Capítulo 79: Não seja Idiota
Dante piscou algumas vezes, ajustando os olhos à luz suave que entrava pela janela parcialmente coberta. O calor familiar da mão dela sobre a sua era o primeiro sinal de que não estava mais no campo de batalha, mas em um lugar seguro. Ele respirou fundo, sentindo o corpo pesado, dolorido, como se tivesse carregado o mundo inteiro nas costas.
Clara estava ali, silenciosa. De costas para ele, seus cabelos presos em um coque frouxo deixavam algumas mechas soltas caindo pela nuca. Ela usava um robe branco simples, o mesmo que parecia ter se tornado sua marca registrada. O som da pena arranhando o papel na mesa preenchia o silêncio, ritmado e constante, quase reconfortante.
Ele baixou os olhos para suas mãos. A dela estava pousada sobre a sua, os dedos delicados envolvendo os seus com firmeza, mas de uma forma que não parecia intencional, como se aquele toque fosse natural, automático.
— Bem que eu senti minha cama um pouco pequena – disse ele, sua voz rouca, mas carregada de ironia.
Clara parou de escrever por um instante, mas não se virou imediatamente. Sua cabeça inclinou-se levemente para o lado, e um pequeno suspiro escapou antes de ela responder.
— Você acordou. — Sua voz era baixa, quase um sussurro. Ela voltou a mover a mão, completando a linha que estava fazendo antes de virar o rosto para ele.
Seus olhos o encontraram, e havia algo neles que Dante não conseguiu decifrar de imediato. Era um misto de alívio e preocupação, como se estivesse analisando cada detalhe de seu rosto para garantir que realmente estava ali, acordado e inteiro.
— Você deveria descansar mais – disse ela, num tom gentil, mas bem direto.
— Estou descansando. — Seu sorriso foi um pouco dolorido, mas sincero. — Ou estava, até perceber que você tomou minha cama toda.
Clara arqueou uma sobrancelha, fingindo uma indignação bem grande.
— Sua cama? — Ela soltou a mão dele com delicadeza, apoiando-se na mesa para se levantar. — Não me lembro de você pagar por ela.
Dante riu baixo, mesmo que isso lhe causasse uma leve pontada de dor no peito. Ele se ajeitou na cama, os músculos protestando contra o movimento.
— Tá bem. Você ganhou. Pode ficar com ela. — Ao erguer as mãos, demonstrou rendição.
No entanto, Clara apenas balançou a cabeça, voltando sua atenção para os papéis. Mesmo com as palavras leves, os dois sabiam que havia algo a se discutir. Sobre o ataque nos últimos dias.
— Eu ouvi Vick dizendo que seu corpo não aguentou o tranco. — Ela segurava o lápis, mas sua voz tremulou. — Deveria… cuidar mais de você mesmo.
Dante ficou em silêncio por um momento, observando a maneira como ela mantinha o olhar fixo no lápis, como se evitasse encará-lo diretamente. Ele sentiu um peso diferente nas palavras dela, algo mais do que uma simples preocupação.
Então, era isso.
Ele teve um lapso de segundo, quase hesitando, mas esticou a mão e tocou de leve os dedos dela. Clara parou, surpresa, e olhou para ele. Dante não esperava, mas ela respondeu ao gesto, fechando os dedos sobre os dele com uma delicadeza que contrastava com o frio ambiente ao redor. O calor daquele toque, por menor que fosse, parecia mais reconfortante do que qualquer palavra.
Dante inclinou a cabeça levemente, a voz saindo baixa, quase como um murmúrio:
— Eu vou tentar… por você.
Clara deu um sorriso fraco, mas sincero, enquanto seus dedos permaneceram juntos por mais alguns segundos. Ela então soltou a mão dele devagar, voltando a encarar o lápis, mas algo no ar entre eles havia mudado.
O momento estava bom o suficiente para Dante. A delicadeza no toque de Clara era um alívio em meio ao caos constante. Talvez por isso, quando Marcus entrou no quarto sem aviso, Dante revirou os olhos na hora, o que só piorou seu humor.
O Atirador congelou assim que viu os dois com as mãos ainda encostadas. Seus olhos se arregalaram, e ele permaneceu parado no batente da porta como se tivesse acabado de entrar em um campo minado. Mesmo com a roupa encharcada de chuva e o óculos térmico ainda pendurado na testa, o constrangimento era impossível de disfarçar.
Ele deu um passo para trás, tentando se retirar, mas a voz de Clara o interrompeu antes que pudesse escapar.
— Pode parar aí mesmo, Marcus. Já que entrou, pode falar.
— Não quero atrapalhar, dona — respondeu ele, recuando um pouco mais para o portal de madeira. — Posso voltar outra hora pra… vocês terminarem o que estavam fazendo.
Dante soltou uma risada, quebrando o clima de tensão.
— Ah, ele fica todo envergonhado agora, mas beija a mão de Luma como se ninguém estivesse vendo. Será que também fica todo vermelho quando alguém pega ele flertando?
Marcus girou no mesmo instante, rápido como um disparo, apontando o dedo para Dante e falando alto, sem pensar.
— Isso era segredo! Eu nem faço nada!
Clara levantou as sobrancelhas, claramente divertida, mas com uma expressão de falsa inocência que só aumentava o embaraço de Marcus.
— Se era segredo, por que está irritado, Marcus? — perguntou, inclinando a cabeça com curiosidade exagerada. — Todo mundo sabe que você tem uma queda por ela. Não é nada escondido.
Marcus parecia prestes a explodir, mas não tinha argumentos para rebater. Ele gesticulou inutilmente, murmurando algo ininteligível, antes de virar de costas e desaparecer pelo corredor, ainda com os passos pesados de quem estava completamente exposto.
Dante se recostou na cadeira, um sorriso preguiçoso nos lábios enquanto observava a porta balançar com a saída abrupta.
— E você achou que só eu era péssimo em lidar com sentimentos.
Clara riu, sacudindo a cabeça enquanto recolhia o lápis que havia deixado cair.
— É. Pelo menos você tenta. Eu vou ver o que ele quer, você trate de descansar, está bem?
Dante se ajeitou novamente, escorregando pelo lençol e pondo o cobertor até o pescoço.
— Vou ver se consigo dormir um pouco mais.
Clara empurrou a mesa para a lateral, e se levantou para a porta. Assim que saiu, Dante se manteve sozinho novamente. Fechou os olhos, tentando recobrar melhor a cena do último dia. A dor que sentiu quando deu seu último ataque.
“Limite corporal excedido, Dante. Você ultrapassou o que Jix havia dito, o que ocasionou em um aumento significativo de 2%. Dano aos músculos: 16%. Recuperação em andamento – um dia até a recuperação completa”.
Dante abriu os olhos, então.
— E qual o dano que eu causei em porcentagem ao Duas Caras? — Dante perguntou, a voz carregada de insatisfação. Ele sabia que o golpe tinha sido poderoso, mas algo dentro dele dizia que não havia sido o suficiente. — Ele não morreu. Eu senti isso.
A resposta veio com o tom neutro e calculado de Vick, ecoando no silêncio do quarto:
“Calculando… Dano em golpe: 43%. Conversão Energética abaixo do esperado. A utilização da Energia Cósmica para compor o que faltava danificou pele, órgãos e músculos principais. E não, o golpe não matou. Calculando… chance de Duas Caras estar vivo está em 51%.”
Dante fechou os punhos, a mandíbula travada. Não era o resultado que queria ouvir. Ele precisava ser mais preciso, mais letal. Antes que pudesse se perder nos próprios pensamentos, Vick continuou, como se soubesse o que estava por vir.
“Você ainda condensa o golpe em uma área grande demais. O inimigo não tem como fugir, mas a dispersão reduz a potência. Refinamento será necessário.”
As palavras fizeram sentido, mas apenas aumentaram o turbilhão de dúvidas na mente de Dante. Ele tinha tantas perguntas sobre suas próprias habilidades, sobre o que realmente podia fazer. Mesmo com os ensinamentos do pai, Render, sempre lhe foi dado espaço para aprender sozinho, como se o caminho fosse tão importante quanto o destino.
Mas agora, Dante precisava de respostas. Qualquer uma.
— Vick… — ele disse, quase num sussurro, sentado no canto do quarto com a mente nublada. — De vez em quando meu pai aparece pra mim. Não em sonhos, mas quando estou lutando. Eu… não sei o que é, mas isso me anima. Lembrar dele é algo bom, não é?
A resposta de Vick veio após uma breve pausa, quase como se ponderasse a pergunta:
“A imagem de Render está intimamente ligada à sua postura, à sua batalha interna, de acordo com o que percebo ao ver pelos seus olhos. Seu pai foi um homem muito forte. Não havia ninguém que pudesse superá-lo.”
Dante assentiu, concordando em silêncio. Ele sabia disso melhor do que ninguém.
— Ele é incrível, não é? — perguntou, quase com um sorriso.
“Sim. No entanto…” Vick hesitou, o que era raro. “… assim que me conectei às suas memórias, descobri que a intensidade de Render era menor do que a sua.”
Dante ergueu o olhar, surpreso.
“O corpo de seu pai possuía uma grande diferença: ele era rápido, forte, e treinado ao extremo. Mas, de acordo com as análises que coletei durante suas lutas, o seu corpo está completamente ligado à sua mente. Essa conexão o torna único, e me leva a questionar algo.”
— E o que seria? — Dante perguntou, franzindo a testa.
“Se você não for tão idiota quanto seu pai era quando jovem, então acredito que seu potencial seja muito maior do que eu esperava.”
A resposta arrancou uma risada curta de Dante, mas Vick continuou, imperturbável:
“Não posso medir isso com números, mas posso usar as mesmas palavras que disse a Render quando fiz análises semelhantes: lutar é sua vida.”
Dante inclinou a cabeça para trás, encarando o teto do quarto. As palavras de Vick ecoavam em sua mente. “Lutar é sua vida.” Por mais verdadeiras que fossem, não deixavam de ser um peso que ele carregava, uma expectativa que não podia evitar.
Ele fechou os olhos, sentindo a memória do pai mais viva do que nunca. Render sempre foi uma sombra colossal em sua vida, mas talvez, só talvez, fosse uma sombra que ele poderia superar.
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