Capítulo 205 - O farol gritando dimensões
Algo vinha.
Harley sentiu antes de ver. Um frio que não existia escorregou por sua espinha imóvel, dedos invisíveis explorando cada vértebra. Impossível. Nada tocava seu corpo há séculos, a paralisia temporal garantia isso. Então por que cada terminação nervosa gritava alerta?
As sombras dos rochedos próximos começaram a se mover.
Primeiro sutilmente: uma pedra cuja sombra se esticava contra a direção dos três sóis imóveis. Harley forçou os olhos a focarem, piscando contra córneas que raspavam à semelhança de pedra contra pedra. Depois mais obviamente: manchas escuras deslizavam sobre a areia tal qual óleo viscoso, convergindo lentamente em sua direção.
O braço sombrio pulsou. Não com poder, com reconhecimento.
Não, pensou desesperado. Agora não. Não quando não posso me mover.
A terceira Linha do Destino havia respondido ao seu chamado. Harley concentrou-se em suas pálpebras fechadas, procurando a teia luminosa que conectava todas as coisas. A linha vibrava próxima demais, suas extremidades tocando quase diretamente sua consciência.
O conhecimento deixou sua mente marcada tal qual fogo gravando cicatrizes em pedra, uma lembrança permanente e impossível de apagar.
Cobradores Dimensionais. O conceito explodiu em sua percepção, arrancado diretamente da fonte cósmica. Entidades que surgiam quando o equilíbrio universal era perturbado por uso excessivo de poder. A conexão com a linha forçou ainda mais Energia Sombria através de seu sistema, alimentando o próprio problema que atraía os predadores.
Harley tentou cortar a ligação. Não conseguiu.
A criatura que se aproximava vibrava na mesma frequência que seu braço negro. Através da conexão forçada, ele sentia sua fome: antiga, implacável e específica. Séculos de Energia Sombria concentrados em seu corpo imóvel pulsavam com a força de um farol gritando através de dimensões.
Preciso sair daqui. Agora.
Concentrou toda força de vontade em mover um único dedo. Nada. Nem uma contração muscular. A zona temporal o mantinha preso como se fosse um eco cristalizado, incapaz de se dissipar.
As sombras que antes estavam dispersas se reuniram, assumindo uma forma mais definida. A princípio parecia simplesmente uma mancha maior de escuridão contra a areia vermelha.
Gradualmente, contudo, Harley pôde discernir uma estrutura reptiliana, porém feita inteiramente de sombras que se moviam independentemente umas das outras.
Não tinha forma fixa. Era antes uma ideia de forma, um conceito de predador expresso através de escuridão viva. Onde deveria haver patas, extensões sombrias se projetavam e retraíam constantemente. O que sugeria cabeça mudava de formato a cada segundo: ora serpentina, ora felina, ora algo completamente bizarra.
A única constante eram os olhos.
Duas aberturas no tecido de sombras que revelavam não luz, mas um tipo diferente de escuridão. A escuridão faminta o reconhecia, considerando-o sua presa.
E estava olhando diretamente para ele.
O coração de Harley disparou com força suficiente para fazer suas costelas doerem. Pode me ver. Sabe exatamente onde estou.
A criatura parou na borda da zona temporal, exatamente onde Zéric havia hesitado anteriormente. Por longos minutos permaneceu imóvel, estudando-o. A análise o atingiu com intensidade, pressionando Harley fisicamente: algo sondando cada fibra de Energia Sombria em seu sistema, calculando e planejando.
Como sabe dos limites da zona? Como sabe que não posso me mover?
A resposta chegou pela conexão forçada com as Linhas do Destino: os Cobradores existiam para restaurar equilíbrio, conheciam instintivamente os métodos e limitações de suas presas.
A revelação não veio sozinha, trouxe consigo a descarga. Mais uma vez, a linha empurrou Energia Sombria em excesso por seu sistema, reforçando exatamente a fraqueza que chamava os predadores.
O conhecimento vinha, sempre acompanhado de um custo inevitável.
Então a criatura se desdobrou em camadas, cada sombra acrescentando outra ao redor dele, até que Harley percebeu que enfrentava não um inimigo, mas uma multiplicidade devoradora.
Lentamente, mantendo sempre a mesma distância, os parasitas iniciaram movimento orbital ao redor da área temporal instável. Suas formas sombrias deixavam rastros na areia: não havia pegadas físicas, apenas depressões onde a própria luz parecia ter sido sugada permanentemente.
A cada revolução completa, chegava um pouco mais perto.
Está testando, Harley percebeu com horror crescente. Procurando um ponto fraco.
Queria gritar, lutar, correr. Seus músculos não responderam. Apenas seus olhos podiam testemunhar a própria condenação se aproximando metro por metro.
Na terceira volta, o conjunto de criaturas achou o que procurava.
Do lado leste, onde séculos de vento haviam erodido uma depressão sutil no terreno, a barreira temporal apresentava flutuação quase imperceptível. A diferença era mínima, o bastante para que uma entidade interdimensional especializada percebesse.
O parasita mergulhou na brecha.
O impacto veio sem aviso. Algo viscoso e gelado pousou em sua nuca. A zona mantinha tudo suspenso, nada ali deveria se mover. Mas o frio avançava dentro dele, explorando sua espinha. E então a verdade rasgou sua mente: não precisava mover-se. O parasita já se alimentava de dentro.
Tentáculos sombrios, invisíveis porém inegavelmente reais, exploraram seu corpo com familiaridade obscena. Procuravam pontos de concentração energética, mapeando décadas de poder acumulado.
Encontraram o braço negro.
A violação dimensional explodiu através de sua consciência.
Não havia dor, apenas a clareza brutal de uma lei maior atravessando sua carne. O universo não aceitava desequilíbrios: esmagava-os, corrigia-os, dissolvia-os. Energias dimensionais chocaram-se em sua consciência, e o grito que brotou de Harley ecoou entre planos, trazendo em si a marca da harmonia imposta.
O som ricocheteou através das Linhas do Destino. Em algum lugar no cosmos, o equilíbrio começou a se restaurar.
Sua Energia Sombria estava sendo sugada.
O processo não era dreno – era dissecação. Cada fibra de poder sendo desfiada, analisada, devorada. O parasita mergulhava fundo, procurando não apenas energia, mas o núcleo vital que a mantinha funcionando.
Se encontrasse, Harley morreria.
Século por século de força se desenrolava em espirais negras. O braço sombrio convulsionou, tentando se retrair, enquanto a criatura penetrava nele, desfazendo sua estrutura molecular.
Primeiro os dedos. Partículas sombrias escaparam das pontas, arrastadas por correntes interdimensionais invisíveis. Harley sentiu cada molécula de poder sendo arrancada.
A mão seguiu os dedos. Dissolução que subia pelo punho tal qual tinta viva pulsando e consumindo cada nervo. O parasita saboreava cada pedaço, seus olhos famintos brilhando mais intensamente.
Harley percebeu a verdade terrível: a criatura não queria apenas sua energia. Queria sua essência. Queria punição pela violação. Queria sua morte como punição pela violação cósmica.
Não. Pânico real irrompeu em sua mente. Sem a Energia Sombria, não há escape. Vou morrer aqui. Lentamente. Consciente.
O terror o golpeou com a força de ondas quebrando contra a rocha, sem trégua e sem escolha. Harley mergulhou dentro da dor, transformando agonia em fúria. Se ia morrer, não seria passivamente.
Concentrou toda força de vontade remanescente numa única ação desesperada: não escapar, endurecer.
Os dedos da mão direita se fecharam com força suficiente para triturar ossos.
A contração quebrou algo microscópico na configuração temporal. Uma fissura quase imperceptível na prisão que o mantinha suspenso. Não liberdade, uma brecha.
O parasita sentiu a mudança. Seus tentáculos se retesaram, acelerando a absorção. A criatura atacou o antebraço com voracidade desesperada.
Harley comprimiu os restos de energia sombria numa bola densa no centro de seu peito. Longe do braço. Protegida. A criatura podia devorar suas extremidades, mas não tocaria seu núcleo.
EXPLOSÃO.
Energia Sombria comprimida e fome dimensional colidiram em pura devastação, abrindo um vazio do tamanho de um punho, vibrante de infinitas rotas não percorridas.
O que emergiu não foi a vitória de uma sobre a outra, e sim um impasse absoluto: forças que se repeliam, se esmagavam, e ainda assim permaneciam presas, incapazes de romper o equilíbrio imposto.
Harley não hesitou.
Com toda força mental remanescente, empurrou com sua bola densa formada de Energia Sombria a parte materializada da criatura que estava dentro dele diretamente para o espaço virgem. O parasita resistiu, tentáculos de Energia se agarrando em suas costelas, e sua exposição excessiva o tornava incapaz de escapar.
Metade da criatura foi arrancada da realidade e sugada para o vazio dimensional.
O vazio colapsou com estrondo silencioso.
Toda a energia sombria que havia sido drenada retornou numa avalanche violenta de poder restaurado. O antebraço renasceu num fluxo que incendiou suas veias como raízes ardentes se espalhando sob a pele, rasgando por dentro e restaurando cada dedo, cada terminação nervosa, cada partícula de poder perdido.
O braço sombrio estava completo novamente. Pulsando. Vivo.
Mas a outra metade da criatura permanecia.
Fragmentos sombrios orbitavam ao redor de sua zona temporal, hesitantes e confusos. Esperando para ver se a parte sugada retornaria do espaço que talvez nem existisse mais. Ou se haviam acabado de testemunhar algo que deveria ser impossível: uma presa que dividia um Cobrador Dimensional ao meio.
Sombras surgiram no horizonte. Outras criaturas convergiam, sem se aproximar demais, mantendo distância cautelosa. Era a congregação de Cobradores: múltiplos parasitas dimensionais atraídos pela primeira manifestação. A primeira criatura havia sido ferida, sua forma parcialmente destruída, e algo nesse trauma fazia os demais hesitar.
Harley havia provado que podia lutar de volta.
Fechou os olhos novamente, buscando a teia das Linhas do Destino. A segunda linha pulsava distante, mas não indiferente, havia curiosidade nela.
A Dimensão da Morte havia sentido sua manipulação das probabilidades, e cada batida arrancava mais Energia Sombria em troca de visão. A última verdade se impôs, feito sentença inescapável: a Morte vinha avaliar pessoalmente.
A questão era se sua presença representaria punição ou o reconhecimento de um novo equilíbrio.
Harley Ginsu fechou os olhos e esperou, sentindo os predadores sombrios circulando cautelosos nos limites de sua percepção. Havia dividido uma entidade dimensional. Não sabia se havia vencido ou apenas adiado o inevitável.

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