Índice de Capítulo

    — Ele ainda não está acordado — Clerk murmurou, franzindo a testa em desapontamento. — Eu tentei de tudo, até mesmo extrair um pouco do líquido da Pedra Lunar, mas nada. Degol ainda está no mesmo estado. Desculpa por não fazer nada.

    Dante ouvia tudo da beira da cama, apoiado contra a parede. A única novidade era saber que ele mesmo tinha passado três dias desacordados. Três dias? Isso explicava a sensação de peso no corpo e a fome que começava a lhe dar pontadas no estômago.

    Marcus foi quem lhe contou mais cedo, e também o que acrescentou algo que ele não sabia como digerir: Clara não saiu do lado dele em nenhum momento. Por mais que ela tentasse disfarçar, havia algo na forma como mexia os dedos no próprio robe ou evitava o olhar direto que entregava sua preocupação.

    — Está tudo bem, Clerk — Clara disse com firmeza, interrompendo o silêncio pesado. Ela ergueu os olhos para o médico e forçou um sorriso. — Você fez tudo o que podia. Nós vamos achar um jeito.

    Clerk ajeitou os óculos no rosto e suspirou fundo, claramente frustrado.

    — Infelizmente, ainda não temos nenhuma informação sobre esses Xamãs que Meliah mencionou. Mas assim que ele voltar, nós tentamos de novo.

    Ele fechou a bolsa de couro com um movimento seco e se retirou do quarto, deixando Dante e Clara sozinhos.

    O silêncio que se seguiu foi mais estranho do que ele esperava. Clara ficou de pé ao lado da cama, o olhar preso à janela, como se evitasse encará-lo diretamente. Os cabelos caíam soltos sobre os ombros, e, pela primeira vez, Dante reparou nas olheiras sutis sob os olhos dela.

    — Ainda não temos como fazer nada — disse Clara virando-se para ele. — Se Degol não acordar, vai ser um saco ter que ficar ouvindo Meliah. Ainda temos mais alguns dias.

    Dante conhecia mais do que eles todos sobre Energia Cósmica, teve certeza quando Jix o informou que metade das pessoas que nasciam fora de qualquer cidade simplesmente não sabiam que possuíam habilidades, a não ser que tenham usado por acidente.

    Dante, por outro lado, cresceu no vilarejo. Um lugar onde a sobrevivência dependia não só da força bruta, mas da habilidade de sentir a energia pulsando em cada objeto, em cada ser vivo, e aprender a manipulá-la com o que estivesse ao alcance. Isso o fazia diferente. Mais preparado, talvez.

    Ele esticou a mão na direção de Clara, a palma aberta, firme, pedindo o frasco sem dizer uma palavra. O gesto foi simples, mas havia uma confiança silenciosa ali, um peso que dizia que ele sabia exatamente o que fazer.

    Clara hesitou por um instante, o olhar indo do frasco para ele. Não era desconfiança, mas uma mistura de curiosidade e algo que beirava a admiração. Ela segurou o vidro por mais um segundo, como se ponderasse sobre o que ele sabia que ela não sabia.

    — Você já viu isso antes, não é? — a voz dela soou baixa, quase como uma afirmação.

    Dante assentiu, sem desviar os olhos dela.

    — Aprendi quando era mais novo, mas não o suficiente.

    Clara soltou um suspiro curto e, finalmente, colocou o frasco na mão dele. O vidro era frio, e Dante sentiu a energia pulsar de forma tênue através dele. Fraca, mas presente. Como uma chama prestes a apagar, mas ainda viva o suficiente para que alguém pudesse reacendê-la.

    — Onde você aprendeu tudo isso? — Clara perguntou, ainda observando-o com atenção.

    Dante girou o frasco entre os dedos, estudando o líquido com um olhar que misturava familiaridade e cautela.

    — Energia Cósmica não é algo que se aprende. É algo que se sente — respondeu, enfim, com a voz baixa. — No vilarejo, a gente não tinha escolha. Minha mãe era uma pessoa bem diferente também, gostava de mexer com poções e ervas, eu aprendi a mexer um pouco.

    Ele ergueu o frasco até a altura dos olhos, como se o analisasse uma última vez. Por mais raro que fosse, ele sabia que aquilo não era a resposta para todos os problemas deles. Energia Cósmica era instável. Poderosa, sim, mas exigia mais do que força para ser controlada.

    — Isso não é só um recurso, Clara — ele continuou, a voz mais firme. — É perigoso, se usado da forma errada.

    Ela o encarou em silêncio.. Talvez, naquele momento, Clara tivesse entendido um pouco mais sobre Dante. Ele esperava que sim. 

    E Dante, por sua vez, sentiu algo que não podia explicar. Um fio invisível conectando-os ali, no meio daquele silêncio carregado.

    Com o frasco seguro em sua mão, ele finalmente deixou escapar um leve suspiro.

    — Vou descobrir o que fazer com isso. Vem comigo.

    Mesmo sem o corpo inteiro, Degol deveria reagir. Sua Energia Cósmica precisava se conectar, fluir como um fio tênue entre o que restava dele e a vida que ainda pulsava ali — assim como já havia acontecido com Dante antes. Era uma chance pequena, mas não inexistente.

    Dante e Clara desceram as escadas de concreto até o quinto andar. O som abafado de seus passos ecoavam pelo corredor vazio, cada batida reverberando como um aviso. O ambiente era mais frio ali, como se o inverno do lado de fora tivesse encontrado um jeito de infiltrar as paredes e congelar até o ar que respiravam.

    A cama de Degol ficava afastada dos demais. Cortinas brancas e desgastadas pendiam ao redor dela, como véus de um altar improvisado. O tecido tremulava suavemente com as correntes de ar que se arrastavam pelo chão. Era uma proteção inútil, mas, ainda assim, necessária. Um símbolo de privacidade para alguém que já não tinha quase nada.

    Dante parou ao lado de Clara, olhando para o tecido encardido. Por um instante, ele quase não quis puxá-lo. Quase.

    Quando a cortina foi afastada, o cenário diante deles trouxe uma pausa curta, mas carregada de significado. Lá estava Kenned, sentado em um banquinho torto ao lado da cama, como se aquele lugar fosse dele por direito.

    Kenned usava um chapéu antigo, marrom e desbotado, com as bordas descascadas de tanto tempo sob o sol ou a chuva. Era um objeto fora de lugar ali, como se tivesse sido arrancado de uma época esquecida. Abaixo da aba gasta, seu rosto surgia coberto por uma barbicha rala e um bigode fino que crescia desajeitado, parecendo duas ratazanas presas na cara.

    Dante precisou segurar um riso involuntário. O homem tinha uma aparência que misturava desleixo e convicção, como se ele mesmo tivesse escolhido ser daquele jeito. Estilo não se comprava, pensou Dante, embora estivesse prestes a sugerir que Kenned desse um jeito naquilo. Talvez raspasse tudo e começasse do zero.

    Kenned ergueu os olhos devagar, com o olhar cansado de alguém que não dormia há dias.

     — Ele não mudou — murmurou, a voz baixa e rouca, como se falasse para si mesmo.

    Dante trocou um olhar rápido com Clara antes de dar um passo à frente. Ele sentiu o cheiro forte de ervas amargas no ar, provavelmente algo que Kenned havia trazido para o quarto. Uma tentativa fracassada de ajudar Degol, talvez.

    — Você está aqui há muito tempo? — perguntou Dante, mantendo o tom neutro.

    Kenned soltou um suspiro longo, inclinando-se para trás no banco até a madeira ranger.

     — Tempo o suficiente para não ver nada acontecer. Ele está igual.

    Clara deu um passo mais próximo, olhando para Degol. O homem estava imóvel na cama, quase irreconhecível. Seu corpo parecia mais leve do que deveria ser, como se o peso de sua existência tivesse começado a se dissipar.

    Dante fechou os punhos por instinto, sentindo a tensão subir pelos braços. Energia Cósmica não podia simplesmente desaparecer. Ela se acumulava, mesmo em corpos fracos. Ele sabia disso. Tinha que haver uma forma de despertá-la.

    — Ele vai reagir — disse Dante, com firmeza. Não era uma promessa vazia. Era uma certeza.

    Kenned arqueou uma sobrancelha sob o chapéu velho, como se o desafiasse em silêncio.

    — É, velhote? E o que você pretende fazer que a gente já não tentou?

    Dante ignorou o rato na cara. Ele se aproximou da cama, parando ao lado de Degol. Mesmo ali, tão perto, o corpo do homem parecia distante. As feridas não se caracterizaram, e mesmo que tentassem enfaixar ou usar alguma pomada, horas eram necessárias para que se secassem, formando uma gosma preta.

    — Chama o Clerk pra mim — ordenou Dante, a voz firme, sem espaço para questionamentos. Seus olhos ainda estavam fixos em Degol, mas a ordem foi claramente direcionada a Kenned. — Vamos ver se podemos juntar o útil ao agradável.

    Kenned hesitou por um segundo, o queixo se mexendo sob a barbicha rala como se mastigasse alguma objeção silenciosa. Mas ele sabia quando não havia espaço para discussão. Levantou-se do banco rangendo e ajustou o chapéu surrado com um toque rápido.

     — Já volto — murmurou, saindo do quarto com passos arrastados, as botas fazendo um som abafado no piso frio.

    Dante respirou fundo e olhou para Clara. O semblante dela misturava preocupação e expectativa, como se esperasse uma explicação que ele ainda não havia dado.

    — Clara — ele disse, apontando para o lado oposto da cama. — Vou precisar que segure ele pra mim. Só o braço bom.

    Ela não discutiu. Clara apenas assentiu e se moveu rápido, os passos leves e silenciosos. Mesmo com toda a confiança que mostrava em outros momentos, agora suas mãos pareciam hesitar ao tocar o braço imóvel de Degol, como se temesse quebrá-lo.

    — Certo… — murmurou ela, ajeitando a posição dos dedos e segurando o braço bom do homem com o máximo de cuidado possível.

    O quarto, até então silencioso, foi interrompido pelo som de passos pesados no corredor. Mais três pessoas entraram logo em seguida, como sombras se arrastando para dentro do espaço apertado. Kenned voltou à frente, com Clerk caminhando ao seu lado. O médico trazia sua maleta de couro desgastada, um sinal claro de que havia sido tirado às pressas de onde quer que estivesse.

    Clerk não perdeu tempo com formalidades. Seus olhos se estreitaram ao analisar a cena: Clara segurando o braço de Degol, Dante parado ao lado da cama com uma expressão mais séria do que o normal, e Kenned encostado no batente da porta, os braços cruzados como um espectador silencioso.

    — O que você está planejando? — Clerk perguntou, abrindo a maleta e começando a separar alguns frascos e ferramentas, bem acostumado em fazer testes em Degol.

    Dante não respondeu de imediato. Ele estendeu a mão, pedindo algo que ainda não tinha sido dito em voz alta. Clerk hesitou, mas entregou-lhe um pequeno frasco de vidro, onde resquícios do líquido extraído da Pedra Lunar brilhavam em um tom pálido, quase como uma chama trêmula.

    — Energia Cósmica precisa de um catalisador — explicou Dante, finalmente quebrando o silêncio. — Degol não está reagindo porque não conseguimos criar a conexão. Talvez ele precise de um impulso… algo para lembrá-lo do que ele é. Vamos usar os dois frascos que temos, um no braço e o outro no peito.

    Clerk franziu o cenho, desconfiado.

    — E você acha que isso vai funcionar? Já tentamos de tudo.

    Dante não desviou o olhar do frasco em sua mão, a luz refletindo suavemente no líquido.

    — Tem muitos métodos diferentes que a Energia Cósmica se condensa. Vou apenas fazer de uma maneira que ela seja canalizada. Aprendi quando estava na Capital, com Dalia e Tecno. — Ele mostrou um sorriso, pelas lembranças de casa. — Vai ser igualzinho daquela vez.

    O homem abriu a boca para retrucar, mas parou ao ver a expressão de Dante. Determinada, quase implacável. Era o mesmo olhar que ele havia visto antes, quando ninguém acreditava que Dante voltaria vivo do Centro de Pesquisa.

    Kenned bufou do canto da sala, quebrando o momento tenso.

    — Isso parece mais loucura do que ciência.

    — Minha mãe dizia que a ciência começou assim, e sempre gostei dos conselhos dela — retrucou Dante, fechando os dedos ao redor do frasco.

    O ambiente ficou pesado, como se o ar tivesse ficado mais denso. Clara ajustou o aperto no braço de Degol, olhando de relance para Dante.

    — E o que você precisa que eu faça? — ela perguntou, a voz suave, mas firme.

    Dante girou o frasco entre os dedos, como se considerasse as implicações. Ele sabia que não havia garantias, mas isso nunca o impediu antes.

    — Apenas continue segurando ele. — Dante ergueu os olhos, mirando Clara com uma confiança inabalável. — O resto, eu cuido.

    Ele virou ligeiramente o rosto em direção a Clerk.

     — Clerk, não vai precisar da maleta. Quero que fique do meu lado. Você me disse que consegue consertar qualquer coisa se tiver Energia Cósmica o suficiente, certo?

    Clerk ainda parecia relutante, mas assentiu com firmeza.

     — Isso, ela funciona dessa maneira.

    Dante soltou um suspiro contido, desviando o olhar para as pessoas paradas no fundo do quarto, observando em silêncio. Era como se o próprio ar tivesse congelado entre eles, à espera de algo — qualquer coisa — para quebrar o gelo. Mas a única pessoa que ele queria ali ainda não havia aparecido.

    — Alguém ache o Jix, agora.

    A ordem cortou o silêncio. As pessoas se moveram com rapidez, algumas saindo quase correndo do quarto. O som de botas batendo nos corredores ecoou como trovões abafados. Dante permaneceu imóvel, os olhos voltando a cair sobre Degol, enquanto Clara ajustava o aperto no braço dele.

    Não demorou muito. Passos firmes e vozes abafadas anunciaram o retorno. Quando a cortina foi afastada, Jix entrou com sua postura encurvada, acompanhado por Juno. Os dois estavam cobertos de neve, os cabelos e ombros tingidos de branco como se o inverno os tivesse moldado como bonecos de neve incompletos. O velho arqueou uma sobrancelha grossa e soltou uma risada rouca ao ver Dante.

    — Eu soube que estava de pé, mas que estava trazendo mortos de volta é novidade — resmungou Jix, ajeitando as mangas do casaco pesado. — Do que vai precisar, garoto?

    Jix era o único que se dirigia a Dante daquela forma, com uma familiaridade que só a idade podia justificar. Dante até achava graça. Dois velhos. É isso que eles eram, pensou.

    — Gravidade — respondeu Dante, deixando uma risada escapar pelo nariz. — Quero usar a gravidade para gerar a Conversão Cinética. Isso vai impulsionar a Energia Cósmica.

    Por um instante, o ambiente ficou mais quieto, mas não de incerteza. Foi como se o cérebro de Jix precisasse de apenas um segundo para entender a ideia. Seus olhos brilharam, um brilho azulado, quase idêntico ao de Clara quando ela manipulava Energia Cósmica.

    — Claro, claro — murmurou Jix, já caminhando para mais perto da cama. Seu olhar examinava Degol como se o analisasse por completo. — Ativar a Energia Cósmica dele como o antigo desfibrilador. Inteligente.

    Dante assentiu, a expressão séria, mas seus olhos tinham aquela centelha de determinação que poucos ousariam questionar.

    — Vou precisar que você mantenha o fluxo gravitacional estável. Nada muito forte.

    — Eu sei o que estou fazendo, garoto — retrucou Jix, com uma pontada de irritação que mais parecia uma piada. Ele já esticava as mãos, os dedos começando a vibrar sutilmente conforme a Energia Cósmica se acumulava ao seu redor. O ar em torno dele ficou mais pesado, como se a gravidade realmente estivesse respondendo ao seu comando.

    Clara olhou para Dante, os olhos buscando algum tipo de certeza, mas ele não disse nada. Em vez disso, girou o frasco de Energia Cósmica entre os dedos. Estava na hora de começar o verdadeiro trabalho.

    — Tudo pronto? — perguntou Dante, sem desviar o olhar de Degol.

    — Pode ir — respondeu Jix, sua voz grave e estável, apesar do esforço evidente.

    Dante então respirou fundo, esticando o braço acima do corpo imóvel de Degol. O líquido da Pedra Lunar brilhou com intensidade quando ele quebrou o lacre do frasco, e uma leve onda de luz dourada se espalhou pelo quarto, dançando como uma poeira luminosa.

    — Segurem firme.

    Clara reforçou o aperto no braço de Degol, Clerk prendeu a respiração, e até Kenned parou de se mexer no fundo da sala. A gravidade em torno deles parecia mais densa, quase como se o próprio espaço estivesse esperando o impacto do que viria.

    — Vamos ver se você ainda consegue lutar, Degol — murmurou Dante, fechando os olhos por um segundo antes de liberar o poder.

    O frasco inclinou, e a luz dourada desceu, acompanhada pela gravidade manipulada por Jix. O quarto explodiu em clarões de Energia Cósmica, e o silêncio deu lugar a um som grave e pulsante, como um coração que voltava a bater.

    Volta pra esse lado, Degol. Seu irmão está te esperando.

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