Capítulo 92: Vick
— Vick, faça a contagem de comida e água, por favor — pediu Dante, a voz firme, mas com um tom de cansaço inegável. Ele estava do lado de fora do prédio, sozinho, os braços cruzados contra o frio cortante. Juno havia ficado dentro, treinando com Jix, enquanto a tempestade de neve continuava a se intensificar. Era como se o próprio inverno quisesse engolir o mundo ao redor.
Clara tinha insistido para que alugassem o oitavo andar daquele prédio em ruínas, buscando uma posição elevada e defensável. Mas mesmo com as paredes desgastadas e as janelas mal vedadas, o vento parecia encontrar formas de penetrar, trazendo consigo o frio implacável. Dante observou o horizonte branco e inalou profundamente antes de acender o charuto. A fumaça subia em espirais, desaparecendo quase instantaneamente no ar gelado.
— Parece que esse inverno vai demorar mais do que achamos — murmurou para si mesmo.
O silêncio foi quebrado pela voz sintética de Vick, fria e precisa, ressoando em seu comunicador.
“Calculando… Níveis de comida e suprimento em declínio desde o primeiro mês. Cerca de 40% do total acumulado. Refazendo conta de ritmo…”
Ela pausou por alguns segundos, e Dante sabia que a resposta não seria boa.
“Contagem realizada. Tempo até esgotar recursos: dois meses.”
Dante apertou os olhos, o charuto preso entre os lábios. Dois meses. Eles já haviam sobrevivido dois meses naquele inverno interminável, mas agora estavam em contagem regressiva para o esgotamento total.
Clara havia conseguido manter alguma ajuda vinda de Meliah e Degol Jones, que traziam carne uma vez por semana. Ainda assim, os mantimentos básicos estavam em colapso. Água, grãos, remédios… Tudo parecia escorrer entre os dedos. A carne ajudava, mas não era suficiente para sustentar tantas pessoas por tanto tempo.
E o frio não perdoava. Na última semana, duas crianças haviam caído de cama, febris e enfraquecidas. Mesmo com as adaptações de Clerk nas portas e janelas, o vento conseguia infiltrar-se como um predador sorrateiro, trazendo a doença consigo. Dante olhou para o prédio atrás de si, sentindo o peso da responsabilidade sobre seus ombros.
Eles precisavam de roupas mais grossas, remédios, e, acima de tudo, tempo. Mas o inverno parecia determinado a roubar tudo o que estavam construindo aos poucos.
— Qual o plano mais rápido a se fazer? Pensei em começar a fazer uma ronda, duas vezes na semana. – Dante não podia ficar muito tempo parado. Tinha que procurar por uma nova remessa de tudo para conter. – Tem Sharm, não é?
“A prisão Sharm parece na base de dados dito pelos irmãos Jones. Um Lagmorato do tamanho dele deveria ser mais complexo do que o esperado. Pelo que disseram, os primeiros andares foram limpos meses atrás, mas como base do que já presenciei com Render, os Felroz devem ter tomado novamente”.
Dante concordou encostando na parede atrás de si, um pouco mais cansado ao ouvir.
— Podemos dar uma olhada. Temos bastante gente agora. Se deixarmos Degol e Meliah com Clara, ela não vai ficar preocupada.
Vick não respondeu de imediato.
“Sua ideia de levar somente pessoas selecionados é idiota. O correto seria ter a força completa para limpar um Lagmorato, assim erros não ocorrerão”.
Dante sabia disso, e detestava a ideia.
— Se eu levar todos, as coisas vão ficar mais complicadas. O abrigo não vai ter alguém para ficar de guarda. Se somente Jix e Juno estiverem comigo, temos mais chance. – Confiava nos dois para ser um suporte mais elevado. Marcus ficaria, assim, teria cobertura no abrigo. – Posso tentar chegar em um acordo com eles.
“Me baseando no que vi deles, ninguém vai aceitar”.
Ela era mais teimosa do que aparentava. Dante deu uma risada disso.
— Podemos fazer aquele sistema de pegarmos recursos. Marcamos o lugar e pegamos aos poucos. – Antes do Inverno, Dante havia marcado bastante nas lojas e mercados. Foi um ponto muito positivo. – O que acha?
“Mesmo que seja marcado, deve ser realizado uma vistoria completa. Da última vez, fomos mais longe, cerca de cinco horas de distância para todas as direções. Analisando a situação, levaremos cerca de um dia para fazermos duas viagens. Inviável em níveis maiores”.
A situação era mais complicado do que ele pensava. Se continuasse dessa forma, teriam que ir para Sharm mesmo. Nas condições atuais, seria praticamente inviável levar todos os que sabiam lutar e deixar Clara sozinha.
“Tenho… uma ideia em meu banco. Gostaria… de apresentar”.
Oh, isso era novo. Vick nunca deu ideias antes.
— Sempre que achar necessário, pode dar sua ideia ou opinião sobre algo. Parece meio travada para isso.
Ela demorou alguns segundos, como se formulasse a frase a seguir:
“Seu pai, Render, me advertiu uma vez quando ele lutava. Minhas anotações e comentários atrapalhavam seu julgamento, com ele ditando que pensar por terceiros é dar fuga para sua própria escolha. Desde então, eu rejeito a ideia de dizer algo, mesmo que eu possa”.
Então, seu pai tinha feito isso? Parecia ilogico. Vick se baseava em análises recorrentes do que assistia ao seu redor, não somente do que os olhos de Dante conseguiam buscar. Isso indicava que poderia juntar ideias ao ponto de que poderia favorecer seu portador.
Render realmente tinha descartado uma IA que ajudava em tudo?
— Meu pai lhe deu essa ordem, Vick. Eu quero ouvir, até porque minhas ideias se esgotarão – e deu uma risada. – Será que tem mais alguma função sua que eu ainda não conheço?
“Analisando funções secundárias, terciárias e quartenárias”.
Dante parou de rir. Ela tem isso tudo de funções externas?
“Cerca de 2 funções estão disponíveis para funcionamento. Não existe possibilidade de acessar as demais sem um fluxo de conhecimento técnico. Para criar funções, precisaria de um sistema automatizado ou uma série de conhecimentos elevados de programação e cálculos alternados, o que se encontrava no…”
Ao parar, Dante abriu os braços.
— Não vai falar?
“Preciso de permissão para dizer localizações em espaços para determinar potencialização da Inteligência Artificial”.
Dante concordou.
— Pode falar.
Ela demorou mais alguns segundos, e então, completou.
“Potencialização se encontra no Centro de Pesquisa. Níveis de conhecimento do local eram de grande porte, tendo uma série de vibrações de uma tecnologia antiga, no entanto, existe algo que devo alertar”.
Dante pediu que ela prosseguisse, e sentiu que a voz dela não era tão mais robótica igual antes, era mais suave, sem a rigidez.
“Da última vez, não somente Juno e Sebastian estavam lá. Além dos demais que trouxe para o abrigo de Clara, existiam traços de vitalidade e também Energia Cósmica vindo de andares inferiores. Acredito, que por ser um Centro de Pesquisa antigo, também foi formado uma série de túneis na parte de baixo do estabelecimento”.
Essa era uma notícia que Dante não estava esperando mesmo. Ele não tinha sentido na época, mas Vick sentiu. Isso era importante, indicava que além deles, havia outros. E quem eram esses?
Dante franziu o cenho enquanto as palavras de Vick se processavam em sua mente. O Centro de Pesquisa era um local que ele preferia esquecer. Já tinha arriscado a vida lá uma vez, e as lembranças não eram nada reconfortantes. O pensamento de voltar àquele lugar o fazia sentir o peso da responsabilidade em dobro. Mas agora, com essa nova informação, ele sabia que ignorar não era uma opção.
— Vitalidade e Energia Cósmica? — Ele repetiu em voz alta, mais para si do que para a IA. — Por que isso nunca apareceu nos seus relatórios antes?
Vick respondeu com calma, a suavidade inesperada ainda presente em sua voz.
“Na ocasião, não havia necessidade de alerta imediato. A prioridade era garantir sua sobrevivência e a recuperação da Pedra Lunar. Somente agora, com a situação de recursos e a possibilidade de explorar potencializações, os dados tornaram-se relevantes.”
Dante esfregou a testa com a mão livre, o charuto agora esquecido entre os dedos. Isso complicava as coisas. A presença de Energia Cósmica significava perigo, e a menção de vitalidade indicava que não estavam sozinhos lá embaixo. Mas quem, ou o que, poderia estar nos túneis do Centro de Pesquisa? Ele não gostava da ideia de descobrir.
— Então você está dizendo que existem… sobreviventes? Ou algo mais? — Sua voz carregava um tom de preocupação que ele não conseguia esconder.
“Com base nas leituras anteriores, é incerto. As vibrações registradas não são consistentes com humanos comuns. No entanto, também não são inteiramente hostis. A análise sugere que podem ser híbridos, possivelmente resultado de experimentos antigos com Energia Cósmica.”
Dante soltou um suspiro pesado. Híbridos. Era disso que ele precisava? Mais aberrações para lidar? Ele sabia que explorar aquele lugar seria arriscado, mas agora parecia inevitável.
— E os túneis? — Ele perguntou, tentando reorganizar os pensamentos. — Alguma ideia do que encontraríamos lá?
“Os túneis parecem ser uma extensão não oficial do Centro de Pesquisa. Possivelmente criados para armazenar ou conter algo. Não há registros claros de suas funções, mas a densidade de Energia Cósmica aumenta significativamente nos andares inferiores. Isso sugere que algo poderoso — ou perigoso — está lá.”
Dante apertou os olhos, encarando o horizonte branco e interminável. Ele sabia que Clara não gostaria dessa ideia, mas as opções estavam se esgotando. Se havia uma chance de melhorar Vick e talvez encontrar algo que pudesse ajudar o abrigo, ele teria que arriscar.
— Parece que vou ter que voltar para aquele inferno — murmurou, mais para si mesmo.
Vick ficou em silêncio por um momento antes de responder.
“Recomendo extrema cautela. O Centro de Pesquisa é imprevisível, e as condições atuais tornam a exploração ainda mais perigosa.”
Dante deu uma risada seca.
— Quando foi que algo na minha vida não foi perigoso, Vick?
Ele tragou o charuto uma última vez antes de apagá-lo e guardar, mesmo usando frequentemente, ele nunca diminuía. O frio parecia menos incômodo agora. Havia um plano a formar, aliados a convocar e uma decisão a tomar. Seja lá o que estivesse nos túneis do Centro de Pesquisa, ele descobriria. E torcia para que a verdade não fosse pior do que suas suposições.
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