Capítulo 86: O Sangue na Neve
Juno sabia que não seria fácil, mas não esperava que o golpe a acertasse tão rápido. Cinco segundos. Talvez nem isso. Ela girou o corpo, tentando sair do ângulo reto do ataque de Dante, e quando pensou ter escapado, o pé dele veio como um trovão.
Ela voou para trás, aterrissando de costas na neve dura. O frio subiu por suas roupas, invadindo a pele e deixando o choque ainda mais intenso. O que aconteceu? Como ele me acertou tão rápido?
Juno ergueu o rosto, piscando para afastar a confusão. Dante a encarava com aquele olhar tranquilo, quase indiferente, que parecia questionar mais do que ensinar. Ao lado, Jix observava, o olhar penetrante e crítico como sempre.
— Precisa de mais foco — ele advertiu, a voz soando firme no vento gelado. — Não pense no que pode fazer com a sua habilidade. Entenda como o seu corpo reage.
Eu sei… Não, ela não sabia. A prova veio dois segundos depois.
Dante se moveu novamente, rápido demais para que Juno o acompanhasse. A lâmina embainhada tocou sua perna e, em um segundo, ela perdeu o equilíbrio, indo de encontro ao chão com o peito. O ar escapou de seus pulmões em um gemido abafado, a neve fria queimando suas bochechas.
Dessa vez, quando ergueu o rosto, a voz que ouviu não era de Dante.
— É só isso que você tem? — Não era uma pergunta. Era uma acusação, cortante como vidro. A voz soava antiga, como uma memória adormecida. — A garota dos raios… lastimável.
Juno piscou rapidamente, a respiração pesada, e levou a mão ao rosto, como se pudesse afastar aquelas palavras. Seu coração batia forte demais, rápido demais. Não era ele. Não era Dante.
Mas Dante estava ali, parado, observando-a em silêncio. Ele baixou a espada e repousou a ponta embainhada contra o pé, então agachou ao lado dela. Seu toque no ombro foi leve, firme, como se pudesse acalmá-la apenas com aquele gesto.
— Controle seus sentimentos — a voz dele soou baixa, mas carregada de autoridade. — A raiva, o medo… Deixe-os de lado enquanto estiver aqui. Eles vão atrapalhar você. Sempre.
Ela prendeu o ar, sentindo a dor subir por seus braços, mas não reclamou. Controle. Era fácil falar. Como controlar o medo que a paralisava? A raiva que a fazia querer gritar?
— Se deixar esses sentimentos dominarem, nunca poderá chegar perto de onde quer.
Dante se levantou, a sombra dele alongando-se sobre a neve. A voz agora mais firme, mais exigente:
— Levante-se.
Juno fechou os olhos por um segundo. Sentiu a neve fria sob as mãos, o coração acelerado, e algo quente queimando atrás dos olhos. O choro queria vir, mas ela não deixaria. Não aqui. Não agora.
Ela apertou os punhos e empurrou o chão. Quando se levantou, as pernas tremiam, mas estavam firmes o suficiente para sustentá-la. Ela limpou a neve do rosto e olhou para Dante com os olhos cheios de determinação.
— Sim, senhor.
Dante sorriu, apenas de canto, mas não disse nada. Para ele, aquela pequena vitória já era o bastante. Para Juno, era só o começo.
Os golpes vinham como uma tempestade, incessantes, frios, impiedosos. Juno já havia perdido muitas vezes em treinos contra o Capitão Seleri, mas aquilo… aquilo era diferente. Não era apenas uma derrota; era uma humilhação. Cada vez que se levantava, como um cão desobediente, Jix oferecia uma palavra seca, uma sugestão de como melhorar. Mas as palavras eram poeira no vento. Ela tentava acompanhar Dante, mas como se acompanha o relâmpago?
Ele se movia com a fluidez de um rio e a brutalidade de um trovão. Seus braços eram rápidos demais, o giro do corpo perfeito, os passos um desfile de precisão mortal. Não havia padrão, não havia previsibilidade; cada ataque era um prenúncio do inevitável. Quando ele recuava, parecia um animal aguardando a hora certa de morder. E a mordida sempre vinha. A espada encontrava seu corpo como uma sombra encontrava a luz.
Uma hora. Sessenta minutos, mas para Juno, cada segundo era uma vida inteira de quedas. Cem vezes ou mais ela beijou o chão gelado, e cada vez a neve era mais cruel, como se zombasse dela. A última queda, recente e viva na memória, queimava mais do que as outras. Dante havia avançado pela direita, o movimento rápido demais para ser acompanhado. Ela recuou, esperançosa de que tivesse esquivado, mas então o viu girar sobre os calcanhares. Um golpe descendente, direto e certeiro.
Ele quer me matar, pensou. Ela sentia a intenção assassina não apenas nos olhos dele, mas nos ossos doloridos, nos músculos cansados, no coração acelerado e desesperado. Havia algo naquela aura, naquela maneira de se mover… se ela não se esquivasse, se não agisse, morreria. Simples assim.
E então, o golpe parou.
Ela não se mexeu. Nem mesmo conseguira pensar em se mexer. Foi nesse instante, nesse momento em que acreditou que estava a salvo, que ele atacou de novo. Uma rasteira. Um movimento simples, quase casual. Mas para ela, era o chão desabando. Juno sentiu os pés saírem do lugar. Subiu um metro no ar, e enquanto voava, a espada já se estendia, um aviso mudo de que Dante controlava até a direção de sua queda.
Ela foi arremessada. Voou quatro metros, talvez mais, até o impacto final. O carro frio e enferrujado interrompeu sua trajetória. Juno ficou ali, caída na neve, sentindo o frio se misturar ao calor da dor que irradiava por cada fibra de seu corpo. O silêncio foi quebrado pela voz grave de Jix, cheia de incredulidade.
— Merda, Dante. — Ele deu um passo à frente, mas Dante estendeu a espada, barrando-o como uma muralha de aço. — O que deu em você? Aumentou a força do nada?
Dante não o olhou. Seus olhos estavam fixos em Juno, como se enxergassem algo além do corpo pequeno e abatido.
— Não se mexa — ordenou ele, a voz baixa, mas firme. A neve caía entre os dois, como se o mundo estivesse prendendo a respiração. — O que sentiu agora há pouco, garota?
Ela não respondeu de imediato. Tanta coisa doía que era impossível saber onde começava ou terminava. A cabeça latejava. O peito ardia. Mas nada disso importava. O que ela queria entender, o que precisava entender, eram os movimentos dele. A finta, a virada para a direita, o golpe para cima… Tudo havia acontecido em instantes, e tudo havia sido um erro dela. Uma falha atrás da outra.
E naquele silêncio, naquele frio, Juno percebeu uma coisa: Dante não a estava punindo. Ele estava ensinando. A única lição que importava.
Sobrevivência.
— Senti que ia morrer — a voz de Juno era baixa, quase um sussurro que a tempestade tentava engolir. Havia verdade em cada palavra, uma confissão que pesava mais do que o frio da neve. — Senti que seria a última coisa que faria. Senti que… errei em tudo que fiz.
Dante não sorriu, mas seus olhos brilharam com algo próximo de satisfação. Ele assentiu lentamente antes de aplaudir, cada batida das mãos soando como um trovão abafado.
— Ótimo, ótimo. É isso mesmo que quero ouvir. — Sua voz era fria, mas firme, como um juiz anunciando um veredicto. — Você errou. Você morreu. Assim são as batalhas, garota. Perder, você já sabe como é. Mas agora, sabe como é ser humilhada.
Ele ergueu a espada, apontando-a para ela como um professor diante de um aluno relutante.
— Agora levante-se. Ainda há muito para aprender antes que seu corpo desarme.
Juno fechou os olhos por um momento, puxando o ar frio para os pulmões como se fosse um último recurso. Suas pernas tremiam quando colocou os pés no chão. O mundo parecia girar, mas ela lutou contra isso. Um passo, depois outro. Finalmente ergueu a cabeça.
Mas seu olhar não encontrou Dante. Foi além dele.
Jix também percebeu, usando a bengala para chamar a atenção de Dante, que virou o rosto, intrigado.
— Ora, que cena fascinante é essa que estou vendo? — A voz cortou a tempestade como uma lâmina fina. Feminina, mas carregada de um sarcasmo quase insuportável. A figura emergiu da névoa branca, caminhando com a confiança de alguém que sabia exatamente o impacto de sua chegada. — Um homem com uma espada espancando uma garotinha. Que espetáculo edificante.
Dante se virou por completo, jogando a espada sobre o ombro. Sua postura mudou, abrindo-se como um livro. Não era descuido, mas sim um convite.
— Ah, senhora, está frio demais para estar perambulando por aqui. — Ele exalou profundamente, soltando uma nuvem de vapor que se misturou ao vento cortante. — E, se me permite, não parece ser daqui. Essas roupas… — Ele estreitou os olhos. — São iguais às do Duas Caras.
A mulher respondeu com uma risada longa, quase exagerada, mas que nunca perdeu o tom provocador.
— Duas Caras. — Ela repetiu o apelido como se saboreasse as palavras. — É a primeira vez que ouço alguém chamando Mogrot assim.
Sua aparência era simplista, quase sem detalhes. O rosto dela era um enigma de neutralidade, mas Juno sentiu algo diferente. Uma presença que, de alguma forma, ecoava a de Dante. Não era força. Não era confiança. Era algo mais perigoso. Era Soberba.
— Não é? — Dante respondeu com uma risada leve, como se fosse um velho amigo. — Ele saiu voando da última vez que nos vimos. Foi um pouco triste, na verdade. Nem consegui tirar a vida dele. — Ele inclinou a cabeça, analisando-a. — Veio para vingar seu amigo?
A mulher arqueou as sobrancelhas, o sorriso transformando-se em um desdém quase divertido.
— Não, não. — Ela balançou a cabeça, fazendo um som irritante com a boca. — Vim porque ele disse que você e essa garotinha eram perigosos. Mas agora que o vejo, acho que ele exagerou. — Seus olhos escureceram enquanto analisava Dante. — Seu braço está ruim. Segura essa espada como se fosse um castigo para ela, e não uma arma.
Juno olhou para Dante, buscando a falha que a mulher havia apontado, mas não viu nada de errado. No entanto, algo chamou sua atenção. Duas espadas pendiam da cintura da mulher, ambas do lado direito, uma sobre a outra.
Era ela uma mestre como o Capitão Seleri?
Dante deu de ombros, sua voz cortando os pensamentos de Juno.
— Ah, bom, nunca fui muito de espadas. — Ele olhou para a arma em suas mãos, como se a visse pela primeira vez. — É diferente do que estou acostumado, mas treinei contra elas a vida inteira. Sei o que estou fazendo. Mas você… — Seus olhos caíram para as lâminas na cintura dela —, usa essas duas no estilo Piassyu-chi?
O rosto da mulher mudou, mesmo que sutilmente. Suas sobrancelhas ergueram-se, a surpresa escondida atrás de uma máscara de falsa calma.
— Então temos um conhecedor de artes antigas. — A provocação em sua voz cedeu lugar a um respeito relutante. — Quem diria que encontraria alguém com um estilo tão nobre entre os ratos de Kappz.
Dante riu, balançando a cabeça.
— Conhecedor, sim. Praticante, não.
— Bom, isso é o que veremos. — A mulher falou com uma calma cortante, o tipo de tranquilidade que antecede a violência. Seu braço se moveu com a naturalidade de quem já empunhou a lâmina várias vezes demais. A mão pousou no pomo da espada, enquanto o antebraço se apoiava na bainha, inclinada na diagonal. — Mogrot queria algo de vocês. Que tal suas vidas? — Um sorriso surgiu, lento e venenoso. — Seria um espetáculo ver um homem tão grande sendo espancado por uma mulher.
Ela se virou ligeiramente para Juno, acenando como se falasse com uma criança.
— Ah, garota, não se preocupe. Vou fazer ele pagar por cada golpe que te deu. Odeio homens bruscos.
Juno não respondeu. Seu olhar oscilava entre a mulher e Dante, que suspirou profundamente, cansado. Ele abaixou a espada, repousando a ponta contra a bota. Suas mãos se cruzaram sobre o cabo, a postura relaxada, mas os olhos atentos. Ele parecia tão desfocado e ao mesmo tempo tão presente.
— Juno, sua próxima lição. — A voz de Dante era fria, distante, quase desdenhosa. Ele não parecia falar para a mulher, nem mesmo para ela, mas para o vento. — Sempre parta do princípio de que seu oponente tem a vantagem.
Os olhos de Juno se fixaram nele, tentando decifrar cada palavra. Não podia deixar nenhum ensinamento para lá.
— Se deixar suas emoções serem dominadas por provocações, será derrotada. — Ele pausou, girando a espada levemente, o som do metal da bainha cortando o ar gelado. — Se permitir que o medo te cegue, será morta. — Seu tom não mudava, era constante, como o frio. — E se deixar que seu inimigo se infiltre em seu coração, será humilhada.
A mulher ergueu uma sobrancelha, inclinando a cabeça levemente.
— Belas palavras, senhor…? — A provocação estava lá, sutil, mas afiada como a ponta de uma faca.
Dante ergueu a mão com uma casualidade tão diferente de antes. Como se ele fosse tantas pessoas ao mesmo tempo.
— Perdão. — Sua voz se tornou mais alegre, dando um aceno modesto. — Sou Dante, recruta de Dalia, da Capital. E a partir de agora, você será a cobaia para a minha aluna.
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