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    Metal rasgou o céu violeta.

    O som metálico cortando o tecido dimensional fez cada fibra do corpo de Harley Ginsu vibrar em harmonia dolorosa. Após vários anos de silêncio absoluto, onde o único som era o eco de sua própria respiração na prisão temporal, qualquer ruído soava tal qual trovões rasgando por dentro de seus ossos. 

    Todavia este era diferente. Calculado. Violento. Tão familiar quanto uma marca que não some, aprendendo apenas a doer de outros modos.

    Por que agora?

    Forçou os olhos ressecados a focalizarem no céu violeta, piscando contra a luz tripla que há séculos martelava suas pupilas sem descanso. As pálpebras moveram-se, rangendo contra córneas que haviam esquecido a forma adequada de lubrificar.

    A nave descia perfurando camadas de ar instável. Estrutura cônica girava, deixando fendas luminosas que sangravam luz dourada antes de se fecharem com estalos dimensionais. 

    Harley identificou a abertura rasgando o espaço, percebendo que a estrutura metálica atravessava de outro mundo. Porém, as memórias que brotavam em sua mente pertenciam a alguém distante: outro tempo, outro corpo, outro destino.

    Seria essa a primeira linha do destino que realmente se curvava à sua vontade?

    A Energia Sombria em seu braço esquerdo despertou abruptamente, pulsando em harmonia com as distorções espaciais. Inesperadamente em todo esse tempo, algo além da paralisia corria por suas veias. A energia reconhecia algo na violação brutal do tecido cósmico: uma assinatura, um eco, um chamado ancestral.

    A nave desceu não muito longe dele, expelindo vapor químico que trazia consigo fragmentos de realidades entrelaçadas. O cheiro ácido queimou suas narinas entorpecidas. A rampa se abriu fazendo um som pneumático. 

    Então eles emergiram.

    Ele media quase três metros, a pele lembrando madeira petrificada e áspera, texturizada com sulcos. Dos olhos vazios emanavam clarões dourados, cada um servindo de aviso silencioso. 

    Da dobra da veste surgiu um artefato quadrado, de superfície refletida. Harley não precisou de explicações: lembrava-se de Doravan empunhando um igual. Detector dimensional, instrumento criado para perscrutar as forças invisíveis que permeavam o espaço.

    O segundo era completamente robótico, corpo translúcido permitindo ver circuitos que pulsavam no seu interior. 

    Então saiu a terceira figura.

    Torso feminino humano perfeitamente proporcionado, estrutura equina da cintura para baixo. Músculos ondulando sob pelagem escura e cascos batendo no metal da rampa com ecos metálicos que criavam pequenas harmonias. Seus olhos vasculhavam o ambiente com inteligência aguçada. Uma guerreira. Harley reconhecia o tipo, havia lutado ao lado de várias delas.

    O quarto desceu da rampa com movimentos controlados.

    Jovem de cabelo escuro ondulado, máscara vermelha cobrindo precisamente metade do rosto. Roupa protetora semelhante aos demais, mas no pescoço, parcialmente oculta pela borda da máscara…

    A cicatriz.

    Formato losango perfeito, parcialmente oculta pela máscara. Brilhava fraca, respondendo à concentração energética dimensional. A Energia Sombria reagiu com intensidade inédita, criando ondas de poder que correram por todo seu sistema nervoso. 

    O traço cicatrizado na mão de Harley pulsava no mesmo compasso da marca, e a paralisia foi tomada por uma sensação inquietante, impossível de nomear. 

    A conexão se estabeleceu sozinha.

    O jovem Ginsu fechou os olhos, permitindo que a linha se materializasse em sua percepção interior. Energia negra que interligava sua cicatriz na palma e aquela no pescoço do jovem. Por um instante, compartilharam sensações. Memórias. Conhecimento.

    Zéric.

    O nome chegou através da energia compartilhada, carregando fragmentos de lembrança que não eram suas: laboratórios estéreis com cheiro químico. Medo, experimentos dolorosos conduzidos por mãos que tremiam de excitação científica, transformação forçada através de dor pura. E um nome que fez seu sangue gelar nas veias imóveis.

    Doravan.

    Entretanto, qual era a conexão deste jovem com o seu inimigo morto? Seria ele outro experimento? Outra vítima das ambições descontroladas? Ou algo pior: um sucessor, um discípulo, uma ferramenta de continuação do horror?

    Harley cortou a conexão abruptamente, perturbado. E viu Zéric cambalear ligeiramente, levando a mão ao pescoço. Surpresa e receio cruzaram suas feições visíveis. Havia sentido a ligação. E a ruptura súbita.

    Ginsu continuava atento

    Os quatro exploradores mantinham distância da zona onde Harley se encontrava, como se suspeitassem da presença de perigos que ele ali enfrentava. Claramente sabiam exatamente o que procuravam. 

    O detector do gigante começou a emitir sons agudos crescentes quando apontou diretamente para o jovem Ginsu, luminosidade se intensificando até gerar arcos de luz pulsante ao redor.

    Sem uma palavra, sinais táticos cruzaram o espaço entre eles. Harley reconheceu a ordem implícita: atenção máxima, manter posição e retirada estratégica em alerta. 

    O uso da energia sombria cobrava seu preço mais uma vez. A escuridão o envolveu por completo, arrastando-o para um abismo silencioso.

    Cadê eles? 

    A pergunta ecoava na mente imóvel do jovem Ginsu, enquanto seus olhos, as únicas partes do corpo ainda obedientes, se abriram e vasculhavam o horizonte novamente. A nave tinha mudado de lugar. Eles estavam mais afastados. Quanto tempo ficou desacordado? O que tinha acontecido?

    Mais alguém estava chegando.

    Uma sombra distante a princípio em seus movimentos lentos foi se aproximando. 

    O coração de Harley disparou com força suficiente para fazer suas costelas doerem.

    Cabelos loiros familiares capturando e refletindo a luz tripla. Altura que ele conhecia de memória. Porte que havia admirado. Contudo, onde deveria haver carne humana macia e quente, horror tecnológico a substituía com precisão cirúrgica.

    Milenium?

    Não. O rosto era diferente, mais angular, mais feminino. As feições que ele escondia de si mesmo em cantos escuros da mente, que evitava recordar durante as longas noites de solidão absoluta.

    Aurora.

    O braço esquerdo havia sido amputado na altura do ombro, substituído por prótese metálica. A perna direita terminava em garra robótica articulada, dedos mecânicos flexionando com precisão inumana. Parte do rosto coberta por placas metálicas que pulsavam com luz azulada, criando contraste com a pele que restava.

    Harley reconhecia cada gesto, cada inclinação específica da cabeça, cada maneirismo sutil, mesmo distorcidos pela transformação mecânica brutal. Havia se familiarizado com aqueles trejeitos quando Aurora ainda era completamente humana, quando sorria com dentes perfeitos e olhos que brilhavam de alegria genuína.

    Quando ainda era ela mesma. Quando ainda era sua companheira na Escola Ciência e Tecnologia.

    Indiferente a tudo ao redor, Aurora prosseguiu, com a certeza de que nada a afastaria de seu destino final: os exploradores. 

    Não houve surpresa, resistência ou reconhecimento mútuo. Nenhuma hesitação, nenhum cumprimento, nenhuma explicação. Sua presença se impunha com a naturalidade de um protocolo estabelecido há muito tempo. 

    O androide lançou uma sequência de feixes luminosos sobre ela, cada raio parecendo dissecar sua forma em busca de dados.

    A interação durou exatos cinco minutos. Harley contou cada batida de coração, cada respiração controlada. Aurora permitiu análise completa e ainda indiferente, dirigiu-se à nave com movimentos mecânicos, precisos demais para serem naturais, fluidos demais para serem completamente artificiais.

    Entrou na nave sem olhar uma única vez na direção de Harley. Nem um relance. Nem um momento de reconhecimento. Nem uma piscada de curiosidade.

    Como se ele simplesmente não existisse.

    Por que eles me ignoram completamente?

    A pergunta o atingiu com força física inesperada, mais dolorosa que qualquer ferimento de combate que já havia sofrido. 

    Estavam ocupados com algo mais urgente que sua presença? Pensavam que ele estava morto após tantos séculos? A zona temporal o tornava genuinamente imperceptível aos instrumentos? Ou simplesmente não se importavam com um homem imobilizado há muito anos, reduzido a observador impotente de sua própria tragédia?

    A nave ativou sistemas de partida com estrondo que fez o solo tremer. Em vez de cortar o espaço abrindo um novo portal dimensional, o que era esperado por Harley, a nave perfurou o solo e sumiu.  

    O silêncio voltou. Todavia, diferente. Carregado. Pesado de possibilidades não exploradas.

    Aurora estava funcionalmente viva: operacional, cumprindo propósitos programados por mentes que ele não conseguia alcançar. Contudo não era mais Aurora. Era uma ferramenta nas mãos de quem a transformara, marionete dançando ao som de músicas que ele não podia ouvir. 

    E Milenium… poderia ainda estar viva?

    Devastação pura correu por veias que não conseguia mover, queimando cada terminação nervosa com intensidade insuportável. De que maneira escapar quando não se consegue levantar um único dedo? De que forma salvar alguém quando se é apenas observador impotente de sua própria destruição? Como descobrir o que restou daquilo que um dia fora seu mundo e das vidas que encontrou?

    O medo o calou.

    A frustração irrompeu em seu peito. A Energia Sombria reagiu ao turbilhão interno, enviando ondas de poder que estalaram as pedras ao redor. Por um momento glorioso, ele teve certeza absoluta de que conseguiria quebrar as amarras temporais através de pura força de vontade.

    Então a sensação passou gradualmente, deixando apenas a paralisia familiar e o gosto amargo da esperança frustrada.

    Duas linhas restantes vibravam em sua percepção interior, pulsando com fome que conseguia quase tocar fisicamente. A terceira estava próxima, aproximando-se. Algo havia sentido o chamado desesperado de sua energia e agora se dirigia para completar o círculo.

    Harley concentrou-se na linha com determinação que queimava mais intensamente que qualquer chama. Antes de fazer qualquer plano grandioso ou pensar em mudar a realidade ao seu redor, precisava primeiro sair do estado aprisionado. Sem mobilidade, qualquer pensamento era completamente inútil.

    Quem viesse enfrentaria sua vontade absoluta, não importasse o custo para sua alma.

    Desta vez seria diferente. Aurora estava perdida para sempre, transformada em algo que ele mal conseguia reconhecer. Porém ele faria qualquer acordo necessário, pagaria qualquer preço exigido, para não falhar novamente.

    A linha respondeu ao toque mental desesperado, vibrando com intensidade crescente que fez seus dentes doerem. No deserto ao redor, sombras começaram a mover-se contra a direção natural do vento.

    Harley aguardava, completamente imóvel no corpo, enquanto as sombras se aproximavam lentamente, carregando promessas sedutoras de liberdade absoluta ou condenação eterna.

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