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    Harley Ginsu não se virou imediatamente, seus dedos ainda segurando o volume que organizava. Três anos sobrevivendo no clã Dragões de Sangue lhe ensinaram que mostrar medo ou raiva apenas alimentava o sadismo de seu torturador. 

    Em vez disso, respirou fundo, permitindo que seus músculos relaxassem gradualmente. Se o confronto era inevitável, enfrentaria com a dignidade que Julius lhe ensinara, mesmo que custasse caro.

    A técnica de controle respiratório era uma das poucas lições paternas que permaneciam intactas em sua memória. 

    “Quando não puder evitar a dor, controle sua reação a ela” — Julius instruíra durante um dos treinos mais brutais — “Um guerreiro verdadeiro escolhe como será quebrado.” 

    Na época, Harley pensara que era apenas mais uma obsessão paterna com disciplina. Agora entendia que o clã o preparara para enfrentar exatamente este tipo de momento.

    Quando finalmente se virou, encontrou o sorriso frio de Sergio Romanov, flanqueado pelos dois capangas que sempre o acompanhavam. A formação era calculada, bloqueavam qualquer rota de fuga, criando um triângulo perfeito de intimidação. Aos dezessete anos, o jovem filho do líder do clã Dragões de Sangue desenvolvera uma crueldade refinada que ia muito além da simples violência física.

    Os dois companheiros eram escolhidos não apenas pela lealdade, mas pela complementaridade de habilidades. À esquerda, Pedro, um jovem de ombros largos cuja única expressão parecia ser um meio sorriso permanentemente entediado. 

    À direita, Kael, menor em estatura, porém com olhos que nunca paravam de se mover, calculando ângulos e distâncias com precisão de animal avaliando território. Juntos, formavam uma unidade que humilhara dezenas de outros jovens do clã.

    Havia um ritual nessas humilhações, Harley percebera. Sergio nunca atacava imediatamente, precisava da justificativa emocional, da satisfação de ver sua vítima quebrar psicologicamente antes de partir para a violência física. 

    Era uma necessidade quase patológica, como se a dor causada só fosse verdadeiramente saborosa quando temperada com desespero alheio.

    Os olhos de Sergio brilharam com satisfação maldosa. Quando suas palavras finalmente romperam o silêncio, cada sílaba foi escolhida para causar máximo desconforto:

    — Sempre se escondendo entre os livros como rato que encontrou sua toca perfeita. Três anos organizando conhecimento que jamais será digno de compreender. Não acha isso… patético?

    Os dois aliados se posicionaram estrategicamente.

    Harley manteve as mãos firmes no livro, recusando-se a dar a Sergio o prazer de vê-lo reagir. E respondeu com voz controlada: 

    — Não estou me escondendo. Estou cumprindo as tarefas que me foram designadas. Ao contrário de alguns, eu entendo o valor do conhecimento.

    O sorriso do jovem filho do líder do clã Dragões de Sangue se alargou, revelando dentes perfeitos que contrastavam com a malícia em seus olhos. Era exatamente a resposta que esperava: Harley se recusando a baixar a cabeça, mantendo o orgulho mesmo cercado e em desvantagem numérica.

    — Conhecimento? — Sergio deu um passo calculado para frente, invadindo deliberadamente o espaço pessoal de Harley — Você realmente acredita que esses textos empoeirados vão transformá-lo em algo mais que um espólio de guerra bem-comportado?

    Harley sentia o peso do olhar dos dois aliados de Sergio, cada músculo pronto, cada respiração contida, aguardando apenas um gesto para agir. Mantendo o contato visual com o jovem mestre do clã Dragões de Sangue, voltou-se e disse:

    — Talvez! Ou talvez já seja algo que você nunca será, não importa quantos privilégios herde.

    Sergio permaneceu imóvel, permitindo que a provocação ousada se chocasse contra sua mente como pedras contra ferro, impassível, inabalável. Então, lentamente, seu sorriso se transformou em algo muito mais perigoso, puro prazer sádico.

    — Três anos organizando as conquistas de outros! Três anos tocando no conhecimento que jamais poderá compreender. Diga-me, Harley, isso não deve ser frustrante para alguém que um dia pensou ser especial?

    O jovem Ginsu sentiu a raiva familiar subir por sua garganta, aquele calor que prometia alívio temporário através da violência. Entretanto, também sentiu algo mais: uma frieza calculista desenvolvida durante os anos de cativeiro. Sergio queria uma reação. Sempre queria.

    Harley respirou fundo, permitindo que a raiva se assentasse antes de responder:

    — O que você quer, Sergio? — a voz saiu calma, controlada, carregando apenas o cansaço de quem passara por aquela situação muitas vezes.

    O sorriso do jovem filho do líder do clã Dragões de Sangue se alargou novamente e ele respondeu:

    — Quero que você entenda seu lugar! — Sergio acenou para seus companheiros. — Acho que nosso querido organizador precisa de uma lembrança sobre hierarquia.

    O punho conectou antes que Harley pudesse se preparar completamente. Sergio aperfeiçoara sua técnica nos últimos meses, e o soco atingiu seu rosto com exatidão cruel, calculando cada centímetro para machucar sem deixar marcas permanentes. 

    O mundo explodiu em clarões de dor e luz distorcida, o gosto metálico do sangue se espalhando por sua boca enquanto tropeçava contra a estante mais próxima.

    Os volumes antigos caíram como chuva intensa, espalhando-se pelo chão em cacofonia de capas de couro. A poeira se levantou em nuvens, misturando-se ao suor que escorria pela testa de Harley. 

    Por um momento, ele sentiu como se tivesse sete anos novamente, caído no chão do pátio de treinamento enquanto Julius o observava com aquela expressão de desapontamento que nunca parecia mudar.

    Três opções. O pensamento surgiu automaticamente, produto dos anos de treinamento paterno. Revidar e sofrer consequências severas. Aceitar e mostrar submissão total. Ou… A terceira opção era mais sutil, mais perigosa.

    Julius jamais ensinara aquela terceira opção de forma direta, embora Harley a tivesse descoberto sozinho durante os meses mais difíceis de cativeiro. Não era submissão nem resistência, era adaptação. 

    Como a água que encontra rachaduras na pedra e, com tempo suficiente, consegue fragmentar montanhas inteiras. Sergio esperava medo ou raiva. Ele se alimentava dessas emoções como parasita. Contudo, e se Harley oferecesse algo diferente?

    O jovem Ginsu se levantou lentamente, limpando o sangue do canto da boca com as costas da mão. Seus olhos encontraram os de Sergio, e por um momento permitiu que toda a frieza desenvolvida transparecesse em seu olhar. Quando falou, foi com objetividade clínica:

    — Está melhorando! — disse, sua voz carregando uma nota de avaliação técnica que pegou o jovem filho do líder do clã Dragões de Sangue de surpresa — O ângulo estava quase perfeito. Julius teria aprovado a execução, mesmo que deplorado a falta de honra.

    A reação correspondeu exatamente à sua previsão. O sorriso de satisfação de Sergio vacilou, substituído por confusão que rapidamente se transformou em algo mais perigoso. 

    O nome de Julius escapando dos lábios de Harley trouxe uma oportunidade inesperada. Pedro e Kael trocaram olhares surpresos, geralmente eram eles que jogavam aquela ferida na cara da vítima, não o contrário.

    O jovem filho do líder do clã Dragões de Sangue sentiu uma onda de satisfação predatória. Se o próprio jovem Ginsu estava oferecendo sua vulnerabilidade mais profunda, quem era ele para recusar? Todos sabiam sobre o desaparecimento de Julius Ginsu, e se Harley queria abrir essa porta, Sergio faria questão de atravessá-la com toda a brutalidade que conseguisse reunir:

    — Seu pai o abandonou porque viu o que todos nós vemos. Um fracasso. Um herdeiro indigno de uma linhagem que nem sequer merecia existir.

    Não. A palavra ecoou na mente de Harley, não negação, mas pura determinação. Não hoje. Não assim. A dor familiar estava lá, sempre estaria, todavia algo mudara nos últimos meses. A humilhação constante forjara algo novo em seu interior, algo que não era apenas raiva.

    Era paciência. Era cálculo. Era a compreensão gradual de que cada golpe recebido, cada humilhação suportada, estava moldando algo que seus torturadores não conseguiam enxergar.

    “A dor é sua professora”, Julius dissera. Talvez o pai estivesse certo, apenas não da maneira que qualquer um deles imaginara. Cada golpe de Sergio, cada insulto, cada momento de desespero fora uma aula. E Harley finalmente começava a compreender o currículo.

    Quando se endireitou, havia algo diferente em seus olhos. Não desafio aberto em um lugar publico, isso seria suicídio. Mas uma qualidade que não existia antes, uma densidade emocional que fazia o jovem filho do líder do clã Dragões de Sangue recuar um passo instintivamente.

    Era como se Harley tivesse descoberto um tipo diferente de armadura, uma proteção que não dependia de metal ou couro, e sim de algo muito mais profundo. 

    Sergio podia quebrar seu corpo, humilhar sua posição social, destruir sua dignidade aparente, entretanto havia algo em seu interior que permanecia intocado, algo que crescia mais forte a cada golpe recebido.

    O som de passos reverberou pelo corredor, uma cadência diferente da agitação que dominara os últimos minutos. A silhueta familiar do Administrador apareceu na entrada, e o jovem Ginsu sentiu uma pontada de oportunidade. Sergio teria que recuar ou enfrentar consequências que não estava preparado para lidar.

    — Até logo, jovem mestre! — disse Harley, cada sílaba carregando a deferência imposta pela presença do administrador próximo, mesmo que seus pensamentos já buscassem o momento certo para agir — Tenho trabalho a fazer.

    Enquanto caminhava para a saída, os três jovens não passavam de obstáculos menores em seu caminho. Era um ato de audácia calculada, baseado na certeza de que Sergio não arriscaria uma escalada maior sem ordens diretas.

    A derrota disfarçada no olhar do jovem filho do líder do clã Dragões de Sangue não encontrou outro refúgio senão na ameaça, lançada como última arma ao alcance:

    — Isto não acabou! — a voz de Sergio ecoou atrás dele, carregada da frustração de um predador que perdera parte do controle sobre sua presa.

    Harley, já afastado, deixou escapar em voz baixa aquilo que ninguém mais poderia ouvir:

    — Nunca acaba.

    Enquanto caminhava pelos corredores da biblioteca em direção à saída, Harley permitiu que seus pensamentos se organizassem como os volumes que passara três anos catalogando. A dor no rosto espalhava um calor lento, semelhante à brasa que ainda não se apagara, pulsando no mesmo compasso que o coração.

    “Quando a dor se tornar combustível ao invés de paralisia.” As palavras do Vigilante finalmente começavam a fazer sentido. Não era sobre eliminar a dor, era sobre transformá-la em algo útil, algo que pudesse ser direcionado com precisão.

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