Capítulo 91: Nada de Acordos (II)
— Não… sei.
Se Antton esperava encontrar o Degol Jones impulsivo e instável de antes, ele estava redondamente enganado. Cada palavra que saía da boca de Degol era medida, pesada, e entregue com precisão. Meliah podia ver a máscara de confiança de Antton se desmanchando.
— Vai acontecer o seguinte — Degol começou, sua voz firme e cheia de autoridade. — Nós tínhamos um acordo, lembra desse acordo? Vocês receberiam matéria-prima. Em troca, nós ganharíamos mantimentos para passar o inverno. Agora, cadê minha carne, Antton? Cadê… a merda… da minha carne?
A sala parecia prender a respiração. Meliah observou o desconforto de Antton, seu pomo de adão subindo e descendo enquanto ele engolia em seco. Não era só ele; as pessoas ao redor também pareciam afetadas pelo tom intransigente de Degol. Era um silêncio carregado, quase opressivo.
E Meliah sentiu algo que não sentia há muito tempo: orgulho. Esse era o Degol Jones que seu pai queria que ele se tornasse. Um homem que não apenas falava, mas fazia. Um líder que sabia quando impor sua presença e fazer valer suas palavras.
Degol estava crescendo diante dos olhos de todos ali. E Meliah sabia que essa transformação não seria esquecida tão cedo.
— Eu… vou arrumar. Claro que vou, Degol. — Ele buscou ajuda em Meliah. — Sabe que sempre fui um amigo. Meliah, por favor, eu sempre…
— Ei – Degol colocou o rosto na frente. — Você está conversando comigo? Está com medo de falar cara a cara? Se você está dando uma desculpa é porque a minha carne não está aqui, não é? Você não tem.
A situação começou a ficar mais pesada. Degol pressionava um rato encurralado contra a parede, deixando bem a mostra que tipo de homem que ele era.
— Chefe, temos o javali da semana passada – um dos homens disse ao lado. — Se nós…
Antton encarou seu subordinado com uma raiva colossal. Sua boca tremulando. Claro, ele tinha a carne. Meliah deveria saber.
Degol deixou um sorriso enviesado escapar enquanto se recostava na cadeira, as palavras saindo de sua boca com a precisão de um golpe certeiro.
— Sabe, um homem me disse uma vez: “Nunca confie em quem sorri muito quando está no poder. Esse sorriso, na verdade, é a máscara de alguém que teme ser descoberto.”
Antton engoliu em seco, claramente sem palavras. Meliah observava cada movimento, cada nuance no rosto de seu irmão mais novo. Degol estava no controle total da situação, uma transformação que Meliah nunca imaginou testemunhar tão cedo.
— Então, você tem carne — continuou Degol, seu tom carregado de ironia e desdém. — E estava planejando guardá-la para… o quê? Para o dia que eu e minha gente caíssemos mortos de fome? Ou será que você ia fazer algum grande banquete e esquecer de nos convidar? Porque, honestamente, é o que parece.
Um dos homens de Antton, o mesmo que havia mencionado o javali, parecia desconfortável, mexendo-se inquieto sob o olhar de reprovação do chefe. A tensão no ar era palpável. Antton abriu a boca para responder, mas Degol o interrompeu com um gesto de mão.
— Não me venha com desculpas agora. Você tinha o suficiente para ajudar, mas escolheu não fazer. E sabe o que isso significa, Antton? — Degol inclinou-se para frente, apoiando os cotovelos na mesa, encarando-o de perto. — Significa que você não é confiável. Não é um líder. É só mais um oportunista tentando sobreviver às custas dos outros.
Meliah sentiu um arrepio. A maneira como Degol estava desmascarando Antton era quase cruel, mas inteiramente merecida. Era como se Degol estivesse limpando a sujeira acumulada de anos de conformismo, deixando claro que o velho Degol Jones havia morrido, e em seu lugar estava alguém que não aceitaria menos do que respeito e honestidade.
— Agora — Degol continuou, voltando à sua postura relaxada —, quero o javali. Quero ele inteiro. E quero ele entregue no abrigo da Clara antes do pôr do sol. Entendeu?
Antton hesitou, mas finalmente assentiu, murmurando algo inaudível. Degol levantou-se, ajustando o casaco enquanto olhava ao redor.
— Ótimo. Porque, se você não cumprir, Antton, pode ter certeza de que esta será a última vez que terá a chance de negociar comigo ou com qualquer um dos meus. E, sinceramente, você não quer saber o que acontece depois disso.
Degol virou-se para Meliah, um brilho confiante nos olhos.
— Vamos, irmão. Temos mais o que fazer.
Meliah seguiu Degol, sentindo-se mais orgulhoso do que nunca. Ele sabia que o mundo em que viviam exigia decisões difíceis, mas naquele momento, ele viu a força de um verdadeiro líder.
I
Clara lia um relatório sobre os suprimentos. Dante havia pegado tanto, mas nada relacionado a carnes. Não fazia muita falta quando tinham ajuda de Luma. A colheita foi bastante frutífera dos últimos meses, e Clara usou a água do reservatório para poder disponibilizar a eles.
A troca foi justa. E com as fornalhas de Meliah, eles podiam cozinhar muito melhor usando a madeira. Preferia carvão, mas era escasso demais. Dante havia achado quase dez sacas, mas não queriam fazer muito uso sem necessidade.
Blayk, seu gerente de projetos, se aproximou erguendo o chapéu, dando uma olhada ao redor.
— Parece tudo certo, dona. Queria saber do armázem. Vamos precisar aumentar?
— Não, está perfeito do jeito que deixamos. — Ela lia item a item, não dando muita atenção a Blyak. — Luma ainda está recebendo água? Como está a relação dela com Antton?
Ele se sentou em uma cadeira, e puxou o chapéu, pondo em cima de outro banquinho.
— Parece que estão ficando mais escassos o avanço deles. Eu não tive nenhum acesso ou informação deles desde semana passada, mas posso pedir alguém que vá até lá.
Clara o negou na hora, dando uma volta completa e erguendo a cabeça, fitando a parede.
— Não, vou pedir que Marcus passe lá.
— Certeza? — Blayk fez uma cara de cansaço. — Ele não parece ser a pessoa certa para esse trabalho.
Clara fechou o relatório e olhou diretamente para Blayk, com um olhar que combinava exaustão e determinação.
— Talvez ele não seja a pessoa certa, mas é quem eu preciso que vá. — Sua voz era firme, sem deixar espaço para questionamentos. — Marcus tem um jeito de lidar com as pessoas que, apesar de ser irritante às vezes, funciona. Luma confia nele mais do que em qualquer outro daqui.
Blayk suspirou, pegando o chapéu novamente e esfregando a aba com os dedos.
— Entendi, dona. Mas se der algum problema, não diga que eu não avisei.
Clara se permitiu um sorriso breve, um raro momento de leveza.
— Sempre avisa, Blayk. É sua especialidade.
Ele deu de ombros, aceitando a provocação, mas a preocupação ainda era visível em seu rosto.
— Então, sobre o carvão. Vamos guardar as sacas por enquanto ou quer que eu teste o uso nas fornalhas com Meliah?
— Guarde. Não sabemos quanto tempo mais esse inverno vai durar, e cada recurso conta. Meliah vai entender.
Blayk assentiu, mas hesitou por um momento antes de falar novamente.
— E sobre Antton? Não acha que ele está começando a apertar demais o pessoal de Luma? Parece que a relação deles está se desgastando.
Clara cruzou os braços, inclinando a cabeça ligeiramente para o lado enquanto ponderava.
— Eu sei. Mas não posso interferir diretamente agora. Luma é resiliente, e ela sabe que, se precisar de ajuda, pode contar conosco. O que precisamos garantir é que nossa relação com ela continue forte.
Blayk parecia satisfeito com a resposta, mas ainda não completamente tranquilo. Ele se levantou, colocando o chapéu de volta na cabeça.
— Certo. Vou continuar monitorando a situação e volto com qualquer novidade.
Clara acenou com a cabeça, voltando sua atenção para o relatório. Quando Blayk saiu, ela se permitiu respirar fundo, sentindo o peso das decisões e das relações que precisava equilibrar. No mundo em que viviam, cada escolha parecia uma aposta. Diferente de Dante, ela odiava apostas.
Ela ergueu os olhos para a janela, observando a neve que continuava a cair do lado de fora.
— Um dia de cada vez — murmurou para si mesma. — Só um dia de cada vez.
A voz urgente de Niero, um dos mensageiros de Blayk, cortou o silêncio da sala. O menino apareceu na escada, o rosto contorcido de desespero.
— Senhora, senhora. Tem umas pessoas lá embaixo te procurando. É urgente.
Clara se levantou rapidamente, o semblante já sério, sem perder tempo. Seus pés, calçados nas botas pesadas, desceram as escadas com rapidez. Cada passo ecoava no vazio do prédio, mas sua mente estava longe das paredes frias, já imaginando o que poderia estar à sua espera lá embaixo.
Assim que pisou no primeiro andar, ela já estava preparada para uma notícia ruim, mas viu Meliah e Degol parados na porta, com um imenso javali preso em um caixote, cheio de neve por cima. Ela se aproximou, vendo que eles conversavam entre si, e apontou.
— Podem me dizer o que se trata isso? — Não perdeu tempo, balançando a mão. — Não quero nada de Antton aqui. Ele não me deve nada e nem quero favores.
— Ah, Clara. — Degol sorriu, um pouco mais relaxado do que a última vez que o viu. — Não foi um presente. Meu irmão e eu fomos cobrar alguns dos favores que tínhamos com ele. Deixamos claro que não temos mais acordo nenhum com aquele mesquinho miserável. E como um presente pelo que fez por nós, eu quero te dar isso.
O javali era gordo, imenso. E Degol fez os homens empurrarem para perto dela.
— Vai precisar de alguém para limpar, cortar, dividir, mas Meliah e eu sabemos fazer isso. Sei que foi um pouco de imprudência da minha parte antes, mas quero recompensar por tudo que fizeram. Meliah me contou sobre a pedra que usaram e os riscos que correram la no Centro de Pesquisa.
A carne era essencial, mas tanta assim?
— Antton deve ter ficado irado.
— Ele teve o que merecia, Clara – disse Meliah, do outro lado do animal morto. — E você também. Obrigado pelo que fez. Estamos em débito, por um longo tempo.
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