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    CAPA-o-mago-das-sombras-REDUZIDA


    A adaga negra se desfazia entre os dedos de Harley Ginsu, evaporando-se em fumaça dimensional, enquanto a explosão o arrastava pelo portal que acabara de cortar no tecido da realidade. Anos incontáveis dedicados a dominar viagens interdimensionais, manipulação de magia, e agora não conseguia nem segurar sua própria arma.

    A ironia teria sido engraçada se não fosse seu último pensamento consciente antes do vazio absoluto entre mundos engoli-lo por completo.

    O portal se fechou com um estalo que reverberou através das dimensões. Por um momento eterno, Harley flutuou no nada, vendo fragmentos de anos de batalhas explodirem ao redor de seu corpo em estilhaços de vidro, carregados de poder, solidão e escolhas impossíveis.

    E agora isso.

    Então veio o impacto.

    O uniforme de combate da Escola de Exploradores Interdimensionais absorveu o choque como pôde. Blindagem multidimensional, interface mental, sistemas de ocultamento se desfazendo em faíscas e circuitos fritos contra as rochas afiadas do deserto desconhecido. 

    O capacete translúcido rachou em vários pedaços, sibilando ar pressurizado. A armadura salvou sua vida pelo preço de se tornar sucata inútil.

    Harley conseguiu mover a cabeça, segundos preciosos para testemunhar o horror ao redor.

    Chuva de carne.

    Corpos inteiros, partes, fragmentos despedaçavam-se contra rocha e areia. Sons variados de impacto orgânico: baques úmidos, estalos de ossos, respingos viscosos. Sugados pela mesma explosão, arrastados pelo mesmo portal, despejados no mesmo deserto, sem a proteção de armadura militar avançada.

    O chão mudava de cor a cada impacto. Bege para carmesim. Seco para encharcado. Silencioso para cheio de morte líquida.

    Um braço decepado aterrissou próximo. Uma cabeça rolou até parar diante de seu rosto, olhos vazios fitando três sóis imóveis no céu violeta.

    Três sóis? Que dimensão era essa?

    A escuridão o reclamou.

    Quanto tempo?

    A pergunta ecoava na mente imóvel de Harley enquanto seus olhos, as únicas partes do corpo que ainda obedeciam, vasculhavam o horizonte transformado. Os três sóis permaneciam fixos, mas tudo estava fundamentalmente diferente.

    Os corpos não eram mais corpos. Eram pó.

    Misturados à areia, o pó vermelho parecia desgastado por décadas de erosão invisível. Costelas que antes se projetavam eram sulcos rasos. O crânio que o encarara se desfazia em fragmentos porosos.

    Séculos?

    O uniforme que o salvara também desbotara, corroído pelo tempo, enquanto seu corpo permanecia exatamente igual, sem que um cabelo crescesse ou uma unha mudasse.

    À distância, buracos espaciais se abriam tal qual feridas na realidade, criando rajadas que formavam barreiras invisíveis. O ar tremia com instabilidade dimensional. Ventanias carregadas de energia demarcavam limites que não conseguia enxergar, embora pudesse senti-los.

    Uma zona temporal.

    A compreensão irrompeu dentro dele, com a violência de uma avalanche esmagando toda resistência emocional. O tempo passava diferente aqui, mais devagar para ele, acelerado para tudo ao redor. Por isso permanecia intacto enquanto o mundo apodrecia sob os três sóis eternos.

    Mas por quanto tempo?

    Harley tentou mover o braço direito. Nada. As pernas. Nem tremor. O pescoço. Nem espasmo involuntário. Apenas os olhos funcionavam, reduzidos ao registro mecânico de câmeras presas, guardando imagens de devastação que foi campo de batalha e agora parecia cemitério arqueológico.

    O pânico tentou se instalar. O jovem Ginsu o empurrou para longe. Vários anos imóvel ali haviam ensinado que pânico era luxo para fracos.

    E ele não chegara tão longe sendo fraco.

    Pense, Harley. Pense.

    A explosão. Não comum, algo maior, mais destrutivo. O tipo de força que apenas artefatos extremamente poderosos geravam. Seus inimigos usam magia de destruição em massa, querendo eliminar pessoas e, de maneira ainda mais terrível, o próprio espaço onde estavam.

    No último segundo, sua adaga negra tentara salvá-lo.

    A adaga. Instintivamente procurou pela lâmina sombria, companheira de tanto tempo, que nunca o abandonara, sempre respondera nos momentos críticos. Ela se desintegrara no portal, desfazendo-se completamente. O último ato antes de morrer foi abrir passagem para lugar nenhum.

    Todo o sacrifício. Toda busca incansável por poder. Inimigos derrotados, mundos explorados, segredos desvendados.

    Em vão.

    Desespero puro correndo por veias que não conseguia mover, músculos que não respondiam, corpo que se tornara sua própria prisão. Como escapar de situação impossível quando não se consegue levantar um dedo?

    Espera.

    Fechou os olhos, não porque tivesse perdido a consciência, e sim por desânimo. E lá estavam.

    Assustou-se. Abriu rapidamente os olhos e a paisagem desoladora continuava igual. Apenas em sua escuridão particular via suas antigas companheiras: as linhas pretas. Conexões cintilantes escapavam tal qual seda invisível, dissipando-se em todas as direções e traçando as Linhas do Destino.

    Uma ideia surgiu. Ridícula. Impossível.

    As Linhas do Destino só respondiam através de um canalizador dimensional. A adaga negra, que ele possuía, não era somente uma arma, mas o canal através do qual acaso e probabilidade se tornavam lei. Doravan, aquele maldito, explicara isso. Sem ela, o poder era inacessível.

    Mas… e se não fosse bem assim?

    Concentrou toda vontade no simples ato de baixar as pálpebras.

    E elas estavam lá.

    Pulsantes, conectando tudo em teia infinita de possibilidades que se estendia além dos limites da realidade. As Linhas do Destino brilhavam tal qual constelações vivas, cada uma representando conexões entre pessoas, lugares e momentos. 

    Algumas lembravam cordas de tão grossas, outras se desfaziam em delicadeza de fios. Algumas eram escuras, outras opacas, e todas, sem exceção, negras.

    Mas de que forma? De que jeito vê-las apenas fechando os olhos?

    A resposta veio quando dirigiu atenção ao próprio corpo. O braço esquerdo: negro, sombrio, feito de Energia Sombria condensada, ainda pulsava com vida própria. A explosão levou a adaga, e ainda assim não conseguiu destruir o que ela havia deixado nele ao longo dos séculos.

    A transformação era permanente. Irreversível.

    Esperança. Pequena, frágil como a última fagulha em meio à escuridão, e ainda assim real.

    Com esforço mental que fez sua testa suar, Harley direcionou Energia Sombria para uma pedra próxima. O poder fluiu através de canais invisíveis, encontrou o alvo, o envolveu. A possessão funcionou perfeitamente: a pedra flutuou, dançou no ar obedecendo sua vontade, tornando-se extensão de seu corpo paralizado.

    Por segundos preciosos, não estava completamente à mercê das circunstâncias.

    Então o controle se desfez.

    A pedra caiu com ruído seco. A energia se dissipou. A escuridão voltou a pressionar contra sua consciência.

    Mas funcionou.

    Mesmo desmaiando novamente, Harley sorriu internamente. Ainda tinha poder. Ainda tinha chance, por menor que fosse.

    As Linhas do Destino continuavam pulsando quando fechava os olhos, possibilidades que não conseguia interpretar completamente. Algumas confundiam-se com a escuridão de sua consciência, outras tremulavam iguais a fios de luz suspensos sobre abismos.

    Três chamavam sua atenção. Três linhas mais espessas, vibrando com intensidade diferente.

    Concentrou-se na primeira: teve a impressão de algo distante e poderoso. A segunda estendia-se em direção a algo antigo. A terceira pulsava próxima, muito próxima, carregando fome que conseguia quase tocar.

    Alguém procurava por ele? Alguém ainda se importava após séculos?

    Durante toda a sua vida, fora o Rei das Fugas, aquele que sempre encontrava saída quando não havia nenhuma. Mas agora? Apenas um homem preso no próprio corpo, dependendo de forças que não controlava.

    Quanto tempo havia passado? O que encontraria lá fora? O mundo ainda existia?

    No último momento antes da consciência escapar, Harley tomou uma decisão desesperada.

    Mentalmente, puxou não apenas uma, e sim as três linhas grandes que se destacavam. Não sabia para onde levavam, o que encontraria na outra ponta. Poderiam representar salvação. Poderiam representar morte.

    Mas qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa, seria melhor que mais décadas de silêncio.

    As linhas vibraram em sequência, aceitaram seu toque desesperado, começaram a acelerar eventos simultâneos que não conseguia ver nem compreender.

    Em algum lugar do multiverso, alguém recebeu sinal esperado durante séculos.

    Em torre cristalina flutuando entre dimensões, uma figura encapuzada ergueu a cabeça bruscamente, interrompendo ritual ancestral.

    Cinco séculos de preparação.

    Finalmente.

    — O Portador das Sombras está vivo! — proferiu palavras que repercutiu pelos labirintos retorcidos da construção — Que os Guardiões sejam alertados. A Convergência Final… começou.

    E em terceiro lugar, muito mais próximo do que Harley poderia imaginar, algo antigo e faminto sentiu o chamado e sorriu com dentes que não existiam há meio milênio.

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