante estava procurando. Mesmo negando, Juno sorriu. Mesmo perdendo, ela não estava triste, parecia contente.
— E isso te deixou animada?
— Sim, muito. Se eu não acertar, quer dizer que posso fazer amanhã de novo. E ele pode me ensinar mais. — Suas mãos se uniram à cumbuca, guardando-a com carinho. Sua voz muito mais baixa que antes: — E posso ficar mais tempo aqui, com vocês.
Clara finalmente entendeu. Acima de todas as coisas, essa garota era muito solitária. Quando conheceu Marcus, seu coração e mente lhe diziam sempre que não se importasse se estaria no meio de uma multidão ou apenas com ele, nunca se sentiria em completude.
A sensação amarga de não se sentir parte de algum lugar era simplesmente massante, opressora. E quanto mais o desejo de sair aumentava, mais presa ficava.
Entretanto, Dante e Marcus tinham montado a estrutura para ela de uma maneira que todos ali dentro ganharam um lugar para ficar, e Clara ganhou pessoas confiáveis. Marcus demorou algum tempo por conta da sua personalidade afastada, mas Dante… quando o procurou pelo primeiro andar, estava com duas crianças no colo, erguendo enquanto fingia entregá-las para o cachorro.
Era uma brincadeira idiota? Sim, mas era suficiente para arrancar risadas ao redor.
Um poder esmagador dava aos demais o ato de confiar quando algo ruim acontecesse, mas apenas o poder de demonstrar seus sentimentos tão abertamente possibilitava as pessoas de chegarem até seus corações.
Dante havia reparado que Clara o observava, e girou as crianças, fazendo com que acenassem.
— Eles estão falando com você também, Juno — disse Clara.
Juno, inicialmente surpresa, se virou lentamente. Seus olhos encontraram os das pessoas ao redor, que esperavam, ansiosas, pelo seu aceno. A pressão aumentou. As crianças estavam sorrindo, gesticulando com entusiasmo, mas havia algo que a fazia hesitar. Ela, que estava acostumada a enfrentar desafios físicos e situações difíceis, agora se via diante de um simples gesto de interação social que parecia mais complicado do que qualquer rajada de vento ou treino de Dante.
Com um movimento hesitante, Juno ergueu a mão de forma tímida, Quando os dedos tocaram o ar gelado, ela sentiu uma onda de vergonha, e, ao abaixar a cabeça rapidamente, o rosto ficou ruborizado. Não era apenas o frio que a fazia se encolher, mas a sensação de ser observada.
Clara deu uma risada.
O primeiro dia dela tinha sido quente. Dante conseguiu inserir aquela menina nas pessoas sem falar nada, apenas com sua energia acolhedora. E do lado de fora, depois de praticamente três semanas de tempestade rigorosa, os dois ainda batalhavam.
Juno ainda estava animada, tentando ganhar o jogo de pique-pega. Dante, entretanto, mostrou o porquê os Felroz do Reservatório não tiveram nenhuma chance. Ele a derrubava em estilos diferentes, toda vez.
A mão dele se abria, defletindo o braço de Juno. Girava por baixo dos raios que tentavam atordoá-lo, e usava a perna para afastá-la. Mesmo sendo velho, como ele dizia ser, sua elasticidade era perfeita.
Clara tinha visto ele lutar contra o Felroz na cidade algumas vezes, e seu nível de concentração até mesmo treinando uma pessoa era enorme. Juno usou sua habilidade para aumentar a velocidade e tentou tocá-lo de todos os jeitos, mas era em vão.
Dante se esquivava sem sair do lugar. E quando o braço da garota se estendeu demais, ele a segurou pelo pulso, saltou e caiu em cima de suas costas, afundando na neve.
Para Clara, a simplicidade de Dante era o que tornava tão atraente seu estilo de luta. Agora, duvidava que Juno pensasse do mesmo jeito.
— Deve ser extremamente complexo ver que a simplicidade dele o faz tão forte.
— Sim, deve.
Clara virou, vendo alguém que não deveria estar ali. Ela tentou levantar, mas a mão da pessoa desceu contra ela na mesma hora.
Juno teve ajuda de Dante para ficar de pé. Assim que se levantaram, um grito soou vindo do abrigo. Dante reconheceu na hora. E disparou em alta velocidade. Sem ao menos perceber, Juno estava do seu lado, igualando sua velocidade.
Alguém estava caindo do prédio, do nono andar.
— Clara. — Juno gritou. — É a Clara.
Dante olhou para o alto, onde viu a silhueta de alguém.
Foi no lapso de um segundo, toda a energia se converteu na mesma hora. Juno simplesmente ficou para trás, sem ao menos conseguir igualar mais. Dante girou no próprio eixo ainda no ar, e esticou a mão.
Seus olhos e o de Clara se encontraram. O tempo ficou bem mais devagar, Dante vendo o braço dela se esticando. Seus dedos estavam quase se tocando, a distância entre eles era tão pequena que parecia que a próxima respiração seria suficiente para encurtá-la.
Mas então, uma luz vermelha, intensa e penetrante, irrompeu do terraço, interrompendo tudo. Ela cresceu de forma abrupta, uma explosão de cor que parecia engolir o ambiente ao redor. O brilho vermelha incendiou o cenário, a intensidade da luz desorientando Dante por um instante. A conexão entre ele e Clara, a tensão no ar, tudo foi cortado como uma lâmina afiada, e o que antes parecia um momento de cumplicidade se transformou em uma nova ameaça.
O rosto deformado de um homem os encarava. De um lado, a pele queimada, enrugada e escura, como se tivesse sido vítima de um fogo implacável, destruindo a carne de forma irreconhecível. O outro lado, no entanto, era uma obra de metal, como se a carne tivesse sido substituída por um mecanismo frio. As linhas e formas metálicas se entrelaçavam com a pele carbonizada, criando uma fusão grotesca entre a carne e o ferro.
— Você precisa escolher, velho. — As chamas foram disparadas para outro ângulo, de onde Juno vinha.
O impacto foi tão forte que parecia que a própria tempestade, que já caía pesadamente sobre Kappz, foi empurrada para trás, como se o golpe tivesse mudado a dinâmica do clima. O vento uivante foi desviado momentaneamente, como se estivesse sendo arrastado pela onda de força gerada pela energia de Dante. O homem, com sua metade humana e metálica, sentiu o golpe em sua carne deformada, a pressão do disparo reverberando em seu corpo, fazendo-o recuar um passo. Mas não caiu.
O homem, ainda de pé, parecia ter absorvido o golpe, mas a dor em seu semblante metálico era evidente, mesmo que ele tentasse esconder.
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